A nova corrida pelas riquezas do subsolo reabre a discussão sobre a exploração mineral em terras indígenas. Embora garantida pela Constituição, precisa evitar os velhos erros no trato com as comunidades
Por Ricardo Ferraz
Durante o século XVI, os colonizadores espanhóis Gonzalo Pizarro e Francisco de Orellana lançaram-se pela selva amazônica. Tinham acabado de conquistar o Peru e, diante da grandeza do Império Inca, decidiram tirar a prova de uma história contada pelos índios: a existência de uma cidade feita inteiramente de ouro, erguida sobre uma mina do mais valioso minério. A chamada Eldorado nunca foi encontrada, mas o homem branco jamais deixou de se interessar pelas riquezas minerais das terras indígenas.
Tanto que, no Brasil, algumas empresas chegaram a obter a concessão de lavra em terras indígenas. Mas, em 1988, a Constituição trouxe mais segurança para as comunidades, ao estabelecer que só se operassem as atividades de mineração “com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”. Como o subsolo brasileiro pertence à União, suas riquezas são de toda a população, e não apenas de quem ocupa a superfície. Isso significa que o Estado brasileiro terá de mediar o relacionamento entre tribos de 132 terras indígenas e 400 empresas mineradoras, de acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2005.
A matéria ainda precisa ser regulamentada. Enquanto isso não ocorre, a exploração está suspensa. Há 12 anos lideranças indígenas, ONGs e empresas mineradoras travam árdua batalha pelos corredores do Congresso Nacional, em torno do Projeto de Lei no 1.610, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR). “Como é muito difícil mudar a Constituição, não se trata de discutir se a mineração deveria ocorrer, mas como ela vai ocorrer”, explica Raul Silva Telles do Valle, coordenador do Programa de Política e Direito do ISA.
O projeto já passou por votação no Senado, mas emperrou em uma Comissão Especial, na Câmara dos Deputados. No início de julho, o relator, Eduardo Valverde (PT-RO), apresentou um substitutivo que desagradou tanto ambientalistas como representantes das empresas (quadro à pág. 38). Mas a discussão ganhou força, graças ao momento histórico que a indústria brasileira da mineração atravessa: um crescimento de 183% do faturamento desde 2002.
Nesse meio tempo, empurradas pela demanda aquecida por minério dos países emergentes, em especial da China, as empresas de mineração no Brasil faturaram R$ 46 bilhões em 2007 e pretendem investir cerca de R$ 76 bilhões até 2012. Os dados são do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), a entidade que representa as empresas do setor. “Procurar novas fronteiras passou a ser essencial para as empresas atenderem a demanda por minério, que deve cair um pouco, mas ainda permanecer alta nos próximos anos, por conta do alto nível de atividade da indústria”, diz Alexandre Gallotti, analista setorial de mineração da Consultoria Tendências.
Do outro lado, as riquezas são mais difíceis de quantificar: a biodiversidade da Região Amazônica e o patrimônio cultural dos povos indígenas. Embora hoje se reconheça a importância de preservá-las, elas não trazem lucro imediato e continuam a sofrer pres- são dos mais diversos agentes econômicos. “A parcela da sociedade que dita as regras ainda vê as relações econômicas como nossos antepassados colonizadores. Impõe um modelo tido como ideal que deve ser levado adiante, doa a quem doer”, afirma Ana Valéria Araújo, advogada especializada em direitos indígenas.
As mineradoras, entretanto, argumentam que preservar o meio ambiente, a cultura indígena e, ainda assim, explorar as jazidas é possível. Marcelo Ribeiro Tunes, diretor de assuntos minerários do Ibram, cita a situação de Austrália e Canadá, onde a mineração em terras de povos tradicionais é regulamentada, como exemplos que o Brasil deveria seguir (reportagem à página 40). “A não-regulamentação impede os índios de terem participação em algo previsto na Constituição e o País, de produzir riquezas”, diz ele.
Apostando nessa possibilidade, as empresas entraram com 5.064 processos no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), para pesquisar minérios em terras indígenas, de acordo com o ISA.
As maiores empresas são as que mais requereram, mas também há 66 registros de pessoas físicas e mineradoras menores.O ouro lidera a lista de interesse com mais de 50% dos pedidos, seguido pelo cobre e a cassiterita (estanho). Alguns minérios menos conheci- dos, mas tidos como estratégicos, também estão no rol de interesse das empresas, como nióbio e tungstênio, utilizados na indústria de materiais nucleares e na composição de ligas metálicas especiais.
