Por Amália Safatle
O último encontro internacional sobre o tema expôs o desafio de gerir uma crise sob profundos rachas políticos. No debate, também faltou reforçar as pontes entre florestas e recursos hídricos
“Su gibi aziz ol”, ou “Seja glorioso como a água”, é uma das preces frequentemente ouvidas na Turquia. Não só ela. Disse o ministro do Meio Ambiente do país que, ao se fechar os olhos em Istambul, o primeiro som que se ouve é o da própria água. No Estreito de Bósforo, ela separa – ou une – as civilizações oriental e ocidental. Evapora nas salas de banho turco, escorre em cada fonte espalhada na cidade histórica, lava e prepara os rituais religiosos nas mesquitas.
Contornada por quatro mares, o Mediterrâneo, o Negro, o Egeu e o de Mármara, a Turquia lida com a amarga contradição da escassez de água doce. Lugar apropriado para se discutir uma das maiores crises da humanidade. Ao sediar a quinta rodada do Fórum Mundial da Água, na Turquia ouviu-se também que não vivemos exatamente uma crise de água, mas de gestão.
Quem vem de longuíssima data, mas, como se sabe, é exponencialmente acelerada pelo modo de vida dos tempos modernos. A História conta que Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma – os maiores berços da Humanidade – desde os primórdios viram-se às voltas com a necessidade de administrar uso e disponibilidade, em um milenar exercício de adaptação às condições ambientais (leia quadros sobre adaptação climática abaixo) Na Turquia, ruínas de construções hidráulicas datam desde o segundo milênio antes de Cristo, a começar do chamado período hitita- são represas, aquedutos e cisternas buscando temperar a oferta de água de uma região seca com o florescimento populacional.
De lá para cá, o índice demográfico só fez explodir, a afluência, aumentar, e a capacidade humana de poluir água e solo com todo tipo de resíduo, atingir enormes proporções, enquanto o ciclo hidrológico faz a sua viagem de sempre, em um sistema fechado no planeta. Mesma oferta para demandas e pressões desproporcionais, acentuadas pelas mudanças climáticas.
A reunião de mais de 20 mil pessoas de 182 países no fórum promovido pelo Conselho Mundial da Água e a divulgação do terceiro relatório das águas pelas Nações Unidas fizeram ecoar informações alarmantes.
Nunca é demais registrar: mantidas as atuais condições, dois terços da população mundial enfrentarão dificuldade de acesso ou escassez d’água em 2025. Com 80 milhões de nascimentos por ano, a demanda anual por água cresce à razão de 64 bilhões de metros cúbicos. Para produzir alimento suficiente para o consumo diário de uma pessoa, são necessários de 2 mil a 5 mil litros de água, segundo a FAO. A prospecção de água potável triplicou nos últimos 50 anos, enquanto dobrou o número de áreas irrigadas. Ao mesmo tempo, problemas sanitários causam 4,2 mil mortes de crianças por dia, e somente no ano de 2008 houve 321 desastres ambientais relacionados à água e ao clima, como enchentes e furacões, matando 235.816 pessoas, afetando 221 milhões de outras e custando US$ 181 bilhões.
São números que, somados a uma reflexão em maior profundidade, nos pegam de maneira tão fundamental. Formados essencialmente por água e carbono, personificamos, em toda nossa intimidade, os grandes desafios globais da água e do clima.
O encontro, intitulado “Superando Divisores de Água”, teve como mote a água em um mundo em transformações críticas e agudas, não só a climática, mas de segurança alimentar, de energia e de finanças. Mostrou o peso da economia real depois que ruíram os castelos dos ganhos virtuais no mercado financeiro.
Provou que, se há um elemento transversal às grandes questões da sustentabilidade, este é a água, fio condutor entre os campos da saúde, da economia, dos negócios, da educação, do meio ambiente, da tecnologia – e sobretudo da política.
Mas, com presença em peso de prefeitos, parlamentares, ministros e chefes de Estado dos mais diversos países, as salas e os auditórios do Fórum estiveram plenos de discursos invariavelmente vazios, e inflados pela atmosfera política do período pré-eleitoral na Turquia. Enquanto isso, nas antessalas e nos corredores corria a discussão sobre o direito humano à água potável e ao saneamento, estratégica para se cobrar dos governos medidas concretas de gestão e investimentos para atender à população.
Esta era justamente a principal bandeira de movimentos sociais, organizados fora do complexo do evento, em um espaço alternativo, o People’s Water Forum, e na internet. Mas no fechamento do Fórum, em pleno Dia Mundial da Água, a mensagem final foi de que o acesso ao bem é uma “necessidade básica”, e não um “direito humano básico”, expressão que países como Holanda, Espanha e Alemanha quiseram incluir na declaração. A inclusão foi bloqueada por representantes das delegações turca, americana, egípcia, francesa – e brasileira.
A decisão causou furor. Em comunicado ao Fórum, D’Escoto Brockmann afirmou que a água é um assunto importante demais para que não se exija dos governos uma prestação de contas. Ativistas e parlamentares de mais de 70 países criticaram a falta de transparência do evento e evocaram que uma discussão desse porte passe a ser conduzida pela Organização das Nações Unidas, e não pelo Conselho Mundial da Água, instituição privada sediada em Marselha, na França, que promove o fórum a cada três anos, desde 1997.
Se no caso da França a existência de fortes grupos privados da água teria influenciado a posição adotada, no do Brasil o argumento apresentado pelo Ministério das Relações Exteriores foi o da soberania – que tem orientado a política oficial brasileira em relação a temas como florestas e clima, e servido para rejeitar compromissos a metas de redução de emissão de carbono. Em nota, o MRE divulgou: “Tecnicamente, a adesão poderia abrir caminho para que outros países se manifestassem sobre a forma como o País controla o uso da água”.
