Plástico, múltiplo e dinâmico, o sistema capitalista comportaria uma nova lógica de consumo e produção capaz de promover prosperidade nos limites que o ambiente impõe. Essa mudança, entretanto, precisa antes ser objeto de um desejo coletivo
Por Amália Safatle
Das expressões que mais ouvia dos analistas financeiros, quando comecei a carreira jornalística cobrindo o mercado de capitais, estava a tal “taxa de crescimento em perpetuidade”. Combinada com a taxa de desconto, a Selic, constitui a fórmula básica para a chamada valuation, ou avaliação do valor das ações das companhias. A meus botões perguntava que raio era essa tal de perpetuidade, e achava engraçado um conceito tão vago, de uma dimensão que soava até mesmo espiritual, guiar cálculos tão presumidamente objetivos.
Ainda que fosse uma expressão para não ser tomada ao pé da letra, pensava “como assim, perpetuidade?”, se a empresa em questão podia fechar as portas dali a poucos anos, ou o crescimento do lucro esbarrar em problemas como falta de matéria-prima, limitada pelos estoques finitos de recursos naturais. Sustentabilidade para mim era uma noção meramente intuitiva e eu ainda não ousava formular esse tipo de questão nas entrevistas.
Hoje, mais que nunca, tal questionamento é proposto de forma clara e contundente, em especial pelos economistas ecológicos. A discussão torna-se ainda mais interessante, para não dizer fundamental, quando a eclosão de uma crise financeira e econômica coincide com a maior percepção de que algo vai mal, muito mal, no âmbito da natureza. Quando o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, para citar exemplo de um economista influente e formador de opinião, começa a dizer de forma mais enfática que não adianta muito salvar a economia se não houver condições ambientais que a suportem, começa a se abrir a trilha que leva à revisão da forma como o sistema econômico vigente opera.
“Toda sociedade se agarra a mito para viver. O nosso é o mito do crescimento econômico.” Assim Tim Jackson, líder do grupo econômico da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, inicia o prefácio do relatório Prosperidade sem Crescimento? – A transição para uma economia sustentável. Esse mito, entretanto, nos traiu, diz Jackson. Embora a economia global hoje seja cinco vezes maior que há cinco décadas- período em que o crescimento se tornou o principalobjeto de políticas ao redor do mundo -, deixou na mão tanto os 2 bilhões de pessoas que ainda vivem com menos de US$ 2 por dia como o frágil ecossistema do qual as pessoas dependem para sobreviver. E ainda falhou em prover estabilidade e segurança econômica.
Se o crescimento for uma condição intrínseca do capitalismo, a discussão sobre a sustentabilidade seria capaz de colocar esse sistema econômico novamente sob análise, mais de um século depois da crítica marxista.
Alguns especialistas ouvidos nesta reportagem acreditam que não com a mesma profundidade do marxismo, desferido sobre o eixo fundamental da lógica capitalista, e que abriu caminho para a proposta política socialista. Mas, sim, na capacidade de remodelar o capitalismo, provavelmente alçando-o a um estágio evolutivo no qual se reduzem imperfeições como injustiça social, exploração do homem pelo homem e uso predatório de recursos naturais.
O risco de inocular a sustentabilidade no capitalismo é que, em vez de usar o sistema para “rodar” uma economia mais sustentável, este se aproprie da ideia, reempacote-a de acordo com os interesses dominantes e a use não para transformar, mas para manter o business as usual, sem mudanças fundamentais em paradigmas de consumo e produção. A reportagem O todo poderoso, por exemplo, expõe a dificuldade de desfazer o nó do consumo diante do desafio da sustentabilidade.
Maria Rita Loureiro Durand, chefe do departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), não acredita que a sustentabilidade vá romper a lógica do capitalismo, que põe o homem a serviço da produção, em vez de a produção a serviço do homem – o que a torna essencialmente perversa -, mas é capaz de “suavizar a selvageria”. Segundo ela, a única crítica de peso feita ao capitalismo após o marxismo surgiu pela via ambiental, tendo como alvo o consumismo exacerbado e o padrão produtivo predatório. “Mas é uma crítica que atua nas bordas, e não no eixo do sistema, e o risco de ser apropriada é muito alto”, diz a professora.
É de questionar também se as mazelas do capitalismo devem-se ao sistema em si ou à forma como é aplicado pelo ser humano, com todas as suas fraquezas morais. Em artigo publicado em março último no The New York Review of Books, Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998, defende que a atual crise econômica não pede um “novo capitalismo” e, sim, o resgate e a nova compreensão de antigas ideias como as de Adam Smith e Arthur Cecil Pigou, economistas dos séculos XVIII e XX.
