Surgem convergências em meio às arestas na discussão sobre uso e ocupação do solo no Brasil
Por Amália Safatle
Que o setor produtivo e os ambientalistas se enfrentam duramente ao esquadrinhar terras destinadas ao cultivo agropecuário e terras voltadas para a conservação da natureza é sabido de longa data.
Notícia mesmo está em possíveis pontos de convergência e intersecção entre esses históricos antagonistas. Ainda que muitos deles próprios não se deem conta disso. Três fatos, juntos, falam por si.
Primeiro. No final do ano passado, o governo federal lançou o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, que prevê a redução das emissões de carbono entre 2009 e 2017 em razão do combate ao desmatamento na Amazônia, que cairia para cerca de 7 milhões de hectares somados nesse período.
Segundo. O Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia, assinado por nove organizações não-governamentais, propôs zerar o desmate ao fim de sete anos. Até atingir a meta em 2015, a floresta derrubada somaria cerca de 4 milhões de hectares.
Terceiro. A consultoria econômica LCA fez um estudo em que projeta o desmatamento até 2020, levando em conta a necessidade de uso da terra para produção agropecuária dentro das condições tradicionais de produção existentes hoje no País.
O levantamento preliminar, em fase de conclusão, considerou variáveis macroeconômicas, tais como taxa de câmbio, de inflação, crescimento da economia mundial, demanda e preço de commodities, balizadas por três cenários, de alto, de médio e de baixo crescimento econômico. No baixo, seriam necessários, para a produção, 9 milhões de hectares no País, sendo 6,8 milhões na Amazônia. No alto, 11 milhões no território nacional e 8 milhões na região amazônica.
Some-se a isso um cálculo grosseiro. O bioma amazônico no País tem 420 milhões de hectares. A área desmatada corresponde a 18%, ou 75 milhões de hectares. Admitindo-se que o tipping point, limite até o qual a floresta ainda mantém suas capacidades vitais, é de 20%, sobrariam 2%, ou 8 milhões de hectares.
Quem relacionou esses fatos e números foi Luis Laranja, coordenador do programa de agricultura e meio ambiente de uma ONG, o WWF-Brasil – entidade que encomendou o estudo da LCA. Com isso, conclui: em espaços de tempo similares, números como 7 milhões, 4 milhões, 6,8 milhões ou 8 milhões não diferem tanto entre si em ordem de grandeza, se comparados às diferenças que os setores alimentam uns contra os outros. Governo, ONGs e iniciativa privada estariam, no fim das contas, falando praticamente a mesma língua. “Aqui tem uma conversa e uma oportunidade de convergência, pela qual podemos otimizar a produção e garantir a conservação”, afirma.
A visão de Laranja não é isolada, e não são apenas os números que conversam. Até o final do ano passado, por exemplo, atores de trupes diferentes sentavam-se com relativa frequência à mesma mesa para debater possíveis pontos em comum no teor do Código Florestal. Quem poderia imaginar diálogos entre Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e Greenpeace? Aproximações, ainda que frustradas, entre os ministérios da Agricultura (Mapa), do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA)? ONGs, entre as quais o Greenpeace, procurando ouvir a opinião do atual secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Xico Graziano, personagem com berço e trajetória no agronegócio e passagem no governo paulista pela pasta da Agricultura?
Mais que fiel espelho do embate entre as alas conservacionista e produtiva, o Código reflete todo o grande impasse do desenvolvimento em um país onde a discussão de temas fundamentais facilmente reduz-se a um bombardeio jurídico e legislativo. A profusão de propostas de modificação do Código é tanta que essas vão desde extinguir a figura jurídica da Reserva Legal, até elevar seus percentuais para 90% na Amazônia, 50% no Cerrado, 20% no campos gerais e 35% nas demais áreas. Outra defende expropriar as terras de quem não cumpre a Reserva na Amazônia legal, enquanto um projeto, o PL 3. 225/2008, um dos mais debatidos ultimamente, permite computar a Área de Proteção Permanente (APP) no cálculo da Reserva Legal.