Em junho do ano passado, representantes do Ibram, em jantar com o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, pediram agilidade no debate de questões que, segundo eles, travam o crescimento do setor. No cardápio, entre outras reivindicações, rapidez na tramitação do PL nº 1.610. Empresas de outros ramos, como transporte, alimentação e segurança, também podem se bene- ficiar com a aprovação do projeto. Como vêem a possibilidade de prestar serviços para as mineradoras, engrossam o lobby entre deputados e lideranças locais para que a lei seja aprovada, avalia uma fonte que preferiu não se identificar.
As riquezas minerais das terras indígenas teriam despertado o interesse até mesmo do banqueiro Daniel Dantas, conforme informou o jornalo Estado de S. Paulo. Grupo Opportunity possui áreas de mineração em terras indígenas no Pará, o que levantou a suspeita do delegado Protógenes Queiroz, que comandou a Operação Satiagraha, sobre “indícios de lavagem de capitais na aplicação desses recursos”.
A Vale do Rio Doce, a maior mineradora brasileira, é autora de 231 requerimentos. A empresa convive com os índios da reserva Xikrin do Cateté, na área de Carajás, em Parauapebas, no Pará, onde tem uma concessão de lavra, obtida antes da Constituição de 1988.
Em fevereiro de 2007, PÁGINA22 retratou a relação da Vale com os indígenas e o choque cultural entre a empresa e a comunidade indígena, que desembocou em uma série de conflitos, até mesmo com o bloqueio da ferrovia por onde se escoa o minério de ferro. A assessoria de imprensa da Vale informou, por meio de nota, que “não desenvolve qualquer atividade de pesquisa ou lavra em terras indígenas”. A reportagem solicitou entrevista com um representante da empresa sobre a relação com os indígenas, mas foi aconselhada a procurar o Instituto Brasileiro de Mineração.
Atividade de exceção
É justamente por causa da dificuldade de intermediar conflitos entre índios e não-índios que os ambientalistas defendem regras mais restritivas para a mineração nessas áreas. Para eles, a atividade deveria ser uma exceção, aceita somente nos casos em que as jazidas fossem comprovadamente estratégicas, ou seja, com minérios raros, existente unicamente dentro das reservas.
“A mineração em terras indígenas pode trazer mais problemas do que benefícios econômicos para o País. Cuidar dos índios afetados pelo contato com o homem branco pode sair mais caro para o Estado brasileiro”, argumenta Telles do Valle, do ISA.
Seria incorreto dizer que as conseqüências se repetem em todas as tribos indígenas. Existem povos acostumados ao convívio com o não-índio, mas há comunidades isoladas – como os habitantes do Rio Envira, no Acre, cujas fotos foram divulgadas recentemente. De maneira geral, porém, os antropólogos afirmam que os impactos ambientais causados pela mineração podem mudar a relação do índio com a floresta. “Povos que dependem da caça para comer, por exemplo, poderiam ver os bichos desaparecer depois de a floresta se transformar em um grande buraco”, diz Rogério Pateo, antropólogo do programa de monitoramento de terras indígenas do ISA.
Mas o fator que mais preocupa é a convivência com o não-índio. Doenças, casos de abuso sexual contra mulheres indígenas e a perda da identidade cultural são comuns nas 192 áreas em que a mineração se dá ilegalmente na forma de garimpo, levantou a Comissão Especial Parlamentar. “Existe uma dificuldade tremenda na gestão das equipes de trabalhadores.
É muito complicado controlar a entrada de bebidas alcoólicas, drogas e até de produtos triviais, mas que causam sérios danos. Há populações inteiras que não conhecem sal e podem sofrer com hipertensão”, diz Pateo.
O exemplo mais desastroso dessa convivência deu-se no fim da década de 1980, quando garimpeiros invadiram as terras dos Yanomami próximas à fronteira com a Venezuela. Nas contas da própria tribo, cerca de 40 mil garimpeiros vieram atrás do ouro, uma população cinco vezes maior do que a que ali vivia. Além da utilização de mercúrio, que contaminou a terra e os rios, o que se viu foi um surto de malária e outras doenças, responsável pela morte de cerca de 1.200 índios.