Em Teoria dos Sentimentos Morais, obra publicada em 1759, Smith afirma que a prudência é a mais útil virtude individual, enquanto humanidade, justiça, generosidade e espírito público são as maiores qualidades no trato com os outros. Ele via os mercados e o capital funcionando bem dentro de sua própria esfera, mas, antes disso, seriam necessários ao sistema o apoio de outras instituições, como serviços públicos e escolas, o cultivo de valores além da busca do lucro, e mecanismos de regulação financeira e de assistência aos pobres que os prevenissem contra instabilidade, iniquidade e injustiças. E quanto a Pigou, segundo Sen, foi pioneiro ao dimensionar a desigualdade como principal indicador para a política econômica.
O componente moral, que leva o indivíduo a considerar e respeitar o outro- seja a pessoa ao lado ou tudo o que compõe o ambiente à volta e até mesmo as gerações ainda por nascer -, ou a falta dele, moldaria fundamentalmente o capitalismo.
“O capitalismo fora de controle é como o indivíduo que não respeita o outro. O que vale para o ser humano vale para as corporações e para o sistema”, diz Marcos Fernandes Gonçalves, coordenador do projeto pedagógico da Escola de Economia de São Paulo da FGV.
Aerton Paiva, sócio-diretor da Apel Pesquisa e Desenvolvimento de Projetos, empresa que presta consultoria em sustentabilidade para o universo corporativo, cita o antropólogo Maurice Godelier, estudioso das sociedades pré-capitalistas, para dizer que “o lucro é do ser humano”, pois mesmo essas sociedades buscavam um ganho valendo-se de suas trocas. “Talvez dois questionamentos a fazer refiram-se ao tamanho do lucro e às formas de obtê-lo.
Desde Platão, por exemplo, discute-se a ganância”, afirma Paiva, que ainda cita frase do desenhista e humorista Millôr Fernandes: “Se 1 equivale a ter uma vida digna, ninguém deveria ter mais do que 10”.
Rapte-me, camaleoa
Nesse debate aberto pela reportagem, os especialistas ouvidos partem da premissa de que não se pode falar em um só capitalismo, mas em vários, e que talvez esteja nessa plasticidade camaleônica a chave para redesenhar um capitalismo adaptado às novas demandas que a sociedade aspira e às condições que o ambiente impõe. “É uma expressão que precisa ser definida no plural.
Os estudos contemporâneos sobre ‘os capitalismos’ são muito expressivos”, aponta Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental.
“Para o desespero de marxistas ou neomarxistas, não percebo uma crise sistêmica no capitalismo em si. De todos os modos de produção experimentados, é o mais flexível e o que mostra maior facilidade de adaptação a mudanças”, diz Carlos Eduardo Frickmann Young, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo ele, se o capitalismo já foicapaz de coexistir com a escravidão, convive com o Welfare State (o Estado do Bem-Estar Social nos países europeus), com os regimes democráticos e com os autoritários; e, se na China existe o capitalismo de Estado, por que esse tipo de sistema não seria capaz de se adaptar também à sustentabilidade, entendendo-a como a preocupação com as questões de longo prazo e a busca de maior equidade social? “Se eu não acreditasse nisso, estaria pregando a Revolução”, afirma.
Um certo capitalismo, portanto, seria compatível com uma economia que opera dentro dos limites biofísicos, regulando a quantidade de recursos que são processados na economia e de resíduos que retornam para o ambiente com a capacidade regenerativa e assimilativa do ecossistema e criando “espaço” ecológico para que as nações pobres possam se desenvolver.
Mais que compatível, esse novo sistema econômico será inevitável, sustenta Philip Lawn, em entrevista nesta edição.
Especialistas como Lawn reforçam o pequeno exército disposto a repensar o funcionamento da economia. Segundo José Eli da Veiga, professor titular do Departamento de Economia da USP, há importantes avanços ao menos no plano das ideias. Exemplos disso estão na emergente discussão de novos indicadores de desenvolvimento, suplantando o PIB, na realização de um grande encontro científico no ano passado sobre a ideia de degrowth (decrescimento), e o próprio relatório de Jackson, enumera Veiga.
Trata-se de uma bela mudança no modelo mental, considerando-se que- afora o fato de bilhões de pessoas aspirarem o nível de afluência atingido pelas nações da OCDE – qualquer escola macroeconômica, seja ortodoxa, seja heterodoxa, pressupõe que é preciso fazer de tudo para aumentar o consumo.