Duro demais ou até impossível de ser aplicado na visão de uns; instrumento vital para a sustentabilidade ambiental e agrícola na visão de outros. Fato é que não tem sido eficaz, à medida que é largamente descumprido. Flexibilizá-lo, em vez de enfraquecê-lo, não o fortaleceria, tornando-o mais conciliável com a atividade produtiva, e então respeitado?
Essa é uma pergunta que pode soar herética em algumas alas ambientalistas. Mas, em outras, não. Promover uma ampla, profunda e civilizada discussão entre as diversas linhas de pensamento sobre alterações no Código – seja em ambientes formais, seja nos informais e no Parlamento – parece ser a única maneira de pôr fim ao impasse, e essa é a primeira constatação que aponta no horizonte da convergência. “O ambientalismo precisa tirar a bandeira fincada, pois a perda ambiental está acontecendo agora”, diz Graziano, ao defender que o movimento esteja aberto a flexibilizações.
“Sabemos que a lei não vai impedir o desmatamento, mas enfraquecê-la vai acelerá-lo”, diz Marcio Astrini, da campanha da Amazônia do Greenpeace. A reportagem pergunta se flexibilizar, a seu ver, significa enfraquecer. “Não, desde que essa flexibilização ajude na preservação da floresta”, responde. “A gente vai até um certo limite, mas é verdade que o Código Florestal precisa ser atualizado, para que a produção e a preservação sejam, ao mesmo tempo, mais efetivas”, afirma.
“Uma boa solução para o impasse é uma que vai descontentar todos os lados. Cada um terá de ceder um pouco”, acredita Evaristo de Miranda, chefe-geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Monitoramento por Satélite, para quem o Código Florestal, como é hoje, é simplesmente impossível de ser cumprido (leia quadro abaixo).
Mas foi o contrário que se deu nas últimas reuniões de um Grupo de Trabalho criado em outubro passado pelo MMA, MDA e Mapa para discutir mudanças no Código. Formado por parlamentares das comissões de agricultura e meio ambiente do Congresso, um representante da sociedade civil e um da CNA, o grupo viu as negociações azedarem e acabou extinto no final do ano.
Segundo ambientalistas que acompanhavam as reuniões, ruralistas apoiados pelo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, teriam esticado demais a corda ao propor, além do cômputo de APPs na Reserva Legal, anistia a quem desmatou e ocupou essas áreas até julho de 2007, e redução da reserva para 50% na Amazônia. As ONGs também questionaram a baixa representatividade diante da maioria ruralista.
Para André Lima, advogado e coordenador- adjunto do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), “Stephanes levava as discussões com racionalidade e tranquilidade, até que radicalizou, provavelmente pressionado por suas bases”. Os ambientalistas foram barrados na última reunião do GT e o ministro anunciou o fim das negociações.
A má experiência do grupo de trabalho pode dar a entender que qualquer convergência ou diálogo será impossível. Justamente neste momento em que o Código Florestal virou pivô de conflitos no primeiro escalão do governo, principalmente entre Stephanes e Carlos Minc, do MMA, em meio à falta de uma articulação neutra e equilibrada.
Minc chegou a afirmar que o problema do meio ambiente não é com a agricultura, é com o ministro Stephanes. E que a grande agricultura, que o ministro representa, está querendo aproveitar a necessidade de mudança do Código para aprovar medidas de seu único interesse.
Quem poderia cumprir o papel de articulador, capaz de alçar o Código, de motivo de bate-boca, para um conjunto de regras consistente, bem amarrado e respeitado por todos os lados? A Casa Civil, personificada por Dilma Rousseff, com todo seu viés desenvolvimentista?
Segundo Xico Graziano, Carlos Minc estaria disposto a retomar a discussão “em uma base um pouco menos governista”, formando um grupo diversificado de interlocutores. “Se ele me Convidar, estou disposto a apresentar minhas ideias”, afirma.