A forte carga política que marcou a reunião pode encontrar explicação em uma afirmação de Benedito Braga, vice-presidente do Conselho Mundial da Água e diretor da Agência Nacional de Águas (ANA). Para ele, a importância do tema vai além da do petróleo, se se considerar que na falta do insumo energético há alternativas, como os biocombustíveis, mas para a água não há substitutos.
Como escreve a socióloga e jornalista Maristela Bernardo, com 12% da água potável do mundo – e ainda nesse cenário geopolítico tão estratégico -, o Brasil deveria ser uma potência na gestão das águas. O arcabouço legal em vigor, instituído há 12 anos pela Lei das Águas, a 9.433/97, é moderno e prevê uma gestão avançada, ao descentralizar o poder por meio da participação de uma multiplicidade de atores – governo federal, estados, sociedade civil, iniciativa privada -, ao mesmo tempo que concebe os recursos hídricos de forma integrada e não fragmentada, para além de delimitações físicas de estados e municípios, e prevê instrumentos inteligentes de gestão, como a cobrança de água para os grandes usuários e poluidores.
Mas o problema é anterior, identifica Maristela: o de que a água ainda não virou elemento estratégico na agenda federal, assim como o meio ambiente. Não por acaso o Brasil é pródigo em água, na comparação mundial – o que não deve ser confundido com o mito da abundância, usado como desculpa para o desperdício e a má gestão (leia quadro abaixo). Se nos domínios do território brasileiro há um ciclo hidrológico relativamente generoso, muito se deveria às florestas e demais ecossistemas, que mantêm condições climáticas em equilíbrio, retêm umidade e favorecem a formação das chuvas.
O Brasil das águas seria o Brasil das florestas, e portanto geri-las bem é gerir bem as águas – dois fatores que a academia científica cada vez mais considera que estão juntos (leia quadro “Atrás de Rios Voadores”), ainda que reste um ceticismo a respeito. Embora o Fórum tenha o tempo todo relacionado o agravamento da oferta de recursos hídricos e os desastres ligados à água com o aquecimento global – buscando lançar uma ponte com a 15ª Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP 15) em Copenhague em dezembro de 2009 -, as florestas foram um tema apagado nas discussões, e o Brasil novamente perdeu a oportunidade de se colocar como um protagonista global associando água, conservação ambiental e clima.
A impressão é a de que florestas são um assunto tão incômodo para o governo brasileiro – remete à fragilidade administrativa no combate aos desmatamentos e queimadas, levanta o assunto das metas de redução de emissão e desperta receios sobre a soberania na Amazônia – que convém deixá-lo embaixo do tapete em encontros mundiais como este.
Um dos que se revelaram céticos sobre a relação entre clima e floresta foi justamente Braga, do Conselho Mundial da Água e da ANA. Ele afirmou que não há provas dessa relação e que as chuvas são fundamentalmente formadas nos oceanos. Até mesmo do efeito da ação do homem sobre o aquecimento global ele duvida.
“Quantidade não é qualidade”, disse a respeito dos cientistas que formam o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), autores dos relatórios que praticamente comprovam a ação antrópica sobre o clima. “Mais do que científica, o IPCC é uma instituição política”, afirmou. Dito isso, Braga considera que o aquecimento global pode até ser um problema para alguns países, como a Holanda, mas não deve constar das preocupações prioritárias no Brasil quando o assunto é água.
Na mesma linha, o diretor-presidente da ANA, José Machado, afirmou que mudança climática é uma questão importante, e está no centro das atenções especialmente de países do Caribe e da América Central, devido à sua vulnerabilidade a desastres climáticos. “Mas o que mais preocupa no Brasil é a necessidade de enraizar a gestão e o planejamento. Se resolvermos estes problemas, estaremos mais preparados para equacionar o resto”, disse, referindo-se à necessidade de fortalecer os comitês de bacia.
Outra visão particular de Benedito Braga é de que a tecnologia é a grande arma para adaptar-se ao novo cenário dos recursos hídricos. Ao contrário de Thomas Malthus, que teria errado nas previsões de falta de alimentos para uma população crescente por desconsiderar o componente tecnológico, ele acredita que a ciência e a tecnologia encontrarão as respostas para as crises da humanidade.
Banheiro feminino
De fato, os painéis sobre adaptação a situações de escassez de água repetiram à exaustão a palavra tecnologia – para dessalinizar água do mar, para retirá-la do subsolo, para transportá-la de um lugar a outro, para armazenar, para reutilizar, para monitorar ciclos hidrológicos. Nos estandes da exposição que integrava o Fórum, empresas apresentavam ferramentas tecnológicas das mais variadas e sofisticadas, as que movimentam um interessante “mercado da seca”. Mas pouco se falou, por exemplo, sobre hábitos de consumo.
Coincidentemente, enquanto os painéis sobre adaptação se realizavam nos auditórios, e enfatizavam os cenários de escassez D’água no mundo e na Turquia, uma das descargas disparadas no banheiro feminino jorrava água por horas seguidas. Jorrava por um dia inteiro. Mas não parecia afligir as usuárias pertencentes às delegações, retocando o batom em frente ao espelho. Até que, depois de um apelo da reportagem à manutenção do evento, a descarga foiconsertada.
O enfoque muito tecnológico dado à discussão sobre recursos hídricos foi alvo de críticas pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN), uma rede formada por mais de milorganizações governamentais e não-governamentais. “Nós não queremos uma agenda técnica”, declarou a diretora-geral Julia Marton-Lefèvre, ao defender que os seres humanos prestem mais atenção ao ambiente se quiserem resolver esta crise. E que deixem a natureza cumprir o seu papel prestador de serviços pela conservação da água.
“Em tempo de crise econômica, a IUCN conclama os líderes empresariais e governamentais a investir na natureza como o melhor caminho para um futuro econômico saudável. Se investirmos no ambiente natural, teremos benefícios incontáveis e um mundo melhor para as futuras gerações.”
Nas discussões temáticas sobre finanças, organizadas no Fórum pelo Banco Mundial, especialistas ressaltaram o caráter estratégico do investimento em água: a estimativa é de que cada US$ 1 investido em água e saneamento reverte em US$ 8 na forma de lucro, saúde, produtividade e empregos ligados à infraestrutura.