“Tanto é que essa crise não mostra outra coisa: começa a crise, começa o apelo para que as pessoas consumam. A gente acaba percebendo que, quando o americano decide comprar menos, cria um problema global. E o relatório indica que, se permanecer essa lógica, não há sustentabilidade”, diz Veiga.
Jackson entende que a recuperação econômica é vital, e que proteger os empregos e criar outros é absolutamente essencial, em especial nos países em desenvolvimento. Independente disso, urge revisar o sentido de prosperidade.
Para isso, Herman Daly, um dos expoentes da Economia Ecológica, usa a figura da biblioteca abarrotada. Como uma biblioteca, na qual não cabem mais livros – tal qualo planeta com os seus limites -, pode tornar-se melhor e mais rica? Não será pela aquisição de mais obras. Mas pode ser pela substituição de um livro menos interessante por outro de melhor qualidade.
Da mesma forma, seria possível ter uma qualidade de vida melhor sem consumir mais bens. Para países onde beber água e comer proteína ainda são questões fundamentais a resolver, tal discussão configuraria um despropósito. Mas seria aplicável, por exemplo, a nações já desenvolvidas.
Não que a fórmula esteja dada, longe disso. O estudo de Jackson levanta uma série de dúvidas. Um know -how que está por vir, pois jamais foi experimentado na história econômica. Por exemplo, que tipos de atividade comporiam esse novo modelo econômico, digamos assim, me- nos materializado? Talvez vender serviços de mobilidade, em vez de os carros em si, seja um exemplo. Reciclar, reutilizar, usar leasing (mais na reportagem “Todos fora do quadrado”). Mas aí surge outra pergunta: é possível “fazer” dinheiro o suficiente para manter a economia ativa por meio dessas atividades?
Outra questão que ele aponta é quanto a denominada economia verde pode ser efetiva em termos ecológicos. É o que ele chama de mito do descasamento. Pelo descasamento, o contínuo crescimento econômico reduziria a quantidade de recursos injetados na economia, em função do ganho de eficiência promovido por avanços e inovações tecnológicas, com produtos que gastam menos energia e empregam recursos renováveis ou menos matéria-prima. De fato, a quantidade de energia primária necessária para cada unidade produzida tem caído nos últimos 50 anos. Hoje, a intensidade energética global é 33% menor que em 1970.
O problema é que se trata de um descasamento relativo, não necessariamente absoluto, pois a poupança obtida com a redução é empregada no aumento de consumo de outros produtos ou atividades – um efeito apelidado de ricochete (rebound effect – leia mais em “Efeito Cilada”).
E um terceiro ponto em aberto é nada menos que a necessidade de criar um novo modelo macroeconômico. Isso porque ainda não há um modelo para saber como se comportam os “agregados” macroeconômicos – produção, consumo, emprego, gastos públicos, comércio, entre outros – quando não há acumulação de capital. E nem é capaz de incluir variáveis como emissões de carbono, uso de recursos naturais e manutenção da integridade ecológica.
Como diz Cadu Young, da UFRJ, vale recorrer ao economista Celso Furtado, “no belíssimo início de seu livro A Fantasia Organizada: precisamos organizar uma nova fantasia. Na quarta-feira, ela já se acabou. Mas aí a gente inicia o projeto do próximo Carnaval”. Isso para dizer que o futuro é, em parte, o que a sociedade quer ele seja, mas isso depende de se ter um sonho. Com o que a sociedade sonha hoje?
Evolução e harmonia
O sonho implique ou não a prosperidade, a realidade é de um mundo no qual, embora haja crescente informação e transparência, as incertezas são também crescentes. “Talvez nunca antes na história do capitalismo tenha havido tanto conhecimento sobre riscos de mercado, nem tanta transparência por parte das empresas”, afirma Abramovay. Ainda assim, deu no que deu. Prova de que a economia é muito mais dinâmica e imprevisível do que se pode supor e controlar, resultado de uma intricada rede de construções sociais e inovações – o que abre argumentos tanto para quem defende maior regulação do Estado como para quem acredita que a regulação não resolve.
É como se a sociedade moderna e o sistema financeiro tivessem atingido o grau de vapor d’água, no qual as moléculas se agitam de forma intensa e volátil, em comparação com estágios como o do gelo, com movimento controlável e tangível, e como o da água em estado líquido, expõe Ricardo Guimarães, presidente da empresa de branding Thymus, durante recente seminário internacional da Fundação Nacional da Qualidade.
Em outra figura de linguagem, Guimarães diz que diante de crises financeiras e ambientais somos surpreendidos e ficamos desapontados, como crianças que, entusiasmadas com o brinquedo novo, não leem seu manual, usam mal seus recursos, danificam peças e comprometem o funcionamento da brincadeira.