No final do ano passado, o secretário chegou a formular uma proposta, segundo suas palavras, “conciliadora”. A saída está em aprofundar, ampliar e diversificar o debate, defende André Lima, do Ipam. “O desmatamento é um tema muito forte para o Brasil. A discussão sobre ele não pode ser feita em uma sala, por meia dúzia de ilustrados.” Por isso, propõe que se instale um processo de discussão parecido com o que houve em torno da Lei de Gestão de Florestas Públicas – proposta em dezembro de 2003 e sancionada em fevereiro de 2006. Segundo Lima, foram dois anos de debate profícuo, audiências públicas, discussão por meio da mídia, atuação de grupos de trabalhos com alta representatividade, debate legislativo intenso.
Quando o projeto de leichegou à votação, toda uma discussão prévia já tinha ocorrido. “O mesmo deveria acontecer para o Código. Dessa forma, a gente pode obter, em dois ou três anos, um conjunto consistente de leis para os próximos 40 anos”, diz Lima.
Um dado elementar nesse debate é seu contexto econômico. Em meio à crise mundial e adversidades climáticas, a CNA prevê um recuo de 10% nos volumes desta safra, o que estaria acirrando os ânimos do setor produtivo. “Qualquer aperto que haja no Código Florestal vai ter reflexo em preço, oferta e emprego. O setor não tem dinheiro para recompor essas áreas, especialmente neste momento em que não está pagando nem fornecedor”, afirma Mônika Bergamaschi, diretora-executiva da Associação Brasileira do Agronegócio da Região de Ribeirão Preto (Abag/RP).
Ela acredita que a melhor maneira de discutir o Código é sob a luz da ciência, para que a conversa se torne menos política e ideológica e mais técnica – tanto por parte dos ambientalistas como do setor econômico.
“Queremos, por exemplo, que os percentuais de Reserva Legal sejam definidos com base em critérios científicos. O que baseia 20%, 35% ou 80%?” Segundo ela, a entidade tem participado de round tables e a conversa flui bem com ONGs, deputados, frentes parlamentares e comissões.
“O problema é quando entra a briga política. Aí o conflito aumenta e volta o impasse.” Astrini, do Greenpeace, também acha que nos ambientes fora do governo foi onde a discussão mais evoluiu. “Para avançar mais, teremos de chegar a um bom acordo em alguns pontos e apresentá- lo ao governo, sem que haja contaminação por interesses políticos”, afirma.
Uma janela de diálogo está justamente em um dos mais polêmicos pontos de discussão: o Decreto nº 6.514. Alguns ambientalistas defendem observar diferenciações em relação a ocupações históricas e tradicionais, pois o decreto, a rigor, coloca automaticamente na ilegalidade populações ribeirinhas na Amazônia, plantadores de uva no Sul, de café em Minas Gerais e todos os vaqueiros do Pantanal, pois o bioma inteiro, a rigor, é uma APP.
“O que fazer com uma lavoura de café de mais de um século? É preciso ver caso a caso, se essas áreas são estáveis ou se são um novo Itajaí”, afirma Ana Cristina Barros, representante da ONG The Nature Conservancy no Brasil (TNC). Márcio Astriniconcorda: é preciso diferenciar uma APP usada há um século de uma desmatada há duas semanas na Amazônia para criar gado. “Mais ainda: o proprietário que teve incentivo oficial para desmatar há 30 anos tem que ter um tratamento diferente daquele que está desmatando hoje ilegalmente”, diz.
Outro ponto em torno do qual há certa maleabilidade é o de compensar a reserva legal, ou seja, aquele que não mantém a reserva em sua propriedade poderia pagar ao proprietário com área de reserva maior do que o percentual estabelecido, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia. Ocorre que em alguns lugares, como no estado de São Paulo, essa exigência é impossível. “Falta ativo florestal para cumprir a lei”, diz Lima, do Ipam. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra. “É preciso critério”, ressalva. “Tem gente querendo compensar fora do bioma, trocando reserva na Mata Atlântica e no Cerrado por reserva na Amazônia.” Isso não só prejudica os biomas mais ameaçados, como consolida grandes extensões de terra sem vegetação nativa.