Hoje os investimentos relacionados a água somam de US$ 400 bilhões a US$ 500 bilhões anuais, mas teme-se que diminuam diante da crise mundial. A questão é como fazer da natureza uma aliada nesse investimento, considerando-se que os ecossistemas prestam gratuitamente serviços como “produção” de água potável e reduzem significativamente riscos de desastres como enchentes, erosões, desmoronamentos e assoreamentos – além de conservar a biodiversidade, realimentar os aquíferos subterrâneos (como o Guarani), equilibrar o microclima e mitigar o aquecimento global.
Que parceiro melhor nesses momentos de crise do que aquele que presta serviços gratuitamente, e ainda de forma exímia? “Não existe água sem floresta, não existe floresta sem água e não existe sociedade sem água e sem floresta” é o mote do programa “Água das Florestas”, desenvolvido pela SOS Mata Atlântica – e apresentado no Fórum em pequena sala do estande do Brasil, numa das poucas discussões sobre Pagamento por Serviços Ambientais.
O programa é destinado a recompor as matas ciliares de propriedades rurais nas microbacias geridas pelos comitês do Alto Tietê, Médio Tietê e Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Recebe recursos do Instituto Coca-Cola, como parte de um plano da empresa para reduzir seu impacto ambiental, “devolvendo” para a natureza toda a água que retira para a produção.
Desde 2007, foram aplicados R$ 1,5 milhão e a meta é plantar 3 milhões de mudas em cinco anos, recuperando 3 mil hectares. Mas, mais que isso, explica Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas, o objetivo é atuar como um laboratório replicável a outras bacias e biomas e atender a uma antiga questão: medir quanto de fato a Mata Atlântica produz de água, e também o quanto retém em aquíferos e sequestra de carbono.
Beto Borges, diretor do programa de comunidades e mercados da Forest Trends, organização não-governamental que trabalha com a abordagem de pagamento por serviços ambientais, cita o México, o Equador e a Costa Rica como os países que reúnem as mais bem-sucedidas experiências de pagamentos por serviços hídricos [2]. Entre 1º e 4 de abril, a Forest Trends realizou em Cuiabá um encontro sobre PSA, onde relatou experiências de agricultores para manter a qualidade de água na Baía de Chesapeake, o maior estuário do Estados Unidos, além do case da Electric Power Resource no Vale do Rio Ohio.
No Brasil, mais especificamente na Amazônia, Borges entende que os pagamentos por serviços hídricos podem reforçar os esquemas de remuneração por emissões de carbono evitadas de desmatamento, melhorando os custos de oportunidade e constituindo um diferencial-chave para a Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação (Redd) – mecanismo financeiro que promete mobilizar as discussões na COP 15 na costura de um tratado pós-Kyoto.
Enquanto isso, brotam iniciativas internacionais, que buscam envolver os líderes empresariais e estimular a parceria com outros atores da sociedade para encontrar soluções para a gestão da água e do saneamento básico. Uma delas é o The CEO Water Mandate, lançada pelo Global Compact, um programa das Nações Unidas, em parceria com o Pacific Institute e o WWF. Até o momento, nenhuma empresa brasileira havia aderido à iniciativa.
Água certificada
Outro programa inovador é o da Alliance for Water Stewardship, capitaneado por Matthew Wenban-Smith, que pretende construir ferramentas que auxiliem na gestão dos recursos hídricos. Para isso, a ideia é lançar – em um prazo ainda indeterminado- um conjunto de critérios e de normas de gestão, aplicáveis pelo setor privado e passíveis de verificação. “Em alguns casos, isso poderá inclusive reduzir os gastos das empresas com água, além de ajudá-las a gerir seus relacionamentos com atores locais, construir uma reputação e dar suporte à ‘licença social para operar'”. Em suma, deve auxiliar as empresas a gerir os riscos físicos, reputacionais e estatutários relacionados à água.
Smith explica que não se trata de um programa de certificação em si, mas os critérios de conduta poderão ser usados por entidades certificadoras. Embora a certificação de água difira muito da florestal, o Forest Stewardship Council (FSC) foi a principal inspiração, diz ele. Em razão da íntima relação com florestas e agricultura, ele vê possibilidade de reconhecer critérios em comum no cuidado com a água. “Dado o longo ciclo de vida dos investimentos do setor privado, as companhias precisam de um plano para enfrentar a mudança climática, e entender a água nesse contexto”, afirma. Ou seja, construir as pontes.
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Verdade cristalina – a água permeia toda a questão da adaptação climática
Adaptação às mudanças climáticas significa adaptação à água. O recado é bem claro no estudo Don’t Stick Your Head in the Sand!, produzido por um consórcio formado pelo Conselho Mundial da Água, IUCN, Co-operative Programme on Water and Climate e International Water Association. Isto porque a água (ou a falta dela) media todas as vulnerabilidades ligadas ao clima, como secas severas, evaporação excessiva, derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, tempestades, furacões e inundações.
Considerando-se que o aquecimento global é um fenômeno dado – ainda que as emissões de carbono fossem reduzidas a zero, a temperatura global se elevará –, é preciso lançar estratégias de adaptação aos novos cenários, sem, é claro, deixar de buscar a mitigação para evitar maiores danos. Ainda em consolidação, um estudo do Catalyst Project – iniciativa da Climate Works Foundation desenhada para dar suporte a governos e negociadores de tratados do clima – estima que o custo anual de adaptação para países em desenvolvimento será de 5 bilhões a 10 bilhões de euros em 2020 e deve subir para 12 bilhões a 29 bilhões de euros de 2030 em diante.