Assim como o brinquedo quebrado, as crises são oportunidades de dar uma olhada no manual para saber como ele funciona e onde erramos. “A tese é que nosso erro foi não perceber que o alto grau de interdependência e complexidade das relações entre os membros do sistema mudou a sua natureza e portanto as leis que regem o seu bom funcionamento”, diz.
Segundo ele, nenhum gestor estaria preparado para lidar com o aumento da complexidade, da velocidade e com a noção de interdependência. “Assim”, afirma Marcos Gonçalves, da FGV, “as empresas podem e devem ser mais atentas, a fim de transformar os riscos sistêmicos em oportunidade de criação de valor”. Tudo isso em um ambiente de maior controle, seja da lei, com a evolução dos arcabouços legais, seja da sociedade, vigilante ao jeito de como as empresas operam e fazem seus produtos.
A shareholder view, a visão do acionista simplesmente em busca de sua remuneração, dá espaço à stakeholder view, a visão dos diversificados públicos com os quais as empresas interagem. Isso permite uma combinação de relacionamentos antes inimaginável, diz Abramovay. Tal qual as moléculas do vapor d’água. Como exemplifica o professor, vê-se uma organização de tradição combativa, como a Rainforest Alliance, passando a certificar grandes produtores do agronegócio. Companhias elaborando novos padrões de medida de riqueza e reportando o balanço de água, de carbono, de energia, de materiais. O crescimento da noção de cadeia produtiva.
Os movimentos sociais voltando-se mais para os mercados que para o Estado, ingressando em searas que antes não lhe pertenciam e inserindo a política no seu funcionamento. “Agora, como tudo isso se dá no campo social, é conflito, é pau. São as mesas-redondas, por exemplo”, afirma Abramovay. “O processo não é feito por uma entidade demiúrgica, e, sim, com base nas disputas.” Em vez de abolir os mercados, esse movimento os transforma e reconstrói. A qualidade dessa evolução vai depender da qualidade das pressões que a sociedade fizer.
“São rupturas de paradigma que se dão de forma ainda localizada e vão pavimentar o caminho do futuro”, diz Decio Zylbersztajn, presidente do Conselho de Orientação do Centro de Conhecimento em Agronegócios (Pensa). “Mas não há dúvidas de que o velho paradigma ainda está crescendo, como se pode ver pela expansão da China.”
Para mudar a lógica, diz ele, um primeiro incentivo seria dado pelo mercado, disposto a remunerar o serviço ambiental. O segundo seria institucional, que pode ser formal, via regras, ou informal, pela mudança de costumes sociais. O terceiro, mais demorado, ocorreria no nível individual, que pressupõe educação e formação de valores.
Aerton Paiva, da Apel, considera que, nesse campo social, está faltando um jogador importante: o cidadão. Aquele que pode ser consumidor, funcionário ou acionista, não importa o boné que use, mas antes é o sujeito capaz de se indignar e protestar. “Na Grécia, o cidadão estava na praça, manifestando suas opiniões. Não era a democracia perfeita, pois, enquanto isso, havia os escravos para fazer o trabalho pesado. Ocorre que hoje falta gente na rua, pois todos são escravos correndo atrás de ‘ganhar o seu’.”
Redes sociais pela internet e o cyberativismo fariam as vezes dessa participação cidadã – ou parte dela. Basta lembrar a importância da web na eleição de Obama. Mas Paiva ressalta o efeito mais poderoso de uma manifestação real. “Quando o Greenpeace despejou na porta da Philips milhares de lâmpadas fluorescentes (poupam energia, mas contêm mercúrio), para as quais a empresa não havia resolvido o problema do descarte, o risco de perda de reputação era tão grande, que a empresa tomou medidas em 72 horas”, diz.
Enquanto a sustentabilidade provoca esse tipo de luta em busca de uma “paz verde”, na tradução literal, estudiosos como José Eli da Veiga levantam com preocupação o risco de um resultado muito menos feliz para a equação econômica global. Como se sabe, quem cobre o déficit americano é a economia chinesa, o que leva a crer que esteja havendo uma mudança do eixo da acumulação para o Oriente – China, Japão, Coreia do Sul.