Três estados – Rondônia, Acre e uma parte do Pará – já colocaram em prática a flexibilização de reserva legal, com base em um zoneamento ecológico-econômico (ZEE): a exigência de reserva foi reduzida em áreas com grande aptidão agrícola e aumentada nas de menor propensão. “Evidente que não se pode tratar Amazônia e Mata Atlântica de maneira igual, mas é pertinente a compensação na mesma bacia”, diz o deputado José Sarney Filho (PV-MA), para quem o ZEE é chave de toda a discussão. “Não se pode mexer no Código Florestal sem antes buscar, por meio do zoneamento, um espelho de cada estado e cada bioma, para descobrir suas potencialidades de desenvolvimento e definir seus usos”, afirma.
Rodrigo Lima, gerente geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), arrisca: “As ONGs podem não assumir publicamente e a maioria delas é contrária, mas sinto que algumas – e o MMA também – teriam abertura para considerar APP no cálculo da Reserva Legal”. Como as APPs têm uma função ambiental mais esmiuçada, enquanto a da Reserva Legal é mais genérica, focar-se nas APPs seria uma forma de efetivamente garantir a preservação, argumenta ele.
Um claro ponto de convergência entre os dois lados é que haja instrumentos financeiros para a conservação. Produtores questionam por que cabe somente a eles arcar com o custo de manter reservas legais,se o benefício para o clima e para a biodiversidade é de toda a sociedade? “Acho ótimo esse argumento, por isso defendo o pagamento por serviços ambientais, para que haja um instrumento econômico reforçando o cumprimento da lei”, afirma Luis Laranja, do WWF.
Experiências da TNC com pequenos produtores agrícolas, grandes empresas como Cargill e governos locais mostram como o vetor econômico impulsiona a conservação, agregando valor à produção, e abrindo portas em mercados internacionais que exigem produtos oriundos de terras legais e regularizadas. Segundo Ana Cristina Barros, começam a brotar possibilidades de ganhar dinheiro com reserva legal, já existem fundos de investimento que compram áreas e arrendam, enquanto o MMA elaborou proposta para criar um mercado de cotas de reserva florestal.
Mas, como diz Ana Cristina, o esteio sem o qual nenhuma conversa vai avançar é o respeito à opinião do outro, por mais que praticá-lo pareça impossível.
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Terras demais, terras de menos – Sobram ou faltam áreas para cultivo no País?
Sob encomenda do presidente Lula, Evaristo de Miranda, da Embrapa, calculou a disponibilidade de terras para produção agropecuária, considerando-se o cumprimento à risca do Código Florestal. Segundo ele, descontando-se Reserva Legal (31,54% do território nacional), APPs (16,94%), Unidades de Conservação e Terras Indígenas (26,95%), restariam apenas 28,94% livres, ou 240 milhões de hectares. Leia mais em http://www.alcance.cnpm. embrapa.br/. Luis Laranja, do WWF, faz críticas. “O estudo não facilita a convergência e baseia-se em cálculos que induzem a erros”. Ele acrescenta que, se a produtividade média da pecuária subir de uma cabeça por hectare para 1,5, por exemplo – o que ainda seria baixíssimo -, sobrariam 40 milhões de hectares para cultivo.
Produtores de cana usaram 3,4 milhões de hectares para produzir todo o etanol de 2007, compara Rodrigo Lima, do Icone – instituto que tem um projeto para mapear pastagens no País e identificar áreas degradadas.