Água no Brasil – por que a abundância é um mito
Juntas, as bacias do rios Amazonas, São Francisco e Paraná contêm o maior volume de água doce do mundo. Mas, exceto em algumas regiões, como a Amazônica, a do Paraguai e a do Tocantins- Araguaia, os principais rios brasileiros apresentam índices críticos, muito críticos ou preocupantes, segundo a classificação da Agência Nacional de Águas no quesito demanda versus disponibilidade de água. Em 2007, foi decretada situação de emergência devido à estiagem e à seca em 788 municípios, e em consequência de enchentes, inundações e alagamentos em 176 outros. Os dados são do último relatório da agência.
Enquanto isso, um estudo da Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) aponta que o maior centro urbano do País sofre risco iminente de colapso no abastecimento de água, se não for reduzido o consumo e elevada a oferta. Em maio de 2007, Página22 publicou a reportagem “Sampa tem sede de quê?”, que já avisava sobre a crise de água na Região Metropolitana de São Paulo. E, ainda que o Brasil esteja mais confortável diante da situação de países como a China, a água “exportada” na forma de alimentos pode mudar esse quadro. É o que se chama de água virtual. Ela nasce localmente, mas é transferida para outros lugares pelo comércio globalizado. Em troca, nações exportadoras como Brasil “internalizam” os problemas de outros países, como a escassez de água e a sua contaminação por agrotóxicos nas práticas agrícolas não sustentáveis.
A rede de organizações Water Footprint Network está de olho na água virtual e na pegada ecológica de água de países e empresas. O leitor pode calcular a sua clicando em WaterFootprintCalculator. Segundo o 3º Relatório das Nações Unidas, a pegada média global é de 1.240 metros cúbicos por ano per capita. A americana é de 2.480 e a chinesa, de 700. Determinam a pegada de um país o volume de consumo, o tipo de produto consumido (por exemplo, a produção de 1 quilo de carne bovina requer até 4 mil litros de água), o clima e as práticas agrícolas, como a eficiência no uso da irrigação.
Cinema, turismo e cabras – experiências no Semi -Árido brasileiro
Adaptar-se não necessariamente requer investimentos bilionários. Um caso clássico de adaptação no Semi-Árido brasileiro deu-se em Cabaceiras (PB). A cidade com o menor índice pluviométrico do País tenta moldar-se à seca, buscando outras vocações econômicas. Por exemplo, a do turismo – além de exibir atrações arqueológicas, a cidade garante tempo bom para o turista ávido por sol, como aquele que vem de países nórdicos – e a cinematográfica. Aproveitando o cenário natural do casario histórico, o ex-prefeito Arnaldo Júnior Farias Doso criou um pólo de produção de cinema, e uma série de filmes, como Cinema, Aspirinas e Urubus e O Auto da Compadecida, foi locada lá. Com a vantagem de praticamente não haver chuva para atrasar as filmagens.
Tentativas como essa, de imprimir um outro tipo de desenvolvimento na região do Semi-Árido, adaptadas às condições climáticas, têm sido objeto de estudo de Oswaldo Gonçalves Junior, doutorando em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Em vez de grandes obras, como a da transposição do Rio São Francisco, com alto custo e resultado discutível, há uma miríade de alternativas inteligentes e mais acessíveis. Como a de incentivar a criação de cabras e ovelhas, que consomem ,enos e produzem mais do que as vacas, no contexto do Semi-Árido.
Para isso, englobando mudanças culturais – a criação de gado é arraigada na cultura sertaneja – Gonçalves ressalta a necessidade de forjar a construção de um mercado, por meio de políticas públicas. O leite de cabra, por exemplo, tem sido usado no programa Fome Zero. “Os mercados são construções sociais que podem envolver inclusão e uma atuação mais presente do Estado”, acredita. E nessa construção, especialmente em se tratando do Semi-Árido, a variável climática ganha um peso cada vez maior.
Atrás de rio voadores – Eles podem ter até 3.200 metros cúbicos de água, 27 vezes a vazão do Tietê
Um avião-laboratório construído para ir atrás de nuvens, capturar gotas d’água e guardá-las em tubos de ensaio para pesquisa percorreu 1.160 pontos do mapa brasileiro em 12 vôos de 2007 até agora. O piloto e chefe da expedição, Gérard Moss, apoiado por uma equipe científica de peso, constatou que pelo menos metade da umidade que chega aos brasileiros vem da Amazônia, influenciando as chuvas do Sul e Sudeste do País. Atrás dos Rios Voadores – nome que batiza o fenômeno dos ventos amazônicos passeando pelos céus e também esta expedição – Moss revelou a aventura de perseguir uma massa de ar de Belém até São Paulo no momento em que alertava para a urgência de manter a floresta Amazônia preservada.
Enquanto cabe a ele coletar vapores durante os vôos, cientistas em terra – entre os quais Eneas Salati, José Marengo, Antonio Nobre, Pedro Leite da Silva Dias – estão analisando a importância do transporte de umidade de um rio voador, trabalho pioneiro no mundo, patrocinado pela Petrobras.
Entre os dados preliminares dessas análises, observou-se que um rio voador pode ter até 3.200 metros cúbicos de água, 27 vezes a vazão do Rio Tietê, com a diferença que o voador dura um dia e vira chuva. Verificando o trajeto do vapor de água, os cientistas atestaram que, nos dias com maior potencial para chuva, grande parte da umidade veio da Amazônia e que um dos “serviços” cruciais da floresta é quando as árvores retiram umidade do solo e a levam para a atmosfera, regulando o abastecimento de vapor de água.