É importante diferenciar o garimpo ilegal de empresas mineradoras legalmente constituídas que, em tese, teriam condições de seguir as regras estabelecidas pelo poder público. Mas a xawara, como os Yanomâmichamam as doenças causadas pelos homens brancos, deixou marcas tão profundas que fez os líderes se posicionarem contra a mineração em suas terras. “Os garimpeiros prometeram ajudar a gente, mas nunca deixaram nada. Com as empresas também não haverá benefícios”, diz Geraldo Kuesithëri Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, uma organização que representa os índios. “Os Yanomami se lembram muito do sofrimento. Não queremos sofrer mais. A mineração traz doença e morte.”
É justamente a área Yanomami a campeã nos requerimentos de pesquisa mineral, com 640 processos encaminhados ao DNPM. Este foi um dos motivos que levaram os deputados da Comissão Parlamentar a visitar a tribo em fevereiro deste ano. Sem terem sido avisados previamente da visita e ao constatar que não havia nenhum representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) na comitiva, os líderes Yanomamiconsideraram o episódio uma afronta.
Um relatório feito pela Hutukara diz que a Comissão pretendia convencê-los a aceitar a mineração na região. Informa, por exemplo, que o deputado Márcio Junqueira (DEM-RR) tentou dar facões e anzóis aos índios. Presentes que foram devolvidos. Nas palavras do líder Paraná Yanomami, eles “não podiam aceitar porque quem dava não havia sido convidado”. Márcio Junqueira – que admite já ter garimpado em terras indígenas – defende uma legislação menos restritiva, mas se coloca contra o garimpo de ouro nas terras Yanomami e diz que tudo não passou de um mal-entendido: “Fiz uma alusão à passagem bíblica de que não basta dar o peixe, tem de ensinar a pescar”.
Para outras lideranças indígenas, o índio já sabe pescar. Tem de aprender a lidar é com o dinheiro. O Projeto de Lei discutido no Congresso Nacional prevê que os royalties pagos aos índios pela exploração mineral não podem ser inferiores a 4% do faturamento e devem ser geridos pela própria comunidade. Inegavelmente, isso introduz a lógica capitalista em uma estrutura social baseada na troca, na propriedade coletiva e no extrativismo.
“Alguns índios acreditam que podem ter com o dinheiro a mesma relação que vivenciam com a floresta. Acham que o dinheiro estará sempre disponível. Mas, quando ele acabar, os recursos naturais estarão todos destruídos”, diz Marcos Terena, presidente do Comitê Intertribal. O antropólogo Rogério Pateo vai além: “Existe comunidade indígena que recebe royalties e freta avião para comprar pão. Os valores dos índios são muito diferentes dos nossos”.
Assim como na relação da Vale com os Xikrin, outro episódio recente mostra que as relações financeiras entre brancos e índios pode ser desastrosa. Em 1999, após a descoberta de uma jazida de diamantes na reserva indígena Roosevelt, em Rondônia, os garimpeiros passaram a negociar a permanência na mata com os índios Cinta Larga. A imprensa chegou a noticiar que os garimpeiros transferiam aos índios 5% da produção e pagavam R$ 10 mil por máquina utilizada dentro da reserva.
A invasão garimpeira intensificou-se e deu início a uma série de conflitos entre índios e brancos. Em três anos, ocorreram 33 mortes de garimpeiros e índios e a briga atingiu seu ápice no dia 7 de abril de 2004, quando 29 garimpeiros foram executados pelos índios. “A gente percebe que toda vez que os índios tiveram grandes quantidades de dinheiro na mão, compraram grandes problemas”, diz Luís Carlos Maretto, da Kanindé Associação de Defesa Etno-Ambiental, organização ambientalista que atua na região. “Se não houver um plano para a aplicação desses recursos, a gestão pode ser desastrosa.” A adoção de comitês com múltiplas partes interessadas, formados por comunidades indígenas, Funai, Ministério Público e empresas, poderia ser uma forma, apontada por ambientalistas, para mediar os conflitos que surjam a partir da assinatura dos contratos. O modelo ainda precisa ser definido, mas o País começa a adotar os fóruns multistakeholders para intermediação de atividades econômicas que envolvem interesses distintos. É o caso das round tables da soja e dos biocombustíveis, exemplos que poderiam ser seguidos.