“Essa disponibilidade vai em linha com o que o próprio ministro Reinhold Stephanes continuamente repete: que não é preciso cortar nenhuma árvore para que a agropecuária no Brasil seja pujante”, diz Laranja. Com o que todo os ambientalistas concordam.[:en]Surgem convergências em meio às arestas na discussão sobre uso e ocupação do solo no Brasil
Por Amália Safatle
Que o setor produtivo e os ambientalistas se enfrentam duramente ao esquadrinhar terras destinadas ao cultivo agropecuário e terras voltadas para a conservação da natureza é sabido de longa data.
Notícia mesmo está em possíveis pontos de convergência e intersecção entre esses históricos antagonistas. Ainda que muitos deles próprios não se deem conta disso. Três fatos, juntos, falam por si.
Primeiro. No final do ano passado, o governo federal lançou o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, que prevê a redução das emissões de carbono entre 2009 e 2017 em razão do combate ao desmatamento na Amazônia, que cairia para cerca de 7 milhões de hectares somados nesse período.
Segundo. O Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia, assinado por nove organizações não-governamentais, propôs zerar o desmate ao fim de sete anos. Até atingir a meta em 2015, a floresta derrubada somaria cerca de 4 milhões de hectares.
Terceiro. A consultoria econômica LCA fez um estudo em que projeta o desmatamento até 2020, levando em conta a necessidade de uso da terra para produção agropecuária dentro das condições tradicionais de produção existentes hoje no País.
O levantamento preliminar, em fase de conclusão, considerou variáveis macroeconômicas, tais como taxa de câmbio, de inflação, crescimento da economia mundial, demanda e preço de commodities, balizadas por três cenários, de alto, de médio e de baixo crescimento econômico. No baixo, seriam necessários, para a produção, 9 milhões de hectares no País, sendo 6,8 milhões na Amazônia. No alto, 11 milhões no território nacional e 8 milhões na região amazônica.
Some-se a isso um cálculo grosseiro. O bioma amazônico no País tem 420 milhões de hectares. A área desmatada corresponde a 18%, ou 75 milhões de hectares. Admitindo-se que o tipping point, limite até o qual a floresta ainda mantém suas capacidades vitais, é de 20%, sobrariam 2%, ou 8 milhões de hectares.
Quem relacionou esses fatos e números foi Luis Laranja, coordenador do programa de agricultura e meio ambiente de uma ONG, o WWF-Brasil – entidade que encomendou o estudo da LCA. Com isso, conclui: em espaços de tempo similares, números como 7 milhões, 4 milhões, 6,8 milhões ou 8 milhões não diferem tanto entre si em ordem de grandeza, se comparados às diferenças que os setores alimentam uns contra os outros. Governo, ONGs e iniciativa privada estariam, no fim das contas, falando praticamente a mesma língua. “Aqui tem uma conversa e uma oportunidade de convergência, pela qual podemos otimizar a produção e garantir a conservação”, afirma.
A visão de Laranja não é isolada, e não são apenas os números que conversam. Até o final do ano passado, por exemplo, atores de trupes diferentes sentavam-se com relativa frequência à mesma mesa para debater possíveis pontos em comum no teor do Código Florestal. Quem poderia imaginar diálogos entre Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e Greenpeace? Aproximações, ainda que frustradas, entre os ministérios da Agricultura (Mapa), do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA)? ONGs, entre as quais o Greenpeace, procurando ouvir a opinião do atual secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Xico Graziano, personagem com berço e trajetória no agronegócio e passagem no governo paulista pela pasta da Agricultura?
Mais que fiel espelho do embate entre as alas conservacionista e produtiva, o Código reflete todo o grande impasse do desenvolvimento em um país onde a discussão de temas fundamentais facilmente reduz-se a um bombardeio jurídico e legislativo. A profusão de propostas de modificação do Código é tanta que essas vão desde extinguir a figura jurídica da Reserva Legal, até elevar seus percentuais para 90% na Amazônia, 50% no Cerrado, 20% no campos gerais e 35% nas demais áreas. Outra defende expropriar as terras de quem não cumpre a Reserva na Amazônia legal, enquanto um projeto, o PL 3. 225/2008, um dos mais debatidos ultimamente, permite computar a Área de Proteção Permanente (APP) no cálculo da Reserva Legal.