A maior floresta tropical úmida do mundo também absorve 40% da energia solar na região, regulando seu microclima. “A floresta é uma bomba hidrológica e o desmatamento quebra todo esse equilíbrio”, diz Moss. Outras gotas d’água coletadas por ele ainda serão analisadas e a expectativa é que as informações mostrem até que pontoo desmatamento da Região Amazônica poderá afetar o clima no restante do País. – por Ana Cristina D’Angelo
Leia mais na edição 29:
Austrália – País lança mão de dessanilização, reciclagem e redução de consumo para se adaptar à menor desponibilidade de água
Lei das Águas – Onde a cobrança pelo uso da água virou realidade, os comitês de bacia já têm um terço do capital necessário para salvar os rios
Coluna – Na maioria dos países ricos, água encanada é própria para o consumo. No entanto, EUA gastam mais em água mineral do que em gasolina[:en]O último encontro internacional sobre o tema expôs o desafio de gerir uma crise sob profundos rachas políticos. No debate, também faltou reforçar as pontes entre florestas e recursos hídricos
“Su gibi aziz ol”, ou “Seja glorioso como a água”, é uma das preces frequentemente ouvidas na Turquia. Não só ela. Disse o ministro do Meio Ambiente do país que, ao se fechar os olhos em Istambul, o primeiro som que se ouve é o da própria água. No Estreito de Bósforo, ela separa – ou une – as civilizações oriental e ocidental. Evapora nas salas de banho turco, escorre em cada fonte espalhada na cidade histórica, lava e prepara os rituais religiosos nas mesquitas.
Contornada por quatro mares, o Mediterrâneo, o Negro, o Egeu e o de Mármara, a Turquia lida com a amarga contradição da escassez de água doce. Lugar apropriado para se discutir uma das maiores crises da humanidade. Ao sediar a quinta rodada do Fórum Mundial da Água, na Turquia ouviu-se também que não vivemos exatamente uma crise de água, mas de gestão.
Quem vem de longuíssima data, mas, como se sabe, é exponencialmente acelerada pelo modo de vida dos tempos modernos. A História conta que Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma – os maiores berços da Humanidade – desde os primórdios viram-se às voltas com a necessidade de administrar uso e disponibilidade, em um milenar exercício de adaptação às condições ambientais (leia quadros sobre adaptação climática abaixo) Na Turquia, ruínas de construções hidráulicas datam desde o segundo milênio antes de Cristo, a começar do chamado período hitita- são represas, aquedutos e cisternas buscando temperar a oferta de água de uma região seca com o florescimento populacional.
De lá para cá, o índice demográfico só fez explodir, a afluência, aumentar, e a capacidade humana de poluir água e solo com todo tipo de resíduo, atingir enormes proporções, enquanto o ciclo hidrológico faz a sua viagem de sempre, em um sistema fechado no planeta. Mesma oferta para demandas e pressões desproporcionais, acentuadas pelas mudanças climáticas.
A reunião de mais de 20 mil pessoas de 182 países no fórum promovido pelo Conselho Mundial da Água e a divulgação do terceiro relatório das águas pelas Nações Unidas fizeram ecoar informações alarmantes.
Nunca é demais registrar: mantidas as atuais condições, dois terços da população mundial enfrentarão dificuldade de acesso ou escassez d’água em 2025. Com 80 milhões de nascimentos por ano, a demanda anual por água cresce à razão de 64 bilhões de metros cúbicos. Para produzir alimento suficiente para o consumo diário de uma pessoa, são necessários de 2 mil a 5 mil litros de água, segundo a FAO. A prospecção de água potável triplicou nos últimos 50 anos, enquanto dobrou o número de áreas irrigadas. Ao mesmo tempo, problemas sanitários causam 4,2 mil mortes de crianças por dia, e somente no ano de 2008 houve 321 desastres ambientais relacionados à água e ao clima, como enchentes e furacões, matando 235.816 pessoas, afetando 221 milhões de outras e custando US$ 181 bilhões.
São números que, somados a uma reflexão em maior profundidade, nos pegam de maneira tão fundamental. Formados essencialmente por água e carbono, personificamos, em toda nossa intimidade, os grandes desafios globais da água e do clima.
O encontro, intitulado “Superando Divisores de Água”, teve como mote a água em um mundo em transformações críticas e agudas, não só a climática, mas de segurança alimentar, de energia e de finanças. Mostrou o peso da economia real depois que ruíram os castelos dos ganhos virtuais no mercado financeiro.
Provou que, se há um elemento transversal às grandes questões da sustentabilidade, este é a água, fio condutor entre os campos da saúde, da economia, dos negócios, da educação, do meio ambiente, da tecnologia – e sobretudo da política.
Mas, com presença em peso de prefeitos, parlamentares, ministros e chefes de Estado dos mais diversos países, as salas e os auditórios do Fórum estiveram plenos de discursos invariavelmente vazios, e inflados pela atmosfera política do período pré-eleitoral na Turquia. Enquanto isso, nas antessalas e nos corredores corria a discussão sobre o direito humano à água potável e ao saneamento, estratégica para se cobrar dos governos medidas concretas de gestão e investimentos para atender à população.
Esta era justamente a principal bandeira de movimentos sociais, organizados fora do complexo do evento, em um espaço alternativo, o People’s Water Forum, e na internet. Mas no fechamento do Fórum, em pleno Dia Mundial da Água, a mensagem final foi de que o acesso ao bem é uma “necessidade básica”, e não um “direito humano básico”, expressão que países como Holanda, Espanha e Alemanha quiseram incluir na declaração. A inclusão foi bloqueada por representantes das delegações turca, americana, egípcia, francesa – e brasileira.
A decisão causou furor. Em comunicado ao Fórum, D’Escoto Brockmann afirmou que a água é um assunto importante demais para que não se exija dos governos uma prestação de contas. Ativistas e parlamentares de mais de 70 países criticaram a falta de transparência do evento e evocaram que uma discussão desse porte passe a ser conduzida pela Organização das Nações Unidas, e não pelo Conselho Mundial da Água, instituição privada sediada em Marselha, na França, que promove o fórum a cada três anos, desde 1997.
Se no caso da França a existência de fortes grupos privados da água teria influenciado a posição adotada, no do Brasil o argumento apresentado pelo Ministério das Relações Exteriores foi o da soberania – que tem orientado a política oficial brasileira em relação a temas como florestas e clima, e servido para rejeitar compromissos a metas de redução de emissão de carbono. Em nota, o MRE divulgou: “Tecnicamente, a adesão poderia abrir caminho para que outros países se manifestassem sobre a forma como o País controla o uso da água”.