Inversão na lógica
Mas, para os índios, o que deveria ser feito é inverter a lógica da relação entre índios e não-índios, que dura mais de 500 anos. Marcos Terena cobra a participação efetiva das comunidades no modelo de negócios: “Todos os projetos econômicos no Brasil feitos sobre territórios indígenas usam o termo ‘compensação’ para indenizações financeiras. É um modelo paternalista”, critica. “Queremos que o índio seja encarado como sócio majoritário do empreendimento.” O substitutivo em discussão no Congresso Nacional prevê que os índios podem se associar às empresas para explorar as riquezas minerais contidas em suas terras. Isso, ao se comparar às miçangas e espelhinhos, pode-se considerar um avanço, ao mesmo tempo que se abre toda uma discussão sobre a convivência dos índios, donos de identidades culturais singulares, com o modelo econômico do não-índio, e todas as decorrências dessa interação.
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Mapa da mina – Na fuga do colonizador, os índios, sem saber, instalaram-se nas áreas de subsolo mais rico
O mais completo levantamento sobre mineração em terras indígenas foi realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2005. Técnicos obtiveram no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) todas as solicitações de pesquisa e lavra em terras indígenas. O resultado revela o interesse das empresas pelo minério contido nessas reservas, mas não o tamanho delas, nem as principais riquezas que estão sob o solo. Com a Constituição de 1988, o DNPM passou a receber os requerimentos, embora não tenha permitido nenhuma pesquisa em terra indígena, até que a matéria fosse regulamentada. Os pedidos não são analisados, e podem se sobrepor. Devido à formação geológica, sabe-se somente que as áreas mais ricas em minério estão localizadas nos escudos cristalinos, como o das Guianas, ao norte, e o Brasileiro, ao sul, onde também está a maior parte das terras indígenas. O motivo é histórico:
“Com a chegada dos colonizadores, os índios fugiram das margens dos rios, subiram a planície amazônica e foram para lugares menos acessíveis para se proteger. Sem saber, acabaram se instalando nas áreas de maior potencial mineral”, diz José Antônio de Deus, chefe do Departamento de Geologia da UFMG.
Atualmente, 22% da área da Amazônia Legal é ocupada por terras indígenas. O levantamento do ISA mostra que, em alguns casos, o potencial mineral atinge quase a totalidade das reservas, como nas Ticajueiro, Kwaza do Rio São Pedro, Xikrin e Roosevelt. Em outras, como em Raposa Serra do Sol, que tem forte presença de não-índios, o garimpo de ouro e diamante é recorrente.
Processos com pedidos de pesquisa mineral: 5.064 Terras indígenas envolvidas: 132 Empresas envolvidas: 400
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As pedras no sapato de cada lado – Entenda o imbróglio jurídico da mineração em terras indígenas
Desde a promulgação da Constituição Federal, a regulamentação da mineração em terras indígenas é empurrada com a barriga pelo Congresso Nacional. Vários projetos de lei foram apresentados, mas o único encaminhado para a votação é o PL nº 1.610, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado pelo Senado.
A Câmara dos Deputados formou uma Comissão Especial para discutir a matéria. Os deputados estiveram nas reservas Yanomami e Cinta Larga e viajaram para a Austrália e o Canadá para entender como funciona a mineração em terras indígenas nesses países.
O relator Eduardo Valverde (PT-RO) apresentou um substitutivo, que ainda não foi votado e está aberto para emendas. Depois de votado na Comissão, segue para o plenário. A votação depende de vontade política. O senador Romero Jucá – atualmente líder do governo – garante que isso deve ocorrer ainda este ano, já que conta com apoio do governo e dele próprio. O substitutivo, porém, desagradou ao Instituto Socioambiental (ISA) e ao Instituto Brasileiro De Mineração (Ibram), que participaram ativamente das audiências públicas.
Um dos principais pontos é a consulta às comunidades indígenas. Ainda não está claro se elas terão poder de veto à mineração em suas terras. Raul Silva Telles do Valle, advogado do ISA, argumenta que, de acordo com o texto da lei, “o Congresso Nacional pode passar por cima da decisão dos índios”.
Eduardo Valverde, o relator, acredita ser pouco provável que isso aconteça, mas ressalva que o texto do substitutivo “é o possível de ser aprovado dentro de uma casa política, com interesses distintos”.
Já o vice-presidente do Ibram, Marcelo Tunes, afirma que “a decisão deve caber a toda sociedade brasileira, e não apenas à parcela indígena”, e defende que o Conselho de Segurança Nacional arbitre os conflitos que possam surgir.
Qualquer que seja a interpretação, todas desagradam às lideranças indígenas. Elas gostariam de discutir a mineração e outras questões no âmbito de um novo Estatuto do Índio, que tramita no Congresso desde 1994.