Duro demais ou até impossível de ser aplicado na visão de uns; instrumento vital para a sustentabilidade ambiental e agrícola na visão de outros. Fato é que não tem sido eficaz, à medida que é largamente descumprido. Flexibilizá-lo, em vez de enfraquecê-lo, não o fortaleceria, tornando-o mais conciliável com a atividade produtiva, e então respeitado?
Essa é uma pergunta que pode soar herética em algumas alas ambientalistas. Mas, em outras, não. Promover uma ampla, profunda e civilizada discussão entre as diversas linhas de pensamento sobre alterações no Código – seja em ambientes formais, seja nos informais e no Parlamento – parece ser a única maneira de pôr fim ao impasse, e essa é a primeira constatação que aponta no horizonte da convergência. “O ambientalismo precisa tirar a bandeira fincada, pois a perda ambiental está acontecendo agora”, diz Graziano, ao defender que o movimento esteja aberto a flexibilizações.
“Sabemos que a lei não vai impedir o desmatamento, mas enfraquecê-la vai acelerá-lo”, diz Marcio Astrini, da campanha da Amazônia do Greenpeace. A reportagem pergunta se flexibilizar, a seu ver, significa enfraquecer. “Não, desde que essa flexibilização ajude na preservação da floresta”, responde. “A gente vai até um certo limite, mas é verdade que o Código Florestal precisa ser atualizado, para que a produção e a preservação sejam, ao mesmo tempo, mais efetivas”, afirma.
“Uma boa solução para o impasse é uma que vai descontentar todos os lados. Cada um terá de ceder um pouco”, acredita Evaristo de Miranda, chefe-geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Monitoramento por Satélite, para quem o Código Florestal, como é hoje, é simplesmente impossível de ser cumprido (leia quadro abaixo).
Mas foi o contrário que se deu nas últimas reuniões de um Grupo de Trabalho criado em outubro passado pelo MMA, MDA e Mapa para discutir mudanças no Código. Formado por parlamentares das comissões de agricultura e meio ambiente do Congresso, um representante da sociedade civil e um da CNA, o grupo viu as negociações azedarem e acabou extinto no final do ano.
Segundo ambientalistas que acompanhavam as reuniões, ruralistas apoiados pelo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, teriam esticado demais a corda ao propor, além do cômputo de APPs na Reserva Legal, anistia a quem desmatou e ocupou essas áreas até julho de 2007, e redução da reserva para 50% na Amazônia. As ONGs também questionaram a baixa representatividade diante da maioria ruralista.
Para André Lima, advogado e coordenador- adjunto do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), “Stephanes levava as discussões com racionalidade e tranquilidade, até que radicalizou, provavelmente pressionado por suas bases”. Os ambientalistas foram barrados na última reunião do GT e o ministro anunciou o fim das negociações.
A má experiência do grupo de trabalho pode dar a entender que qualquer convergência ou diálogo será impossível. Justamente neste momento em que o Código Florestal virou pivô de conflitos no primeiro escalão do governo, principalmente entre Stephanes e Carlos Minc, do MMA, em meio à falta de uma articulação neutra e equilibrada.
Minc chegou a afirmar que o problema do meio ambiente não é com a agricultura, é com o ministro Stephanes. E que a grande agricultura, que o ministro representa, está querendo aproveitar a necessidade de mudança do Código para aprovar medidas de seu único interesse.
Quem poderia cumprir o papel de articulador, capaz de alçar o Código, de motivo de bate-boca, para um conjunto de regras consistente, bem amarrado e respeitado por todos os lados? A Casa Civil, personificada por Dilma Rousseff, com todo seu viés desenvolvimentista?
Segundo Xico Graziano, Carlos Minc estaria disposto a retomar a discussão “em uma base um pouco menos governista”, formando um grupo diversificado de interlocutores. “Se ele me Convidar, estou disposto a apresentar minhas ideias”, afirma.
