A sustentabilidade desmonta a velha noção de que é preciso primeiro enriquecer para depois cuidar do meio ambiente
Por Flavia Pardini
Há coisa de dois meses, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comemorou em discurso a ascensão do Brasil ao status de país de classe média ao comparar a trajetória do crescimento econômico dos últimos tempos a uma águia “que descobriu que pode voar mais alto do que costumava”.
Ao contrário da galinha, não muito apta a fazer uso das asas, a águia tem vôo estável, deduz-se da retórica do presidente. Melhor, é vôo de qualidade. “Não nos interessa crescer de qualquer forma, temos que considerar o meio ambiente para preservação da vida futura”, advertiu Lula.
Segundo relatos da imprensa, o presidente então alertou que, levando-se em conta as carências sociais e o fato de que muitos brasileiros ainda vivem na miséria, não se pode considerar a natureza intocável. E, assim, apesar da galinha transformada em águia, ressurge a velha idéia de que alguns são “muito pobres para ser verdes”.
Em outras palavras, enquanto não se faz a redução da pobreza com crescimento econômico, o meio ambiente continua como algo à parte, um luxo para quem pode, e não uma necessidade.
Implícita vem a noção de que o crescimento econômico trará, automaticamente, preservação ambiental – vulgarmente conhecida, nos círculos econômicos, como Curva Ambiental de Kuznets. Celebrada nos anos 90, época dourada da doutrina neoliberal, tal receita hoje está sob questionamento – uma extensa literatura dedica-se a apontar suas lacunas, mas bastaria resgatar o espírito original da pesquisa de Simon Kuznets, o economista que lhe dá nome.
Curva de quê?
Na forma de um U invertido, a Curva Ambiental de Kuznets (CAK) representa a relação entre renda per capita e degradação ambiental: enquanto aumenta a renda de cada cidadão de um país – em geral medida pelo Produto Interno Bruto (PIB) divido pela população -, crescem também os danos ao meio ambiente, que finalmente atingem um ápice e passam a diminuir, embora a renda continue aumentando.
O início da onda da CAK – pelo menos uma centena de artigos sobre o tema foram publicados em revistas científicas, com o devido eco nas páginas de opinião e editoriais da imprensa – é apontado em um paper de 1991 de autoria dos economistas americanos Gene Grossman e Alan Krueger.
Para investigar os impactos ambientais de um eventual acordo de livre-comércio na América do Norte, eles utilizaram medidas de poluição em cidades de 42 países e examinaram, por meio de técnicas econométricas, a relação entre qualidade do ar e crescimento econômico. Encontraram o tal U invertido nos casos do dióxido de enxofre (SO2) e dos materiais particulados, ou “fumaça”. Três anos depois, foi firmado o Nafta entre Estados Unidos, Canadá e México.
Estudo semelhante foi realizado pelos pesquisadores Nemat Shafik e Sushenjit Bandyopadhyay para embasar o World Development Report, do Banco Mundial, em 1992. Das dez medidas de qualidade ambiental usadas, quatro demonstraram comportamento na forma de U invertido – falta de água, falta de saneamento urbano, partículas suspensas e SO2 – quando relacionados à renda. O relatório do Banco Mundial – que nos anos 90 estava largamente engajado em fazer os países em desenvolvimento encontrar a via do crescimento econômico por meio dos “ajustes estruturais”, ou seja, privatização, desregulamentação e liberalização comercial – ajudou a popularizar a CAK.
A lógica por trás da inversão da tendência – e do U – é a de que, quando um país começa a se industrializar, a degradação ambiental aumenta rápido, porque as pessoas estão mais interessadas em garantir empregos e renda do que em cuidar da qualidade do ar ou da água – ou seja, são muito pobres para exigir regulamentação. À medida que a renda aumenta, os cidadãos começam a valorizar o meio ambiente e a demandar regras e fiscalização sobre os setores industriais. Assim, conclui-se que, quanto mais rico o país, melhor será sua qualidade ambiental – com a premissa de que há agências reguladoras, com informação total sobre os custos e os benefícios de conter a poluição, que respondem pronta e positivamente às demandas da sociedade.