A nova corrida pelas riquezas do subsolo reabre a discussão sobre a exploração mineral em terras indígenas. Embora garantida pela Constituição, precisa evitar os velhos erros no trato com as comunidades
Por Ricardo Ferraz
Durante o século XVI, os colonizadores espanhóis Gonzalo Pizarro e Francisco de Orellana lançaram-se pela selva amazônica. Tinham acabado de conquistar o Peru e, diante da grandeza do Império Inca, decidiram tirar a prova de uma história contada pelos índios: a existência de uma cidade feita inteiramente de ouro, erguida sobre uma mina do mais valioso minério. A chamada Eldorado nunca foi encontrada, mas o homem branco jamais deixou de se interessar pelas riquezas minerais das terras indígenas.
Tanto que, no Brasil, algumas empresas chegaram a obter a concessão de lavra em terras indígenas. Mas, em 1988, a Constituição trouxe mais segurança para as comunidades, ao estabelecer que só se operassem as atividades de mineração “com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”. Como o subsolo brasileiro pertence à União, suas riquezas são de toda a população, e não apenas de quem ocupa a superfície. Isso significa que o Estado brasileiro terá de mediar o relacionamento entre tribos de 132 terras indígenas e 400 empresas mineradoras, de acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2005.
A matéria ainda precisa ser regulamentada. Enquanto isso não ocorre, a exploração está suspensa. Há 12 anos lideranças indígenas, ONGs e empresas mineradoras travam árdua batalha pelos corredores do Congresso Nacional, em torno do Projeto de Lei no 1.610, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR). “Como é muito difícil mudar a Constituição, não se trata de discutir se a mineração deveria ocorrer, mas como ela vai ocorrer”, explica Raul Silva Telles do Valle, coordenador do Programa de Política e Direito do ISA.
O projeto já passou por votação no Senado, mas emperrou em uma Comissão Especial, na Câmara dos Deputados. No início de julho, o relator, Eduardo Valverde (PT-RO), apresentou um substitutivo que desagradou tanto ambientalistas como representantes das empresas (quadro à pág. 38). Mas a discussão ganhou força, graças ao momento histórico que a indústria brasileira da mineração atravessa: um crescimento de 183% do faturamento desde 2002.
Nesse meio tempo, empurradas pela demanda aquecida por minério dos países emergentes, em especial da China, as empresas de mineração no Brasil faturaram R$ 46 bilhões em 2007 e pretendem investir cerca de R$ 76 bilhões até 2012. Os dados são do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), a entidade que representa as empresas do setor. “Procurar novas fronteiras passou a ser essencial para as empresas atenderem a demanda por minério, que deve cair um pouco, mas ainda permanecer alta nos próximos anos, por conta do alto nível de atividade da indústria”, diz Alexandre Gallotti, analista setorial de mineração da Consultoria Tendências.
Do outro lado, as riquezas são mais difíceis de quantificar: a biodiversidade da Região Amazônica e o patrimônio cultural dos povos indígenas. Embora hoje se reconheça a importância de preservá-las, elas não trazem lucro imediato e continuam a sofrer pres- são dos mais diversos agentes econômicos. “A parcela da sociedade que dita as regras ainda vê as relações econômicas como nossos antepassados colonizadores. Impõe um modelo tido como ideal que deve ser levado adiante, doa a quem doer”, afirma Ana Valéria Araújo, advogada especializada em direitos indígenas.
As mineradoras, entretanto, argumentam que preservar o meio ambiente, a cultura indígena e, ainda assim, explorar as jazidas é possível. Marcelo Ribeiro Tunes, diretor de assuntos minerários do Ibram, cita a situação de Austrália e Canadá, onde a mineração em terras de povos tradicionais é regulamentada, como exemplos que o Brasil deveria seguir (reportagem à página 40). “A não-regulamentação impede os índios de terem participação em algo previsto na Constituição e o País, de produzir riquezas”, diz ele.
Apostando nessa possibilidade, as empresas entraram com 5.064 processos no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), para pesquisar minérios em terras indígenas, de acordo com o ISA.
As maiores empresas são as que mais requereram, mas também há 66 registros de pessoas físicas e mineradoras menores.O ouro lidera a lista de interesse com mais de 50% dos pedidos, seguido pelo cobre e a cassiterita (estanho). Alguns minérios menos conheci- dos, mas tidos como estratégicos, também estão no rol de interesse das empresas, como nióbio e tungstênio, utilizados na indústria de materiais nucleares e na composição de ligas metálicas especiais.
