Ex-vilã número 1 do desmatamento, a soja dá sinais de retração, mas ainda não passou por um teste definitivo. Quanto à pecuária, não basta monitorar as propriedades rurais. É preciso rastrear os bois.
Por Carolina Derivi
Organizações não governamentais lançam seus relatórios de denúncia sobre o agronegócio. A imprensa repercute. Grandes compradores, multinacionais e marcas famosas, suspendem fornecedores e declaram uma agenda mínima de providências e compromissos. Em pauta, um dos principais vetores do desmatamento na Amazônia. Este é o cenário de 2009, desde que o Greenpeace e os Amigos da Terra denunciaram o avanço da pecuária sobre novas áreas de floresta, provocando uma reação em cadeia que envolveu não só empresas, como governos e Ministério Público. Mas está longe de ser uma novidade.
A mesma comoção se deu em 2006, também em reação a um relatório do Greenpeace [1], sobre os crimes na cadeia da soja. E foi bater na Europa, arrancando um embargo de supermercados, fabricantes do setor de alimentos e redes de fast-food, como o McDonald’s.
Não faz muito tempo, portanto, a soja era apontada como um dos grandes vilões na Amazônia. Se o ritmo de desmatamento desacelerava, era porque o preço da soja caía, e vice-versa.
Fora dos holofotes, essa cadeia dá sinais de retração, no que diz respeito ao desmatamento, mas ainda não passou por um teste definitivo. Lembrar essa trajetória, além de ser um exercício importante de fiscalização, ajuda a lançar luz sobre os desafios atuais da pecuária. Momentos de grande repercussão são estratégicos para firmar novas práticas no agronegócio que ajudem a estancar o desmatamento. A soja tem lições a oferecer, mas para dar fim à “farra do boi” na Amazônia será preciso avançar muito mais.
As origens
A pecuária sempre foi o mais grave vetor de desmatamento, lembra o pesquisador-sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, Paulo Barreto. Espalhada pelos rincões da floresta, essa atividade não demanda grande infraestrutura e pode ser realizada na base do pioneirismo.
Primeiro, porque o rebanho caminha. Segundo, porque são raríssimas as fazendas que se dedicam ao ciclo completo, do nascimento do animal até a engorda e o abate, o que demandaria uma estrutura industrial. Dessa forma, reina na cadeia da pecuária alto índice de informalidade. Ao contrário da soja, em que a produção se dá em uma única fazenda, e que precisa de canais de escoamento da safra e trânsito de insumos, como fertilizantes.
Assim, o boom da soja ligado ao desmatamento, no começo dos anos 2000, não se deu tanto da maneira típica em que florestas são convertidas em lavouras. Em lugar disso, a soja avançou sobre antigas pastagens no chamado arco do desmatamento,aproveitando o aquecimento dos mercados e empurrando a pecuária para o centro da Amazônia. Seria então indiretamente responsável pelos novos desmatamentos causados pela pecuária.
“Em algum momento houve desmatamento direto. Mas esses dois vetores, funcionando juntos (soja e pecuária), aumentaram muito a derrubada de 2001 a 2004. As pessoas começaram a falar ‘soja, soja’ porque parecia que a novidade era essa”, diz Barreto.
A solução, naquele momento, foi a criação da moratória da soja, um plano de ação que acaba de ser renovado até julho do ano que vem. A Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), que respondem em conjunto por 90% da compra de soja em grãos no Brasil, prometeram não comprar mais a produção de áreas onde se constatassem novos desmatamentos. Trata-se de um compromisso essencialmente igual ao que hoje firmam frigoríficos da Amazônia e grandes redes de supermercado.
Os resultados dos primeiros dois anos de monitoramento parecem confirmar a efetividade da moratória. No período entre 2006 e 2007, não foi constatada presença e soja em nenhuma nova área desmatada. No período seguinte (2007-2008), apenas 12 dos 630 polígonos visitados em campo tinham soja e foram devidamente embargados, segundo Fabio Trigueirinho, secretário da Abiove.
Mas o monitoramento é limitado, já que se concentra nos municípios em que a soja está amplamente instalada, com mais de 5 mil hectares de área plantada, e apenas nos polígonos com mais de 100 hectares, área tida como mínima para a rentabilidade dessa cultura.
Raquel de Carvalho, campaigner do Greenpeace, reconhece que o sistema precisa ser revisto e que as características do desflorestamento provocado pela soja podem estar mudando, assim como do desmatamento em geral – dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que as áreas desmatadas estão se tornando menores e mais espalhadas.
“Só dentro dos municípios que foram alvo (do monitoramento) a gente está falando de 8.030 polígonos com menos de 100 hectares. É impossível sobrevoar isso tudo. A gente vai ter que começar a dar mais ênfase aos dados orbitais (imagens de satélite)”, diz Raquel.
Para Karin Kaechele, coordenadora-adjunta do Instituto Centro de Vida (ICV), ONG ambientalista de Mato Grosso, a cadeia da soja ainda não está sob controle: “Pelo nosso ponto de vista, a soja tem crescido em Mato Grosso.Tem que ficar de olho”. Ela informa que as negociações da mesa-redonda da soja, iniciativa que busca estabelecer princípios e critérios para certificação socioambiental da cadeia, não estão indo muito bem.
