Milton Santos entendia território como inerente aos seres humanos que o habitam e modificam permanentemente. Nada mais atual no debate da sustentabilidade
Por Amália Safatle
Em A Natureza do Espaço: Razão e emoção, técnica e tempo, publicado em 1996, o geógrafo Milton Santos expõe que o conceito de território não pode ser separado dos seres humanos que o habitam e modificam permanentemente. Nada mais atual, em se tratando da intensa e brutal modificação imposta pelo homem à vida no planeta. Ou, mais precisamente, como observa José Eli da Veiga nesta edição, a todo ser vivente, no fino invólucro que envolve essa densa massa de rocha fundida, 160 quilômetros abaixo da superfície e 160 quilômetros acima, até a termosfera. O nosso grande território.
Assim, além de forma – como numa fria imagem registrada por satélite -, território é também função, explica Santos: resultado efervescente de ações e interações históricas, culturais, econômicas e políticas. O homem molda o espaço, que, modificado, molda o homem. Em entrevista nesta edição, a historiadora Arlene Clemesha, por exemplo, descreve em que medida o conflito territorial no Oriente Médio, com a ocupação da Faixa de Gaza, levou à criação do grupo Hamas e fez acirrar seu extremismo.
Na mão inversa, foi a articulação de pessoas em torno de uma identidade cultural, social e histórica que levou à criação de um território. Reportagem nesta edição retrata, no Vale do Ribeira, no extremo Sul do interior de São Paulo, contornos delineados independentemente de fronteiras físicas ou políticas. Trata-se de um dos 60 territórios assim mapeados pelo governo federal, que neles reconhece a necessidade de despender atenção maior diante de dificuldades socioeconômicas que também os caracterizam.
A ação, chamada Territórios da Cidadania, é governamental, mas de nada vale sem a participação da população local. Como escreve o professor Ignacy Sachs, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, é um programa que promove o desenvolvimento endógeno. Nem para dentro, nem para fora, mas a partir de dentro – desarollo desde adentro, segundo a formulação do economista chileno Oswaldo Sunkel.
Enquanto algumas fronteiras operam bem dentro dessa maleabilidade, a clara definição de contornos territoriais, de uso e ocupação do solo e de um zoneamento ecológico-econômico torna-se crucial em um país que precisa saber conciliar a conservação de grandes ativos naturais com a produção de alimentos, energia e o desenvolvimento de sua infraestrutura. É o que mostram as reportagens sobre regularização fundiária, que esmiúça a complexa teia das propriedades rurais na Amazônia, e sobre o Código Florestal, terreno em que se dá um dos maiores embates entre visões de desenvolvimento no Brasil, e que precisa encontrar uma intersecção, um common ground.
Uma abordagem inovadora, no tocante à infraestrutura, é a chamada Avaliação Ambiental Estratégica. Ela enriquece a ideia de território incorporando a variável tempo. Ao considerar o ambiente na estaca zero de empreendimentos como grandes hidrelétricas e estradas, na fase em que ainda são planejados, inclui a noção de processo e avalia os impactos ambientais não somente no espaço físico, mas em espaços temporais.
A cultura também constrói seus territórios. Quando, por exemplo, a gastronomia se apropria das culinárias regionais para inseri-las em novos contextos, brincando de “desterritorializar” e “reterritorializar”. E quando a Língua Portuguesa, que é uma espécie de nação, unifica-se com a mesma língua – mas que é diferente – de outros países lusófonos para formar um caldo único de temperos diversificados.
E a Geografia, que é tão humana, estende-se às territorializações mais triviais. As que se vê todo dia na rua, como o cachorro demarcando território nos postes. Observações que ganham profundidade quando nos abrimos para o espaço público, compartilhável, as calçadas do nosso planeta.