Em junho do ano passado, representantes do Ibram, em jantar com o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, pediram agilidade no debate de questões que, segundo eles, travam o crescimento do setor. No cardápio, entre outras reivindicações, rapidez na tramitação do PL nº 1.610. Empresas de outros ramos, como transporte, alimentação e segurança, também podem se bene- ficiar com a aprovação do projeto. Como vêem a possibilidade de prestar serviços para as mineradoras, engrossam o lobby entre deputados e lideranças locais para que a lei seja aprovada, avalia uma fonte que preferiu não se identificar.
As riquezas minerais das terras indígenas teriam despertado o interesse até mesmo do banqueiro Daniel Dantas, conforme informou o jornalo Estado de S. Paulo. Grupo Opportunity possui áreas de mineração em terras indígenas no Pará, o que levantou a suspeita do delegado Protógenes Queiroz, que comandou a Operação Satiagraha, sobre “indícios de lavagem de capitais na aplicação desses recursos”.
A Vale do Rio Doce, a maior mineradora brasileira, é autora de 231 requerimentos. A empresa convive com os índios da reserva Xikrin do Cateté, na área de Carajás, em Parauapebas, no Pará, onde tem uma concessão de lavra, obtida antes da Constituição de 1988.
Em fevereiro de 2007, PÁGINA22 retratou a relação da Vale com os indígenas e o choque cultural entre a empresa e a comunidade indígena, que desembocou em uma série de conflitos, até mesmo com o bloqueio da ferrovia por onde se escoa o minério de ferro. A assessoria de imprensa da Vale informou, por meio de nota, que “não desenvolve qualquer atividade de pesquisa ou lavra em terras indígenas”. A reportagem solicitou entrevista com um representante da empresa sobre a relação com os indígenas, mas foi aconselhada a procurar o Instituto Brasileiro de Mineração.
Atividade de exceção
É justamente por causa da dificuldade de intermediar conflitos entre índios e não-índios que os ambientalistas defendem regras mais restritivas para a mineração nessas áreas. Para eles, a atividade deveria ser uma exceção, aceita somente nos casos em que as jazidas fossem comprovadamente estratégicas, ou seja, com minérios raros, existente unicamente dentro das reservas.
“A mineração em terras indígenas pode trazer mais problemas do que benefícios econômicos para o País. Cuidar dos índios afetados pelo contato com o homem branco pode sair mais caro para o Estado brasileiro”, argumenta Telles do Valle, do ISA.
Seria incorreto dizer que as conseqüências se repetem em todas as tribos indígenas. Existem povos acostumados ao convívio com o não-índio, mas há comunidades isoladas – como os habitantes do Rio Envira, no Acre, cujas fotos foram divulgadas recentemente. De maneira geral, porém, os antropólogos afirmam que os impactos ambientais causados pela mineração podem mudar a relação do índio com a floresta. “Povos que dependem da caça para comer, por exemplo, poderiam ver os bichos desaparecer depois de a floresta se transformar em um grande buraco”, diz Rogério Pateo, antropólogo do programa de monitoramento de terras indígenas do ISA.
Mas o fator que mais preocupa é a convivência com o não-índio. Doenças, casos de abuso sexual contra mulheres indígenas e a perda da identidade cultural são comuns nas 192 áreas em que a mineração se dá ilegalmente na forma de garimpo, levantou a Comissão Especial Parlamentar. “Existe uma dificuldade tremenda na gestão das equipes de trabalhadores.
É muito complicado controlar a entrada de bebidas alcoólicas, drogas e até de produtos triviais, mas que causam sérios danos. Há populações inteiras que não conhecem sal e podem sofrer com hipertensão”, diz Pateo.
O exemplo mais desastroso dessa convivência deu-se no fim da década de 1980, quando garimpeiros invadiram as terras dos Yanomami próximas à fronteira com a Venezuela. Nas contas da própria tribo, cerca de 40 mil garimpeiros vieram atrás do ouro, uma população cinco vezes maior do que a que ali vivia. Além da utilização de mercúrio, que contaminou a terra e os rios, o que se viu foi um surto de malária e outras doenças, responsável pela morte de cerca de 1.200 índios.