Em geral, os estudos econométricos sobre a CAK apontam que o ápice da degradação ambientalocorre quando a renda per capita atinge algum ponto entre US$ 5 mil e US$ 8 mil, e depois passa a diminuir. A mensagem, mesmo que subliminar, é a de que o crescimento continuado, em vez de causar degradação, é sua solução. De acordo com os World Development Indicators (WDI) do Banco Mundial, a renda per capita no Brasil em 2005 era de US$ 8.474 pela metodologia PPP, que compara dados de diferentes países em termos reais segundo seu poder de compra. Se a CAK fosse para valer, os brasileiros poderiam dormir tranqüilos.
Paraísos de poluição
Na vida real, entretanto, as coisas nem sempre funcionam no formato esperado. Boa parte da extensa literatura sobre a CAK encarrega-se de provar que ela existe apenas no papel e graças às técnicas econométricas usadas.
“Quando levamos em conta diagnósticos estatísticos, testes de especificação e usam-se técnicas apropriadas, descobrimos que a CAK não existe”, escreveu o economista David Stern, do Rensselaer Polytechnic Institute, em Nova York. “Em vez disso, obtemos uma visão mais realista do efeito do crescimento econômico e das mudanças tecnológicas sobre a qualidade ambiental. Parece que a maioria dos indicadores de degradação ambiental aumenta monotonicamente com a renda (…)”.
É o caso das emissões de gases causadores do efeito estufa, que em raríssimos estudos mostram uma relação de U invertido com a renda e, provavelmente, refletem a realidade: os maiores emissores são os países mais ricos. Mas, com nações populosas rapidamente galgando os degraus do crescimento – a renda per capita na Índia ainda é US$ 2.222 e, na China, de US$ 4. 088, segundo o WDI -, o debate sobre seu impacto ambiental é essencial – não só para as preocupações globais com as mudanças climáticas, mas principalmente para as condições locais de vida. As críticas à CAK são importantes, portanto, porque mostram o que ficou faltando nessa discussão.
Ao provar que a degradação diminuicom o aumento da renda no caso de alguns indicadores – especialmente SO2 -, a CAK não capta o efeito todo do crescimento.
Embora tenham sido capazes de conter as emissões de SO2, os países ricos passaram nos últimos anos a emitir mais CO2 e a produzir mais rejeitos sólidos, aponta Stern – ou seja, no geral, os efeitos do crescimento sobre o meio ambiente não declinaram. Em vez disso, o que os estudos sobre a famosa curva podem mostrar é que a redução da poluição nas nações ricas talvez esteja relacionada com sua transferência – por meio do comércio e da migração da indústria pesada – para as nações mais pobres, às vezes chamadas de “paraísos de poluição”.
Um estudo baseado na teoria da Troca Ecológica Desigual analisou a pegada ecológica per capita de 137 países e mostrou que nações de renda baixa e média com grande proporção de exportações para os países industrializados caracterizam-se pelo baixo consumo de recursos ambientais.
James Rice, autor do estudo, argumenta que isso é conseqüência da utilização desproporcional do espaço ambiental global pelas nações centrais em detrimento daquelas integradas de maneira menos favorável à economia global. O problema, mdestaca Rice, não é apenas a riqueza ou a pobreza, “mas as complexas inter-relações entre elas na esfera global”.
A linha de pesquisa centrada nas desigualdades entre os países no sistema mundial indica que, em razão da finitude dos recursos materiais e do limite na capacidade de absorção dos ecossistemas, a utilização do meio ambiente global é feita cada vez mais na forma de ganha-perde – em oposição à idéia embutida na CKA de que o crescimento trará ganhos para todos.
Pobreza ecológica
Além de ignorar o sistema, seja ele uma economia local, seja o comércio global, a idéia por trás da CKA descola-se da realidade por não assumir que existe feedback entre a degradação ambiental e a economia. A relação é vista como tendo apenas uma mão – mais crescimento leva a menos poluição – e não o seu contrário – mais poluição leva a menos crescimento. Ignora a possibilidade de os efeitos da degradação ambiental serem irreversíveis e, portanto, afetarem a possibilidade de geração de renda.
Em uma análise que subverte a premissa da CKA de que a natureza absorve danos ambientais em ritmo constante, o economista francês Fabien Prieur demonstra que uma economia, tendo degradado gravemente o meio ambiente por considerar o crescimento mais importante, arrisca ver-se incapaz de reverter a tendência.
O simples fato de tentar manter a qualidade ambiental pode não ser suficiente para evitar que a economia, a longo prazo, apresente as características de uma “armadilha de pobreza ecológica”, que, por sua vez, podem levar à pobreza econômica.