“Então, se houver uma polarização, resta saber até que ponto essa transição será pacífica, pois a História mostra que todas as anteriores não foram. Na hora H, tem guerra. Aí, toda essa discussão de sustentabilidade vira sonho de uma noite de verão. A superação do capitalismo por causa da sustentabilidade seria o cenário mais otimista”, diz.[:en]Plástico, múltiplo e dinâmico, o sistema capitalista comportaria uma nova lógica de consumo e produção capaz de promover prosperidade nos limites que o ambiente impõe. Essa mudança, entretanto, precisa antes ser objeto de um desejo coletivo
Por Amália Safatle
Das expressões que mais ouvia dos analistas financeiros, quando comecei a carreira jornalística cobrindo o mercado de capitais, estava a tal “taxa de crescimento em perpetuidade”. Combinada com a taxa de desconto, a Selic, constitui a fórmula básica para a chamada valuation, ou avaliação do valor das ações das companhias. A meus botões perguntava que raio era essa tal de perpetuidade, e achava engraçado um conceito tão vago, de uma dimensão que soava até mesmo espiritual, guiar cálculos tão presumidamente objetivos.
Ainda que fosse uma expressão para não ser tomada ao pé da letra, pensava “como assim, perpetuidade?”, se a empresa em questão podia fechar as portas dali a poucos anos, ou o crescimento do lucro esbarrar em problemas como falta de matéria-prima, limitada pelos estoques finitos de recursos naturais. Sustentabilidade para mim era uma noção meramente intuitiva e eu ainda não ousava formular esse tipo de questão nas entrevistas.
Hoje, mais que nunca, tal questionamento é proposto de forma clara e contundente, em especial pelos economistas ecológicos. A discussão torna-se ainda mais interessante, para não dizer fundamental, quando a eclosão de uma crise financeira e econômica coincide com a maior percepção de que algo vai mal, muito mal, no âmbito da natureza. Quando o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, para citar exemplo de um economista influente e formador de opinião, começa a dizer de forma mais enfática que não adianta muito salvar a economia se não houver condições ambientais que a suportem, começa a se abrir a trilha que leva à revisão da forma como o sistema econômico vigente opera.
“Toda sociedade se agarra a mito para viver. O nosso é o mito do crescimento econômico.” Assim Tim Jackson, líder do grupo econômico da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, inicia o prefácio do relatório Prosperidade sem Crescimento? – A transição para uma economia sustentável. Esse mito, entretanto, nos traiu, diz Jackson. Embora a economia global hoje seja cinco vezes maior que há cinco décadas- período em que o crescimento se tornou o principalobjeto de políticas ao redor do mundo -, deixou na mão tanto os 2 bilhões de pessoas que ainda vivem com menos de US$ 2 por dia como o frágil ecossistema do qual as pessoas dependem para sobreviver. E ainda falhou em prover estabilidade e segurança econômica.
Se o crescimento for uma condição intrínseca do capitalismo, a discussão sobre a sustentabilidade seria capaz de colocar esse sistema econômico novamente sob análise, mais de um século depois da crítica marxista.
Alguns especialistas ouvidos nesta reportagem acreditam que não com a mesma profundidade do marxismo, desferido sobre o eixo fundamental da lógica capitalista, e que abriu caminho para a proposta política socialista. Mas, sim, na capacidade de remodelar o capitalismo, provavelmente alçando-o a um estágio evolutivo no qual se reduzem imperfeições como injustiça social, exploração do homem pelo homem e uso predatório de recursos naturais.
O risco de inocular a sustentabilidade no capitalismo é que, em vez de usar o sistema para “rodar” uma economia mais sustentável, este se aproprie da ideia, reempacote-a de acordo com os interesses dominantes e a use não para transformar, mas para manter o business as usual, sem mudanças fundamentais em paradigmas de consumo e produção. A reportagem O todo poderoso, por exemplo, expõe a dificuldade de desfazer o nó do consumo diante do desafio da sustentabilidade.
Maria Rita Loureiro Durand, chefe do departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), não acredita que a sustentabilidade vá romper a lógica do capitalismo, que põe o homem a serviço da produção, em vez de a produção a serviço do homem – o que a torna essencialmente perversa -, mas é capaz de “suavizar a selvageria”. Segundo ela, a única crítica de peso feita ao capitalismo após o marxismo surgiu pela via ambiental, tendo como alvo o consumismo exacerbado e o padrão produtivo predatório. “Mas é uma crítica que atua nas bordas, e não no eixo do sistema, e o risco de ser apropriada é muito alto”, diz a professora.
É de questionar também se as mazelas do capitalismo devem-se ao sistema em si ou à forma como é aplicado pelo ser humano, com todas as suas fraquezas morais. Em artigo publicado em março último no The New York Review of Books, Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia em 1998, defende que a atual crise econômica não pede um “novo capitalismo” e, sim, o resgate e a nova compreensão de antigas ideias como as de Adam Smith e Arthur Cecil Pigou, economistas dos séculos XVIII e XX.