É importante diferenciar o garimpo ilegal de empresas mineradoras legalmente constituídas que, em tese, teriam condições de seguir as regras estabelecidas pelo poder público. Mas a xawara, como os Yanomâmichamam as doenças causadas pelos homens brancos, deixou marcas tão profundas que fez os líderes se posicionarem contra a mineração em suas terras. “Os garimpeiros prometeram ajudar a gente, mas nunca deixaram nada. Com as empresas também não haverá benefícios”, diz Geraldo Kuesithëri Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, uma organização que representa os índios. “Os Yanomami se lembram muito do sofrimento. Não queremos sofrer mais. A mineração traz doença e morte.”
É justamente a área Yanomami a campeã nos requerimentos de pesquisa mineral, com 640 processos encaminhados ao DNPM. Este foi um dos motivos que levaram os deputados da Comissão Parlamentar a visitar a tribo em fevereiro deste ano. Sem terem sido avisados previamente da visita e ao constatar que não havia nenhum representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) na comitiva, os líderes Yanomamiconsideraram o episódio uma afronta.
Um relatório feito pela Hutukara diz que a Comissão pretendia convencê-los a aceitar a mineração na região. Informa, por exemplo, que o deputado Márcio Junqueira (DEM-RR) tentou dar facões e anzóis aos índios. Presentes que foram devolvidos. Nas palavras do líder Paraná Yanomami, eles “não podiam aceitar porque quem dava não havia sido convidado”. Márcio Junqueira – que admite já ter garimpado em terras indígenas – defende uma legislação menos restritiva, mas se coloca contra o garimpo de ouro nas terras Yanomami e diz que tudo não passou de um mal-entendido: “Fiz uma alusão à passagem bíblica de que não basta dar o peixe, tem de ensinar a pescar”.
Para outras lideranças indígenas, o índio já sabe pescar. Tem de aprender a lidar é com o dinheiro. O Projeto de Lei discutido no Congresso Nacional prevê que os royalties pagos aos índios pela exploração mineral não podem ser inferiores a 4% do faturamento e devem ser geridos pela própria comunidade. Inegavelmente, isso introduz a lógica capitalista em uma estrutura social baseada na troca, na propriedade coletiva e no extrativismo.
“Alguns índios acreditam que podem ter com o dinheiro a mesma relação que vivenciam com a floresta. Acham que o dinheiro estará sempre disponível. Mas, quando ele acabar, os recursos naturais estarão todos destruídos”, diz Marcos Terena, presidente do Comitê Intertribal. O antropólogo Rogério Pateo vai além: “Existe comunidade indígena que recebe royalties e freta avião para comprar pão. Os valores dos índios são muito diferentes dos nossos”.
Assim como na relação da Vale com os Xikrin, outro episódio recente mostra que as relações financeiras entre brancos e índios pode ser desastrosa. Em 1999, após a descoberta de uma jazida de diamantes na reserva indígena Roosevelt, em Rondônia, os garimpeiros passaram a negociar a permanência na mata com os índios Cinta Larga. A imprensa chegou a noticiar que os garimpeiros transferiam aos índios 5% da produção e pagavam R$ 10 mil por máquina utilizada dentro da reserva.
A invasão garimpeira intensificou-se e deu início a uma série de conflitos entre índios e brancos. Em três anos, ocorreram 33 mortes de garimpeiros e índios e a briga atingiu seu ápice no dia 7 de abril de 2004, quando 29 garimpeiros foram executados pelos índios. “A gente percebe que toda vez que os índios tiveram grandes quantidades de dinheiro na mão, compraram grandes problemas”, diz Luís Carlos Maretto, da Kanindé Associação de Defesa Etno-Ambiental, organização ambientalista que atua na região. “Se não houver um plano para a aplicação desses recursos, a gestão pode ser desastrosa.” A adoção de comitês com múltiplas partes interessadas, formados por comunidades indígenas, Funai, Ministério Público e empresas, poderia ser uma forma, apontada por ambientalistas, para mediar os conflitos que surjam a partir da assinatura dos contratos. O modelo ainda precisa ser definido, mas o País começa a adotar os fóruns multistakeholders para intermediação de atividades econômicas que envolvem interesses distintos. É o caso das round tables da soja e dos biocombustíveis, exemplos que poderiam ser seguidos.