De fato, ecoa o economista australiano Philip Lawn, o incremento da qualidade ambiental e o desenvolvimento humano contínuo só podem ser alcançados se forem incluídas na equação as noções de suficiência, eqüidade, manutenção do capital natural e melhorias qualitativas.
Um dos poucos pesquisadores a dedicar- se à teoria em vez de à observação empírica, Lawn conclui que a relação meio ambiente-renda pode ter o formato da CKA até um determinado ponto, mas não a longo prazo – porque as leis da termodinâmica impõem limites ao aumento da eficiência por meio do progresso tecnológico e, em determinado momento, as melhorias ambientais passam a ter rendimentos decrescentes, ou seja, há menos disposição de pagar por elas.
O bem-estar, ontem e hoje
Mas, antes de mesmo de se considerar o sistema de comércio mundial, a irreversibilidade dos processos e o fato de que a economia é parte integrante de um sistema maior – a biosfera -, a CKA falha ao adotar o crescimento econômico como medida de riqueza. É notório que o PIB mede a produção de bens e serviços pelos cidadãos de um país em um determinado período, mas não o seu bem-estar. Não há apenas benefícios decorrentes do incremento na produção, mas também custos, entre eles danos à saúde, à cultura e, voilà, ao meio ambiente. Além disso, ao simplesmente dividir o PIB total pela população para obter a renda média e, então, procurar pelo U invertido, convenientemente se escondem as desigualdades – no Brasil, apesar dos avanços recentes, os 10% mais ricos ainda concentram mais de 40% da renda total.
Um dos primeiros a destacar que o crescimento tem custos além de benefícios foi o criador do sistema de contas nacionais em que o PIB é peça central – o economista russo Simon Kuznets (1901-1985). Vencedor do Nobel de Economia em 1971 por sua pesquisa, que, ao relacionar crescimento econômico e desigualdade de renda, encontrou uma curva no formato de um U invertido, Kuznets dedicou a vida inteira ao desenvolvimento cuidadoso de medidas de renda e de formação de capital, que inexistiam até a década de 40.
A curva original de Kuznets, ao contrário de sua prima ambiental, tem as desigualdades como uma das variáveis: para crescer as economias gradualmente abandonam a agricultura e se dedicam à indústria, o que dá margem a um período de grande desigualdade, mas, com o crescimento econômico e mais oportunidades de educação, a parcela mais pobre da população ganha poder político para mudar o status quo.
Kuznets defendia que, para desenhar um sistema de contas nacional, é preciso começar com a visão clara dos objetivos da atividade econômica – a renda nacional existe para o bem-estar do homem, e não o homem para aumentar a capacidade do país, escreveu – e a diferenciação entre bens intermediários e bens finais. Os sistemas de contas nacionais estabelecidos após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, ignoraram a abordagem de Kuznets, e até hoje se confunde crescimento medido pelo PIB com desenvolvimento.
Os livros-texto de Economia em geral usam a palavra “utilidade” no lugar de “bem estar” e assumem que ela é equivalente à renda, por meio da qualos indivíduos revelam suas preferências – em um mercado, o conjunto das preferências individuais leva a um resultado positivo para o conjunto. O dilemma do crescimento com desigualdade, entretanto, é uma das indicações de que nem sempre é possível beneficiar a todos, sem prejudicar ninguém. No contexto da sustentabilidade, essa equação é ainda mais complicada, pois inclui o bem-estar das futuras gerações.
Diante das evidências de que mais crescimento econômico não é a resposta para sustentar o bem-estar ou a integridade ambiental, o economista americano John Gowdy lança uma série de perguntas. De quanto crescimento precisamos para garantir dinheiro para as coisas materiais que contribuem para tornar as pessoas felizes? Podemos nos desenvolver sem crescer? Um país pode parar de crescer economicamente ou isso o privaria da tecnologia, do investimento de capital e do dinamismo empreendedor necessários para competir em uma economia capitalista? A transição para uma economia da felicidade exigiria quais políticas? E, finalmente, quão diretamente está o bem-estar humano relacionado com a preservação de ecossistemas e de formas de vida não-humanas necessárias para a sobrevivência dos homens a longo prazo?
Segundo Gowdy, as respostas provavelmente virão de áreas da Economia que integram diferentes conhecimentos – biologia, antropologia, psicologia -, de forma a produzir uma melhor compreensão sobre o bem-estar imediato e como os homens se encaixam no restante do mundo natural.
Sem dúvida, bem melhor do que se esconder atrás de uma curva.