No final do ano passado, o secretário chegou a formular uma proposta, segundo suas palavras, “conciliadora”. A saída está em aprofundar, ampliar e diversificar o debate, defende André Lima, do Ipam. “O desmatamento é um tema muito forte para o Brasil. A discussão sobre ele não pode ser feita em uma sala, por meia dúzia de ilustrados.” Por isso, propõe que se instale um processo de discussão parecido com o que houve em torno da Lei de Gestão de Florestas Públicas – proposta em dezembro de 2003 e sancionada em fevereiro de 2006. Segundo Lima, foram dois anos de debate profícuo, audiências públicas, discussão por meio da mídia, atuação de grupos de trabalhos com alta representatividade, debate legislativo intenso.
Quando o projeto de leichegou à votação, toda uma discussão prévia já tinha ocorrido. “O mesmo deveria acontecer para o Código. Dessa forma, a gente pode obter, em dois ou três anos, um conjunto consistente de leis para os próximos 40 anos”, diz Lima.
Um dado elementar nesse debate é seu contexto econômico. Em meio à crise mundial e adversidades climáticas, a CNA prevê um recuo de 10% nos volumes desta safra, o que estaria acirrando os ânimos do setor produtivo. “Qualquer aperto que haja no Código Florestal vai ter reflexo em preço, oferta e emprego. O setor não tem dinheiro para recompor essas áreas, especialmente neste momento em que não está pagando nem fornecedor”, afirma Mônika Bergamaschi, diretora-executiva da Associação Brasileira do Agronegócio da Região de Ribeirão Preto (Abag/RP).
Ela acredita que a melhor maneira de discutir o Código é sob a luz da ciência, para que a conversa se torne menos política e ideológica e mais técnica – tanto por parte dos ambientalistas como do setor econômico.
“Queremos, por exemplo, que os percentuais de Reserva Legal sejam definidos com base em critérios científicos. O que baseia 20%, 35% ou 80%?” Segundo ela, a entidade tem participado de round tables e a conversa flui bem com ONGs, deputados, frentes parlamentares e comissões.
“O problema é quando entra a briga política. Aí o conflito aumenta e volta o impasse.” Astrini, do Greenpeace, também acha que nos ambientes fora do governo foi onde a discussão mais evoluiu. “Para avançar mais, teremos de chegar a um bom acordo em alguns pontos e apresentá- lo ao governo, sem que haja contaminação por interesses políticos”, afirma.
Uma janela de diálogo está justamente em um dos mais polêmicos pontos de discussão: o Decreto nº 6.514. Alguns ambientalistas defendem observar diferenciações em relação a ocupações históricas e tradicionais, pois o decreto, a rigor, coloca automaticamente na ilegalidade populações ribeirinhas na Amazônia, plantadores de uva no Sul, de café em Minas Gerais e todos os vaqueiros do Pantanal, pois o bioma inteiro, a rigor, é uma APP.
“O que fazer com uma lavoura de café de mais de um século? É preciso ver caso a caso, se essas áreas são estáveis ou se são um novo Itajaí”, afirma Ana Cristina Barros, representante da ONG The Nature Conservancy no Brasil (TNC). Márcio Astriniconcorda: é preciso diferenciar uma APP usada há um século de uma desmatada há duas semanas na Amazônia para criar gado. “Mais ainda: o proprietário que teve incentivo oficial para desmatar há 30 anos tem que ter um tratamento diferente daquele que está desmatando hoje ilegalmente”, diz.
Outro ponto em torno do qual há certa maleabilidade é o de compensar a reserva legal, ou seja, aquele que não mantém a reserva em sua propriedade poderia pagar ao proprietário com área de reserva maior do que o percentual estabelecido, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia. Ocorre que em alguns lugares, como no estado de São Paulo, essa exigência é impossível. “Falta ativo florestal para cumprir a lei”, diz Lima, do Ipam. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra. “É preciso critério”, ressalva. “Tem gente querendo compensar fora do bioma, trocando reserva na Mata Atlântica e no Cerrado por reserva na Amazônia.” Isso não só prejudica os biomas mais ameaçados, como consolida grandes extensões de terra sem vegetação nativa.