Em Teoria dos Sentimentos Morais, obra publicada em 1759, Smith afirma que a prudência é a mais útil virtude individual, enquanto humanidade, justiça, generosidade e espírito público são as maiores qualidades no trato com os outros. Ele via os mercados e o capital funcionando bem dentro de sua própria esfera, mas, antes disso, seriam necessários ao sistema o apoio de outras instituições, como serviços públicos e escolas, o cultivo de valores além da busca do lucro, e mecanismos de regulação financeira e de assistência aos pobres que os prevenissem contra instabilidade, iniquidade e injustiças. E quanto a Pigou, segundo Sen, foi pioneiro ao dimensionar a desigualdade como principal indicador para a política econômica.
O componente moral, que leva o indivíduo a considerar e respeitar o outro- seja a pessoa ao lado ou tudo o que compõe o ambiente à volta e até mesmo as gerações ainda por nascer -, ou a falta dele, moldaria fundamentalmente o capitalismo.
“O capitalismo fora de controle é como o indivíduo que não respeita o outro. O que vale para o ser humano vale para as corporações e para o sistema”, diz Marcos Fernandes Gonçalves, coordenador do projeto pedagógico da Escola de Economia de São Paulo da FGV.
Aerton Paiva, sócio-diretor da Apel Pesquisa e Desenvolvimento de Projetos, empresa que presta consultoria em sustentabilidade para o universo corporativo, cita o antropólogo Maurice Godelier, estudioso das sociedades pré-capitalistas, para dizer que “o lucro é do ser humano”, pois mesmo essas sociedades buscavam um ganho valendo-se de suas trocas. “Talvez dois questionamentos a fazer refiram-se ao tamanho do lucro e às formas de obtê-lo.
Desde Platão, por exemplo, discute-se a ganância”, afirma Paiva, que ainda cita frase do desenhista e humorista Millôr Fernandes: “Se 1 equivale a ter uma vida digna, ninguém deveria ter mais do que 10”.
Rapte-me, camaleoa
Nesse debate aberto pela reportagem, os especialistas ouvidos partem da premissa de que não se pode falar em um só capitalismo, mas em vários, e que talvez esteja nessa plasticidade camaleônica a chave para redesenhar um capitalismo adaptado às novas demandas que a sociedade aspira e às condições que o ambiente impõe. “É uma expressão que precisa ser definida no plural.
Os estudos contemporâneos sobre ‘os capitalismos’ são muito expressivos”, aponta Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental.
“Para o desespero de marxistas ou neomarxistas, não percebo uma crise sistêmica no capitalismo em si. De todos os modos de produção experimentados, é o mais flexível e o que mostra maior facilidade de adaptação a mudanças”, diz Carlos Eduardo Frickmann Young, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo ele, se o capitalismo já foicapaz de coexistir com a escravidão, convive com o Welfare State (o Estado do Bem-Estar Social nos países europeus), com os regimes democráticos e com os autoritários; e, se na China existe o capitalismo de Estado, por que esse tipo de sistema não seria capaz de se adaptar também à sustentabilidade, entendendo-a como a preocupação com as questões de longo prazo e a busca de maior equidade social? “Se eu não acreditasse nisso, estaria pregando a Revolução”, afirma.
Um certo capitalismo, portanto, seria compatível com uma economia que opera dentro dos limites biofísicos, regulando a quantidade de recursos que são processados na economia e de resíduos que retornam para o ambiente com a capacidade regenerativa e assimilativa do ecossistema e criando “espaço” ecológico para que as nações pobres possam se desenvolver.
Mais que compatível, esse novo sistema econômico será inevitável, sustenta Philip Lawn, em entrevista nesta edição.
Especialistas como Lawn reforçam o pequeno exército disposto a repensar o funcionamento da economia. Segundo José Eli da Veiga, professor titular do Departamento de Economia da USP, há importantes avanços ao menos no plano das ideias. Exemplos disso estão na emergente discussão de novos indicadores de desenvolvimento, suplantando o PIB, na realização de um grande encontro científico no ano passado sobre a ideia de degrowth (decrescimento), e o próprio relatório de Jackson, enumera Veiga.
Trata-se de uma bela mudança no modelo mental, considerando-se que- afora o fato de bilhões de pessoas aspirarem o nível de afluência atingido pelas nações da OCDE – qualquer escola macroeconômica, seja ortodoxa, seja heterodoxa, pressupõe que é preciso fazer de tudo para aumentar o consumo.