Inversão na lógica
Mas, para os índios, o que deveria ser feito é inverter a lógica da relação entre índios e não-índios, que dura mais de 500 anos. Marcos Terena cobra a participação efetiva das comunidades no modelo de negócios: “Todos os projetos econômicos no Brasil feitos sobre territórios indígenas usam o termo ‘compensação’ para indenizações financeiras. É um modelo paternalista”, critica. “Queremos que o índio seja encarado como sócio majoritário do empreendimento.” O substitutivo em discussão no Congresso Nacional prevê que os índios podem se associar às empresas para explorar as riquezas minerais contidas em suas terras. Isso, ao se comparar às miçangas e espelhinhos, pode-se considerar um avanço, ao mesmo tempo que se abre toda uma discussão sobre a convivência dos índios, donos de identidades culturais singulares, com o modelo econômico do não-índio, e todas as decorrências dessa interação.
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Mapa da mina – Na fuga do colonizador, os índios, sem saber, instalaram-se nas áreas de subsolo mais rico
O mais completo levantamento sobre mineração em terras indígenas foi realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2005. Técnicos obtiveram no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) todas as solicitações de pesquisa e lavra em terras indígenas. O resultado revela o interesse das empresas pelo minério contido nessas reservas, mas não o tamanho delas, nem as principais riquezas que estão sob o solo. Com a Constituição de 1988, o DNPM passou a receber os requerimentos, embora não tenha permitido nenhuma pesquisa em terra indígena, até que a matéria fosse regulamentada. Os pedidos não são analisados, e podem se sobrepor. Devido à formação geológica, sabe-se somente que as áreas mais ricas em minério estão localizadas nos escudos cristalinos, como o das Guianas, ao norte, e o Brasileiro, ao sul, onde também está a maior parte das terras indígenas. O motivo é histórico:
“Com a chegada dos colonizadores, os índios fugiram das margens dos rios, subiram a planície amazônica e foram para lugares menos acessíveis para se proteger. Sem saber, acabaram se instalando nas áreas de maior potencial mineral”, diz José Antônio de Deus, chefe do Departamento de Geologia da UFMG.
Atualmente, 22% da área da Amazônia Legal é ocupada por terras indígenas. O levantamento do ISA mostra que, em alguns casos, o potencial mineral atinge quase a totalidade das reservas, como nas Ticajueiro, Kwaza do Rio São Pedro, Xikrin e Roosevelt. Em outras, como em Raposa Serra do Sol, que tem forte presença de não-índios, o garimpo de ouro e diamante é recorrente.
Processos com pedidos de pesquisa mineral: 5.064 Terras indígenas envolvidas: 132 Empresas envolvidas: 400
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As pedras no sapato de cada lado – Entenda o imbróglio jurídico da mineração em terras indígenas
Desde a promulgação da Constituição Federal, a regulamentação da mineração em terras indígenas é empurrada com a barriga pelo Congresso Nacional. Vários projetos de lei foram apresentados, mas o único encaminhado para a votação é o PL nº 1.610, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado pelo Senado.
A Câmara dos Deputados formou uma Comissão Especial para discutir a matéria. Os deputados estiveram nas reservas Yanomami e Cinta Larga e viajaram para a Austrália e o Canadá para entender como funciona a mineração em terras indígenas nesses países.
O relator Eduardo Valverde (PT-RO) apresentou um substitutivo, que ainda não foi votado e está aberto para emendas. Depois de votado na Comissão, segue para o plenário. A votação depende de vontade política. O senador Romero Jucá – atualmente líder do governo – garante que isso deve ocorrer ainda este ano, já que conta com apoio do governo e dele próprio. O substitutivo, porém, desagradou ao Instituto Socioambiental (ISA) e ao Instituto Brasileiro De Mineração (Ibram), que participaram ativamente das audiências públicas.
Um dos principais pontos é a consulta às comunidades indígenas. Ainda não está claro se elas terão poder de veto à mineração em suas terras. Raul Silva Telles do Valle, advogado do ISA, argumenta que, de acordo com o texto da lei, “o Congresso Nacional pode passar por cima da decisão dos índios”.
Eduardo Valverde, o relator, acredita ser pouco provável que isso aconteça, mas ressalva que o texto do substitutivo “é o possível de ser aprovado dentro de uma casa política, com interesses distintos”.
Já o vice-presidente do Ibram, Marcelo Tunes, afirma que “a decisão deve caber a toda sociedade brasileira, e não apenas à parcela indígena”, e defende que o Conselho de Segurança Nacional arbitre os conflitos que possam surgir.
Qualquer que seja a interpretação, todas desagradam às lideranças indígenas. Elas gostariam de discutir a mineração e outras questões no âmbito de um novo Estatuto do Índio, que tramita no Congresso desde 1994.
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