As ONGs defendiam desmatamento zero, o que foi recusado pelos produtores. Então, elas propuseram que o critério se aplicasse ao menos às Áreas de Alto Valor para Conservação, e, segundo Karin, os produtores de soja de Mato Grosso se retiraram.
De acordo com Roberto Smeraldi, diretor da Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, a moratória é um instrumento importante, mas limita-se “ao que há de pior” na Amazônia e cumpre mais uma função educativa. Ele acredita que os fatores que suavizaram o papel da soja no desmatamento são principalmente econômicos: “Os grãos em geral não estão naquela fase de pico de preço, como em 2002 e 2003. Não é que o mercado hoje esteja baixíssimo, mas não tem mais uma grande pressão para expansão de área”.
Analisar a série histórica de preço da soja na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&FBovespa) é dar razão às ONGs. O aquecimento dos mercados, que fez com que a saca de soja passasse dos R$ 17 em março de 2001 para mais de R$ 50 em março de 2004, acompanha a evolução do desmatamento. No entanto, a performance do setor em 2009 pode ser a chave para confirmar ou rechaçar o novo desempenho ambiental na Amazônia. Isso porque, apesar da crise econômica e da escalada mais lenta, os preços da soja este ano alcançam os mesmos níveis negociados em 2004, quando o desmatamento atingiu mais de 27 mil quilômetros quadrados, a segunda maior marca da história.
Ao mesmo tempo, o Ministério do Meio Ambiente aposta que o desmatamento em 2009 será o mais baixo dos últimos 20 anos.
Seria a primeira vez que a correlação “preço da soja e desmatamento”não se confirmaria, mas o resultado definitivo virá apenas em 2010, quando o Inpe divulgar os dados do sistema Prodes relativos ao período.
Muito mais complexa que a cadeia da soja, a pecuária na Amazônia tem, por outro lado, a oportunidade de avançar em garantias que a soja possivelmente nunca terá. Trata-se da rastreabilidade, mecanismo que identifica e monitora cada animal e as propriedades pelas quais passa ao longo da vida.
Os desafios são a escolha da tecnologia – há desde a tradicional marca de ferro em brasa até chips subcutâneos – e a forma como os altos custos serão distribuídos pela cadeia, já que pequenos criadores podem ter mais dificuldade em aderir.
Segundo Rodrigo Lima, do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), a maneira como os grãos de soja são transportados – soltos, não em sacas – cria um impedimento logístico. “Uma das grandes discussões para identificação da soja transgênica foi exatamente essa dificuldade de rastrear. Tem navio que troca de carga com outro no meio do oceano”, diz Lima.
Já para os bois, esse problema não existe. E a importância de rastrear está na dinâmica da cadeia da pecuária. O próprio Greenpeace descreve no relatório A farra do boi como os frigoríficos da Amazônia “esquentam” a carne e o couro processados em municípios do Sul e do Sudeste, de forma a ocultar sua origem ilegal. Sem a rastreabilidade, nada impede que o gado do desmatamento seja “esquentado” em fazendas com cadastro e licença ambientais.
Até agora, o compromisso firmado pelas redes de supermercado e pelos frigoríficos Bertin e Marfrig envolve mapea e monitorar todos os seus fornecedores diretos, que devem cumprir o Código Florestal e fornecer imagens de satélite que serão comparadas com as imagens do desmatamento ano a ano.
“Esse compromisso não garante totalmente, boi a boi. Só com rastreabilidade, que é ext remament e importante. É algo que eles vão implementar, mas, se formos esperar a rastreabilidade para fazer um compromisso de desmatamento zero, só vai começar o processo daqui a uns dez anos”, diz Marcio Astrini, do Greenpeace.
Talvez não demore tanto. Em audiência sobre o tema na Câmara dos Deputados, em Brasília, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, afirmou que o Pará deve implantar um sistema em até seis meses. O BNDES aprovou novas diretrizes para o financiamento de frigoríficos, o que inclui adesão à rastreabilidade de bovinos a partir de 2010.
Para Smeraldi, se há uma lição na trajetória da soja para a pecuária, é que, apesar de as medidas pontuais em cada cadeia serem necessárias, dificilmente se vai conseguir resolver o problema do uso da terra com base em um único processo produtivo. “Tem sempre a história do vazamento. Se eu não posso criar boi, vou fazer outra coisa”, diz.
Tudo indica que, enquanto a economia da Amazônia basear-se somente em commodities, as motivações para o desmatamento não deixarão de existir.
“Todas as experiências que a gente conhece de uso da biodiversidade local seriam muito mais interessantes economicamente, porque têm mais capacidade de gerar renda”, diz Reginaldo Magalhães, da International Finance Corporation (IFC).
Mas, para isso, falta tudo. Segundo Magalhães, faltam mercados estruturados, capacitação em modos de produção e de gestão, linhas de crédito específicas para produtos da biodiversidade, e ainda muito know-how e tecnologia por serem gerados. Se há em algum lugar uma nova economia verde, ela ainda não encontrou a Amazônia.