A forte carga política que marcou a reunião pode encontrar explicação em uma afirmação de Benedito Braga, vice-presidente do Conselho Mundial da Água e diretor da Agência Nacional de Águas (ANA). Para ele, a importância do tema vai além da do petróleo, se se considerar que na falta do insumo energético há alternativas, como os biocombustíveis, mas para a água não há substitutos.
Como escreve a socióloga e jornalista Maristela Bernardo, com 12% da água potável do mundo – e ainda nesse cenário geopolítico tão estratégico -, o Brasil deveria ser uma potência na gestão das águas. O arcabouço legal em vigor, instituído há 12 anos pela Lei das Águas, a 9.433/97, é moderno e prevê uma gestão avançada, ao descentralizar o poder por meio da participação de uma multiplicidade de atores – governo federal, estados, sociedade civil, iniciativa privada -, ao mesmo tempo que concebe os recursos hídricos de forma integrada e não fragmentada, para além de delimitações físicas de estados e municípios, e prevê instrumentos inteligentes de gestão, como a cobrança de água para os grandes usuários e poluidores.
Mas o problema é anterior, identifica Maristela: o de que a água ainda não virou elemento estratégico na agenda federal, assim como o meio ambiente. Não por acaso o Brasil é pródigo em água, na comparação mundial – o que não deve ser confundido com o mito da abundância, usado como desculpa para o desperdício e a má gestão (leia quadro abaixo). Se nos domínios do território brasileiro há um ciclo hidrológico relativamente generoso, muito se deveria às florestas e demais ecossistemas, que mantêm condições climáticas em equilíbrio, retêm umidade e favorecem a formação das chuvas.
O Brasil das águas seria o Brasil das florestas, e portanto geri-las bem é gerir bem as águas – dois fatores que a academia científica cada vez mais considera que estão juntos (leia quadro “Atrás de Rios Voadores”), ainda que reste um ceticismo a respeito. Embora o Fórum tenha o tempo todo relacionado o agravamento da oferta de recursos hídricos e os desastres ligados à água com o aquecimento global – buscando lançar uma ponte com a 15ª Conferência das Partes sobre Mudança Climática (COP 15) em Copenhague em dezembro de 2009 -, as florestas foram um tema apagado nas discussões, e o Brasil novamente perdeu a oportunidade de se colocar como um protagonista global associando água, conservação ambiental e clima.
A impressão é a de que florestas são um assunto tão incômodo para o governo brasileiro – remete à fragilidade administrativa no combate aos desmatamentos e queimadas, levanta o assunto das metas de redução de emissão e desperta receios sobre a soberania na Amazônia – que convém deixá-lo embaixo do tapete em encontros mundiais como este.
Um dos que se revelaram céticos sobre a relação entre clima e floresta foi justamente Braga, do Conselho Mundial da Água e da ANA. Ele afirmou que não há provas dessa relação e que as chuvas são fundamentalmente formadas nos oceanos. Até mesmo do efeito da ação do homem sobre o aquecimento global ele duvida.
“Quantidade não é qualidade”, disse a respeito dos cientistas que formam o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), autores dos relatórios que praticamente comprovam a ação antrópica sobre o clima. “Mais do que científica, o IPCC é uma instituição política”, afirmou. Dito isso, Braga considera que o aquecimento global pode até ser um problema para alguns países, como a Holanda, mas não deve constar das preocupações prioritárias no Brasil quando o assunto é água.
Na mesma linha, o diretor-presidente da ANA, José Machado, afirmou que mudança climática é uma questão importante, e está no centro das atenções especialmente de países do Caribe e da América Central, devido à sua vulnerabilidade a desastres climáticos. “Mas o que mais preocupa no Brasil é a necessidade de enraizar a gestão e o planejamento. Se resolvermos estes problemas, estaremos mais preparados para equacionar o resto”, disse, referindo-se à necessidade de fortalecer os comitês de bacia.
Outra visão particular de Benedito Braga é de que a tecnologia é a grande arma para adaptar-se ao novo cenário dos recursos hídricos. Ao contrário de Thomas Malthus, que teria errado nas previsões de falta de alimentos para uma população crescente por desconsiderar o componente tecnológico, ele acredita que a ciência e a tecnologia encontrarão as respostas para as crises da humanidade.
Banheiro feminino
De fato, os painéis sobre adaptação a situações de escassez de água repetiram à exaustão a palavra tecnologia – para dessalinizar água do mar, para retirá-la do subsolo, para transportá-la de um lugar a outro, para armazenar, para reutilizar, para monitorar ciclos hidrológicos. Nos estandes da exposição que integrava o Fórum, empresas apresentavam ferramentas tecnológicas das mais variadas e sofisticadas, as que movimentam um interessante “mercado da seca”. Mas pouco se falou, por exemplo, sobre hábitos de consumo.
Coincidentemente, enquanto os painéis sobre adaptação se realizavam nos auditórios, e enfatizavam os cenários de escassez D’água no mundo e na Turquia, uma das descargas disparadas no banheiro feminino jorrava água por horas seguidas. Jorrava por um dia inteiro. Mas não parecia afligir as usuárias pertencentes às delegações, retocando o batom em frente ao espelho. Até que, depois de um apelo da reportagem à manutenção do evento, a descarga foiconsertada.
O enfoque muito tecnológico dado à discussão sobre recursos hídricos foi alvo de críticas pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN), uma rede formada por mais de milorganizações governamentais e não-governamentais. “Nós não queremos uma agenda técnica”, declarou a diretora-geral Julia Marton-Lefèvre, ao defender que os seres humanos prestem mais atenção ao ambiente se quiserem resolver esta crise. E que deixem a natureza cumprir o seu papel prestador de serviços pela conservação da água.
“Em tempo de crise econômica, a IUCN conclama os líderes empresariais e governamentais a investir na natureza como o melhor caminho para um futuro econômico saudável. Se investirmos no ambiente natural, teremos benefícios incontáveis e um mundo melhor para as futuras gerações.”