Três estados – Rondônia, Acre e uma parte do Pará – já colocaram em prática a flexibilização de reserva legal, com base em um zoneamento ecológico-econômico (ZEE): a exigência de reserva foi reduzida em áreas com grande aptidão agrícola e aumentada nas de menor propensão. “Evidente que não se pode tratar Amazônia e Mata Atlântica de maneira igual, mas é pertinente a compensação na mesma bacia”, diz o deputado José Sarney Filho (PV-MA), para quem o ZEE é chave de toda a discussão. “Não se pode mexer no Código Florestal sem antes buscar, por meio do zoneamento, um espelho de cada estado e cada bioma, para descobrir suas potencialidades de desenvolvimento e definir seus usos”, afirma.
Rodrigo Lima, gerente geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), arrisca: “As ONGs podem não assumir publicamente e a maioria delas é contrária, mas sinto que algumas – e o MMA também – teriam abertura para considerar APP no cálculo da Reserva Legal”. Como as APPs têm uma função ambiental mais esmiuçada, enquanto a da Reserva Legal é mais genérica, focar-se nas APPs seria uma forma de efetivamente garantir a preservação, argumenta ele.
Um claro ponto de convergência entre os dois lados é que haja instrumentos financeiros para a conservação. Produtores questionam por que cabe somente a eles arcar com o custo de manter reservas legais,se o benefício para o clima e para a biodiversidade é de toda a sociedade? “Acho ótimo esse argumento, por isso defendo o pagamento por serviços ambientais, para que haja um instrumento econômico reforçando o cumprimento da lei”, afirma Luis Laranja, do WWF.
Experiências da TNC com pequenos produtores agrícolas, grandes empresas como Cargill e governos locais mostram como o vetor econômico impulsiona a conservação, agregando valor à produção, e abrindo portas em mercados internacionais que exigem produtos oriundos de terras legais e regularizadas. Segundo Ana Cristina Barros, começam a brotar possibilidades de ganhar dinheiro com reserva legal, já existem fundos de investimento que compram áreas e arrendam, enquanto o MMA elaborou proposta para criar um mercado de cotas de reserva florestal.
Mas, como diz Ana Cristina, o esteio sem o qual nenhuma conversa vai avançar é o respeito à opinião do outro, por mais que praticá-lo pareça impossível.
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Terras demais, terras de menos – Sobram ou faltam áreas para cultivo no País?
Sob encomenda do presidente Lula, Evaristo de Miranda, da Embrapa, calculou a disponibilidade de terras para produção agropecuária, considerando-se o cumprimento à risca do Código Florestal. Segundo ele, descontando-se Reserva Legal (31,54% do território nacional), APPs (16,94%), Unidades de Conservação e Terras Indígenas (26,95%), restariam apenas 28,94% livres, ou 240 milhões de hectares. Leia mais em http://www.alcance.cnpm. embrapa.br/. Luis Laranja, do WWF, faz críticas. “O estudo não facilita a convergência e baseia-se em cálculos que induzem a erros”. Ele acrescenta que, se a produtividade média da pecuária subir de uma cabeça por hectare para 1,5, por exemplo – o que ainda seria baixíssimo -, sobrariam 40 milhões de hectares para cultivo.
Produtores de cana usaram 3,4 milhões de hectares para produzir todo o etanol de 2007, compara Rodrigo Lima, do Icone – instituto que tem um projeto para mapear pastagens no País e identificar áreas degradadas.
“Essa disponibilidade vai em linha com o que o próprio ministro Reinhold Stephanes continuamente repete: que não é preciso cortar nenhuma árvore para que a agropecuária no Brasil seja pujante”, diz Laranja. Com o que todo os ambientalistas concordam.