“Tanto é que essa crise não mostra outra coisa: começa a crise, começa o apelo para que as pessoas consumam. A gente acaba percebendo que, quando o americano decide comprar menos, cria um problema global. E o relatório indica que, se permanecer essa lógica, não há sustentabilidade”, diz Veiga.
Jackson entende que a recuperação econômica é vital, e que proteger os empregos e criar outros é absolutamente essencial, em especial nos países em desenvolvimento. Independente disso, urge revisar o sentido de prosperidade.
Para isso, Herman Daly, um dos expoentes da Economia Ecológica, usa a figura da biblioteca abarrotada. Como uma biblioteca, na qual não cabem mais livros – tal qualo planeta com os seus limites -, pode tornar-se melhor e mais rica? Não será pela aquisição de mais obras. Mas pode ser pela substituição de um livro menos interessante por outro de melhor qualidade.
Da mesma forma, seria possível ter uma qualidade de vida melhor sem consumir mais bens. Para países onde beber água e comer proteína ainda são questões fundamentais a resolver, tal discussão configuraria um despropósito. Mas seria aplicável, por exemplo, a nações já desenvolvidas.
Não que a fórmula esteja dada, longe disso. O estudo de Jackson levanta uma série de dúvidas. Um know -how que está por vir, pois jamais foi experimentado na história econômica. Por exemplo, que tipos de atividade comporiam esse novo modelo econômico, digamos assim, me- nos materializado? Talvez vender serviços de mobilidade, em vez de os carros em si, seja um exemplo. Reciclar, reutilizar, usar leasing (mais na reportagem “Todos fora do quadrado”). Mas aí surge outra pergunta: é possível “fazer” dinheiro o suficiente para manter a economia ativa por meio dessas atividades?
Outra questão que ele aponta é quanto a denominada economia verde pode ser efetiva em termos ecológicos. É o que ele chama de mito do descasamento. Pelo descasamento, o contínuo crescimento econômico reduziria a quantidade de recursos injetados na economia, em função do ganho de eficiência promovido por avanços e inovações tecnológicas, com produtos que gastam menos energia e empregam recursos renováveis ou menos matéria-prima. De fato, a quantidade de energia primária necessária para cada unidade produzida tem caído nos últimos 50 anos. Hoje, a intensidade energética global é 33% menor que em 1970.
O problema é que se trata de um descasamento relativo, não necessariamente absoluto, pois a poupança obtida com a redução é empregada no aumento de consumo de outros produtos ou atividades – um efeito apelidado de ricochete (rebound effect – leia mais em “Efeito Cilada”).
E um terceiro ponto em aberto é nada menos que a necessidade de criar um novo modelo macroeconômico. Isso porque ainda não há um modelo para saber como se comportam os “agregados” macroeconômicos – produção, consumo, emprego, gastos públicos, comércio, entre outros – quando não há acumulação de capital. E nem é capaz de incluir variáveis como emissões de carbono, uso de recursos naturais e manutenção da integridade ecológica.
Como diz Cadu Young, da UFRJ, vale recorrer ao economista Celso Furtado, “no belíssimo início de seu livro A Fantasia Organizada: precisamos organizar uma nova fantasia. Na quarta-feira, ela já se acabou. Mas aí a gente inicia o projeto do próximo Carnaval”. Isso para dizer que o futuro é, em parte, o que a sociedade quer ele seja, mas isso depende de se ter um sonho. Com o que a sociedade sonha hoje?
Evolução e harmonia
O sonho implique ou não a prosperidade, a realidade é de um mundo no qual, embora haja crescente informação e transparência, as incertezas são também crescentes. “Talvez nunca antes na história do capitalismo tenha havido tanto conhecimento sobre riscos de mercado, nem tanta transparência por parte das empresas”, afirma Abramovay. Ainda assim, deu no que deu. Prova de que a economia é muito mais dinâmica e imprevisível do que se pode supor e controlar, resultado de uma intricada rede de construções sociais e inovações – o que abre argumentos tanto para quem defende maior regulação do Estado como para quem acredita que a regulação não resolve.
É como se a sociedade moderna e o sistema financeiro tivessem atingido o grau de vapor d’água, no qual as moléculas se agitam de forma intensa e volátil, em comparação com estágios como o do gelo, com movimento controlável e tangível, e como o da água em estado líquido, expõe Ricardo Guimarães, presidente da empresa de branding Thymus, durante recente seminário internacional da Fundação Nacional da Qualidade.
Em outra figura de linguagem, Guimarães diz que diante de crises financeiras e ambientais somos surpreendidos e ficamos desapontados, como crianças que, entusiasmadas com o brinquedo novo, não leem seu manual, usam mal seus recursos, danificam peças e comprometem o funcionamento da brincadeira.