Nas discussões temáticas sobre finanças, organizadas no Fórum pelo Banco Mundial, especialistas ressaltaram o caráter estratégico do investimento em água: a estimativa é de que cada US$ 1 investido em água e saneamento reverte em US$ 8 na forma de lucro, saúde, produtividade e empregos ligados à infraestrutura.
Hoje os investimentos relacionados a água somam de US$ 400 bilhões a US$ 500 bilhões anuais, mas teme-se que diminuam diante da crise mundial. A questão é como fazer da natureza uma aliada nesse investimento, considerando-se que os ecossistemas prestam gratuitamente serviços como “produção” de água potável e reduzem significativamente riscos de desastres como enchentes, erosões, desmoronamentos e assoreamentos – além de conservar a biodiversidade, realimentar os aquíferos subterrâneos (como o Guarani), equilibrar o microclima e mitigar o aquecimento global.
Que parceiro melhor nesses momentos de crise do que aquele que presta serviços gratuitamente, e ainda de forma exímia? “Não existe água sem floresta, não existe floresta sem água e não existe sociedade sem água e sem floresta” é o mote do programa “Água das Florestas”, desenvolvido pela SOS Mata Atlântica – e apresentado no Fórum em pequena sala do estande do Brasil, numa das poucas discussões sobre Pagamento por Serviços Ambientais.
O programa é destinado a recompor as matas ciliares de propriedades rurais nas microbacias geridas pelos comitês do Alto Tietê, Médio Tietê e Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Recebe recursos do Instituto Coca-Cola, como parte de um plano da empresa para reduzir seu impacto ambiental, “devolvendo” para a natureza toda a água que retira para a produção.
Desde 2007, foram aplicados R$ 1,5 milhão e a meta é plantar 3 milhões de mudas em cinco anos, recuperando 3 mil hectares. Mas, mais que isso, explica Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas, o objetivo é atuar como um laboratório replicável a outras bacias e biomas e atender a uma antiga questão: medir quanto de fato a Mata Atlântica produz de água, e também o quanto retém em aquíferos e sequestra de carbono.
Beto Borges, diretor do programa de comunidades e mercados da Forest Trends, organização não-governamental que trabalha com a abordagem de pagamento por serviços ambientais, cita o México, o Equador e a Costa Rica como os países que reúnem as mais bem-sucedidas experiências de pagamentos por serviços hídricos [2]. Entre 1º e 4 de abril, a Forest Trends realizou em Cuiabá um encontro sobre PSA, onde relatou experiências de agricultores para manter a qualidade de água na Baía de Chesapeake, o maior estuário do Estados Unidos, além do case da Electric Power Resource no Vale do Rio Ohio.
No Brasil, mais especificamente na Amazônia, Borges entende que os pagamentos por serviços hídricos podem reforçar os esquemas de remuneração por emissões de carbono evitadas de desmatamento, melhorando os custos de oportunidade e constituindo um diferencial-chave para a Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação (Redd) – mecanismo financeiro que promete mobilizar as discussões na COP 15 na costura de um tratado pós-Kyoto.
Enquanto isso, brotam iniciativas internacionais, que buscam envolver os líderes empresariais e estimular a parceria com outros atores da sociedade para encontrar soluções para a gestão da água e do saneamento básico. Uma delas é o The CEO Water Mandate, lançada pelo Global Compact, um programa das Nações Unidas, em parceria com o Pacific Institute e o WWF. Até o momento, nenhuma empresa brasileira havia aderido à iniciativa.
Água certificada
Outro programa inovador é o da Alliance for Water Stewardship, capitaneado por Matthew Wenban-Smith, que pretende construir ferramentas que auxiliem na gestão dos recursos hídricos. Para isso, a ideia é lançar – em um prazo ainda indeterminado- um conjunto de critérios e de normas de gestão, aplicáveis pelo setor privado e passíveis de verificação. “Em alguns casos, isso poderá inclusive reduzir os gastos das empresas com água, além de ajudá-las a gerir seus relacionamentos com atores locais, construir uma reputação e dar suporte à ‘licença social para operar'”. Em suma, deve auxiliar as empresas a gerir os riscos físicos, reputacionais e estatutários relacionados à água.
Smith explica que não se trata de um programa de certificação em si, mas os critérios de conduta poderão ser usados por entidades certificadoras. Embora a certificação de água difira muito da florestal, o Forest Stewardship Council (FSC) foi a principal inspiração, diz ele. Em razão da íntima relação com florestas e agricultura, ele vê possibilidade de reconhecer critérios em comum no cuidado com a água. “Dado o longo ciclo de vida dos investimentos do setor privado, as companhias precisam de um plano para enfrentar a mudança climática, e entender a água nesse contexto”, afirma. Ou seja, construir as pontes.
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Verdade cristalina – a água permeia toda a questão da adaptação climática
Adaptação às mudanças climáticas significa adaptação à água. O recado é bem claro no estudo Don’t Stick Your Head in the Sand!, produzido por um consórcio formado pelo Conselho Mundial da Água, IUCN, Co-operative Programme on Water and Climate e International Water Association. Isto porque a água (ou a falta dela) media todas as vulnerabilidades ligadas ao clima, como secas severas, evaporação excessiva, derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, tempestades, furacões e inundações.
Considerando-se que o aquecimento global é um fenômeno dado – ainda que as emissões de carbono fossem reduzidas a zero, a temperatura global se elevará –, é preciso lançar estratégias de adaptação aos novos cenários, sem, é claro, deixar de buscar a mitigação para evitar maiores danos. Ainda em consolidação, um estudo do Catalyst Project – iniciativa da Climate Works Foundation desenhada para dar suporte a governos e negociadores de tratados do clima – estima que o custo anual de adaptação para países em desenvolvimento será de 5 bilhões a 10 bilhões de euros em 2020 e deve subir para 12 bilhões a 29 bilhões de euros de 2030 em diante.
Água no Brasil – por que a abundância é um mito
Juntas, as bacias do rios Amazonas, São Francisco e Paraná contêm o maior volume de água doce do mundo. Mas, exceto em algumas regiões, como a Amazônica, a do Paraguai e a do Tocantins- Araguaia, os principais rios brasileiros apresentam índices críticos, muito críticos ou preocupantes, segundo a classificação da Agência Nacional de Águas no quesito demanda versus disponibilidade de água. Em 2007, foi decretada situação de emergência devido à estiagem e à seca em 788 municípios, e em consequência de enchentes, inundações e alagamentos em 176 outros. Os dados são do último relatório da agência.
Enquanto isso, um estudo da Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) aponta que o maior centro urbano do País sofre risco iminente de colapso no abastecimento de água, se não for reduzido o consumo e elevada a oferta. Em maio de 2007, Página22 publicou a reportagem “Sampa tem sede de quê?”, que já avisava sobre a crise de água na Região Metropolitana de São Paulo. E, ainda que o Brasil esteja mais confortável diante da situação de países como a China, a água “exportada” na forma de alimentos pode mudar esse quadro. É o que se chama de água virtual. Ela nasce localmente, mas é transferida para outros lugares pelo comércio globalizado. Em troca, nações exportadoras como Brasil “internalizam” os problemas de outros países, como a escassez de água e a sua contaminação por agrotóxicos nas práticas agrícolas não sustentáveis.
A rede de organizações Water Footprint Network está de olho na água virtual e na pegada ecológica de água de países e empresas. O leitor pode calcular a sua clicando em WaterFootprintCalculator. Segundo o 3º Relatório das Nações Unidas, a pegada média global é de 1.240 metros cúbicos por ano per capita. A americana é de 2.480 e a chinesa, de 700. Determinam a pegada de um país o volume de consumo, o tipo de produto consumido (por exemplo, a produção de 1 quilo de carne bovina requer até 4 mil litros de água), o clima e as práticas agrícolas, como a eficiência no uso da irrigação.
Cinema, turismo e cabras – experiências no Semi -Árido brasileiro
Adaptar-se não necessariamente requer investimentos bilionários. Um caso clássico de adaptação no Semi-Árido brasileiro deu-se em Cabaceiras (PB). A cidade com o menor índice pluviométrico do País tenta moldar-se à seca, buscando outras vocações econômicas. Por exemplo, a do turismo – além de exibir atrações arqueológicas, a cidade garante tempo bom para o turista ávido por sol, como aquele que vem de países nórdicos – e a cinematográfica. Aproveitando o cenário natural do casario histórico, o ex-prefeito Arnaldo Júnior Farias Doso criou um pólo de produção de cinema, e uma série de filmes, como Cinema, Aspirinas e Urubus e O Auto da Compadecida, foi locada lá. Com a vantagem de praticamente não haver chuva para atrasar as filmagens.
Tentativas como essa, de imprimir um outro tipo de desenvolvimento na região do Semi-Árido, adaptadas às condições climáticas, têm sido objeto de estudo de Oswaldo Gonçalves Junior, doutorando em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Em vez de grandes obras, como a da transposição do Rio São Francisco, com alto custo e resultado discutível, há uma miríade de alternativas inteligentes e mais acessíveis. Como a de incentivar a criação de cabras e ovelhas, que consomem ,enos e produzem mais do que as vacas, no contexto do Semi-Árido.
Para isso, englobando mudanças culturais – a criação de gado é arraigada na cultura sertaneja – Gonçalves ressalta a necessidade de forjar a construção de um mercado, por meio de políticas públicas. O leite de cabra, por exemplo, tem sido usado no programa Fome Zero. “Os mercados são construções sociais que podem envolver inclusão e uma atuação mais presente do Estado”, acredita. E nessa construção, especialmente em se tratando do Semi-Árido, a variável climática ganha um peso cada vez maior.
Atrás de rio voadores – Eles podem ter até 3.200 metros cúbicos de água, 27 vezes a vazão do Tietê
Um avião-laboratório construído para ir atrás de nuvens, capturar gotas d’água e guardá-las em tubos de ensaio para pesquisa percorreu 1.160 pontos do mapa brasileiro em 12 vôos de 2007 até agora. O piloto e chefe da expedição, Gérard Moss, apoiado por uma equipe científica de peso, constatou que pelo menos metade da umidade que chega aos brasileiros vem da Amazônia, influenciando as chuvas do Sul e Sudeste do País. Atrás dos Rios Voadores – nome que batiza o fenômeno dos ventos amazônicos passeando pelos céus e também esta expedição – Moss revelou a aventura de perseguir uma massa de ar de Belém até São Paulo no momento em que alertava para a urgência de manter a floresta Amazônia preservada.
Enquanto cabe a ele coletar vapores durante os vôos, cientistas em terra – entre os quais Eneas Salati, José Marengo, Antonio Nobre, Pedro Leite da Silva Dias – estão analisando a importância do transporte de umidade de um rio voador, trabalho pioneiro no mundo, patrocinado pela Petrobras.
Entre os dados preliminares dessas análises, observou-se que um rio voador pode ter até 3.200 metros cúbicos de água, 27 vezes a vazão do Rio Tietê, com a diferença que o voador dura um dia e vira chuva. Verificando o trajeto do vapor de água, os cientistas atestaram que, nos dias com maior potencial para chuva, grande parte da umidade veio da Amazônia e que um dos “serviços” cruciais da floresta é quando as árvores retiram umidade do solo e a levam para a atmosfera, regulando o abastecimento de vapor de água.
A maior floresta tropical úmida do mundo também absorve 40% da energia solar na região, regulando seu microclima. “A floresta é uma bomba hidrológica e o desmatamento quebra todo esse equilíbrio”, diz Moss. Outras gotas d’água coletadas por ele ainda serão analisadas e a expectativa é que as informações mostrem até que pontoo desmatamento da Região Amazônica poderá afetar o clima no restante do País. – por Ana Cristina D’Angelo
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