Assim como o brinquedo quebrado, as crises são oportunidades de dar uma olhada no manual para saber como ele funciona e onde erramos. “A tese é que nosso erro foi não perceber que o alto grau de interdependência e complexidade das relações entre os membros do sistema mudou a sua natureza e portanto as leis que regem o seu bom funcionamento”, diz.
Segundo ele, nenhum gestor estaria preparado para lidar com o aumento da complexidade, da velocidade e com a noção de interdependência. “Assim”, afirma Marcos Gonçalves, da FGV, “as empresas podem e devem ser mais atentas, a fim de transformar os riscos sistêmicos em oportunidade de criação de valor”. Tudo isso em um ambiente de maior controle, seja da lei, com a evolução dos arcabouços legais, seja da sociedade, vigilante ao jeito de como as empresas operam e fazem seus produtos.
A shareholder view, a visão do acionista simplesmente em busca de sua remuneração, dá espaço à stakeholder view, a visão dos diversificados públicos com os quais as empresas interagem. Isso permite uma combinação de relacionamentos antes inimaginável, diz Abramovay. Tal qual as moléculas do vapor d’água. Como exemplifica o professor, vê-se uma organização de tradição combativa, como a Rainforest Alliance, passando a certificar grandes produtores do agronegócio. Companhias elaborando novos padrões de medida de riqueza e reportando o balanço de água, de carbono, de energia, de materiais. O crescimento da noção de cadeia produtiva.
Os movimentos sociais voltando-se mais para os mercados que para o Estado, ingressando em searas que antes não lhe pertenciam e inserindo a política no seu funcionamento. “Agora, como tudo isso se dá no campo social, é conflito, é pau. São as mesas-redondas, por exemplo”, afirma Abramovay. “O processo não é feito por uma entidade demiúrgica, e, sim, com base nas disputas.” Em vez de abolir os mercados, esse movimento os transforma e reconstrói. A qualidade dessa evolução vai depender da qualidade das pressões que a sociedade fizer.
“São rupturas de paradigma que se dão de forma ainda localizada e vão pavimentar o caminho do futuro”, diz Decio Zylbersztajn, presidente do Conselho de Orientação do Centro de Conhecimento em Agronegócios (Pensa). “Mas não há dúvidas de que o velho paradigma ainda está crescendo, como se pode ver pela expansão da China.”
Para mudar a lógica, diz ele, um primeiro incentivo seria dado pelo mercado, disposto a remunerar o serviço ambiental. O segundo seria institucional, que pode ser formal, via regras, ou informal, pela mudança de costumes sociais. O terceiro, mais demorado, ocorreria no nível individual, que pressupõe educação e formação de valores.
Aerton Paiva, da Apel, considera que, nesse campo social, está faltando um jogador importante: o cidadão. Aquele que pode ser consumidor, funcionário ou acionista, não importa o boné que use, mas antes é o sujeito capaz de se indignar e protestar. “Na Grécia, o cidadão estava na praça, manifestando suas opiniões. Não era a democracia perfeita, pois, enquanto isso, havia os escravos para fazer o trabalho pesado. Ocorre que hoje falta gente na rua, pois todos são escravos correndo atrás de ‘ganhar o seu’.”
Redes sociais pela internet e o cyberativismo fariam as vezes dessa participação cidadã – ou parte dela. Basta lembrar a importância da web na eleição de Obama. Mas Paiva ressalta o efeito mais poderoso de uma manifestação real. “Quando o Greenpeace despejou na porta da Philips milhares de lâmpadas fluorescentes (poupam energia, mas contêm mercúrio), para as quais a empresa não havia resolvido o problema do descarte, o risco de perda de reputação era tão grande, que a empresa tomou medidas em 72 horas”, diz.
Enquanto a sustentabilidade provoca esse tipo de luta em busca de uma “paz verde”, na tradução literal, estudiosos como José Eli da Veiga levantam com preocupação o risco de um resultado muito menos feliz para a equação econômica global. Como se sabe, quem cobre o déficit americano é a economia chinesa, o que leva a crer que esteja havendo uma mudança do eixo da acumulação para o Oriente – China, Japão, Coreia do Sul.
“Então, se houver uma polarização, resta saber até que ponto essa transição será pacífica, pois a História mostra que todas as anteriores não foram. Na hora H, tem guerra. Aí, toda essa discussão de sustentabilidade vira sonho de uma noite de verão. A superação do capitalismo por causa da sustentabilidade seria o cenário mais otimista”, diz.