Estudos mapeiam a vulnerabilidade de São Paulo, Rio e Semiárido às mudanças do clima e podem embasar políticas de resposta ao novo cenário ambiental
Por Amália Safatle
Fotos Felipe Gombossy
Pode ser de Dolly, Coca-Cola, Fanta, Fanta Uva. Essas garrafas dão um ótimo pluviômetro. Pluvia em latim é chuva, métron em grego é medida, explicam os agentes da Defesa Civil, mais a subprefeitura de M’Boi Mirim, aos moradores desse bairro periférico da Zona Sul de São Paulo.
Desde 2007, cerca de 50 voluntários da região, castigada por enchentes e desmoronamentos de morros, medem a chuva que cai nas garrafas colocadas em seus quintais de boca para o céu e transformadas em pluviômetros de PET. Assim, ajudam a Defesa Civil a monitorar riscos e evitar desastres, avisando quando a chuva passa dos limites.
Confira na coluna à direita mapas sobre as vulnerabilidades climáticas nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo
Bem longe dali, volumes de água que não caberiam em garrafas de plástico escorrem de geleiras datadas da última glaciação da Terra. Cientistas britânicos constataram que os mantos de gelo da Antártida e da Groenlândia estão encolhendo a um ritmo maior do que era previsto. Com um apelo para que os governos fechem um efetivo acordo climático em dezembro, em Copenhague, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) publicou um relatório segundo o qual o impacto das mudanças climáticas manifesta-se de forma cada vez mais rápida, enquanto alerta que o nível do mar pode subir 2 metros até 2100.
Os sistemas climáticos são tão complexos que nem mesmo os mais graduados especialistas no tema saberiam hoje dizer o quanto Fenômenos globais, como os que têm causado o derretimento das geleiras, afetam o clima local e fazem as pessoas sentir na pele os efeitos das mudanças. M’Boi Mirim e Groenlândia, quão perto estão um do outro? O local e o global se somam, se misturam ou se potencializam?
“Na questão do aumento da temperatura, os efeitos globais e locais vão sempre se somar, embora não dê para identificar qual é a parcela de cada um”, diz Carlos Nobre, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC).
Algumas outras certezas já existem. Uma delas é que cidades como Rio de Janeiro e São Paulo têm enfrentado eventos extremos mais frequentes, como chuvas violentas que caem em espaços de tempo mais curtos, períodos de seca mais intensos, grande discrepância de temperatura entre as chamadas ilhas de calor e as áreas com vegetação, e maior incidência de raios.
Outra certeza: medidas de adaptação são urgentes, pois, mesmo que as emissões de gases de efeito estufa fossem imediatamente zeradas, a temperatura global ainda aumentaria, por conta dos gases já lançados na atmosfera. Também não restam dúvidas de que as medidas precisam ser direcionadas especialmente à população carente, a mais exposta a riscos e desastres, a que menos tem condições materiais de enfrentá-los e a menos engajada em causas socioambientais.
No contexto mundial, o Brasil não é dos países mais vulneráveis às intempéries climáticas, mas algumas de suas regiões são especialmente críticas: as periferias das grandes cidades, as áreas baixas costeiras e o Semiárido nordestino. As primeiras, explica Nobre, especialmente devido às inundações e aos deslizamentos de morros; as segundas, pelo aumento do nível do mar, tempestades oceânicas mais fortes e ressacas, tudo isso potencializado em períodos de maré lunar alta. E o terceiro, pelo agravamento das secas.
Outra certeza é de que as mudanças climáticas levarão a reflexões como: será esta civilização capaz de construir uma vida urbana mais inteligente do que a que existe, apta a responder ao ambiente por ela mesmo alterado?
Na Entrevista desta edição, o ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman, hoje à frente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável da prefeitura do Rio, afirma que a mudança climática vai despertar aquilo que as cidades têm de mais específico: a criatividade. Isso também é uma forma de adaptação. “Cada cidade vai descobrir os seus próprios caminhos para atingir esses objetivos”, afirma. A reportagem à página 34, por exemplo, conta como metrópoles, vilas e bairros envolvidos no movimento Cidades em Transição podem desenhar sua visão própria de futuro, e colocá-la em prática.
O céu que desprotege
Carlos Nobre integra um grupo de cientistas que prepara um grande estudo, a ser concluído somente em meados do Ano que vem, que apresentará as megacidades Rio e São Paulo como nunca se viu: na forma de um mapa das vulnerabilidades, indicando os locais onde viver é mais perigoso ou inóspito.
Trata-se de uma iniciativa que reúne pesquisadores em mudança climática de instituições como Inpe, Unicamp e Unesp, com apoio do MCT e financiamento da Embaixada Britânica no Brasil. O resultado serão informações preciosas para os gestores aplicarem em suas políticas públicas.
Daniel Hogan, pesquisador dos Núcleos de Estudos de População (Nepo) e de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp, acrescenta que outras capitais brasileiras, de tamanhos diversos e pertencentes a variados biomas, como Recife, Curitiba, Belém e Belo Horizonte, serão futuramente mapeadas – assim como o Litoral Norte do estado paulista, em um projeto da Fapesp que está sob sua coordenação.
Uma pequena e preliminar amostra dessa espécie de cartografia climática foi recentemente apresentada em Leipzig, na Alemanha, durante a conferência internacional Megacidades: Risco, Vulnerabilidade e Desenvolvimento Sustentável.
Formigueiros urbanos
A apresentação do estudo em Leipzig começa com uma provocação: a adaptação é possível nas grandes cidades? Se as formigas que vivem nelas já estão mostrando essa capacidade, é uma prova de que os humanos também podem. Uma pesquisa divulgada no site Plosone.org, por exemplo, revela que as formigas reagem às ilhas de calor e conseguem suportar por mais de três horas temperaturas superiores a 42 graus.
Nos formigueiros humanos da Grande Rio, com seus 11,8 milhões de habitantes, e da Grande São Paulo, com 19,7 milhões (a quarta maior aglomeração urbana do mundo), Hogan explica que as consequências da mudança do clima serão graves, mas não iguais, pois além de São Paulo não ter mar, o Rio não sofre do mesmo nível de poluição atmosférica que a capital paulista.
Esse tipo de poluição, somado ao aumento das temperaturas, leva à produção de ozônio próxima à superfície, o que causa problemas respiratórios e até o nascimento de bebês abaixo do peso. Apesar das diferenças, tanto crianças como idosos nas duas cidades serão os mais prejudicados, uma vez que seus organismos têm pior resposta ao calor e frio excessivos e ao aumento da poluição.
Tanto para o Rio como para São Paulo o estudo prevê aumento na temperatura média de 3 a 4 graus até o final do século, menor quantidade de noites e dias frios e redução de 5% a 15% na umidade relativa do ar.
Essas mudanças reforçam fenômenos já identificados no passado até os dias atuais. Segundo Augusto José Pereira Filho, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG), medições realizadas desde 1932 indicam que a temperatura na cidade de São Paulo está hoje 2,1 graus mais alta e a umidade relativa, 7% mais baixa. “Outro efeito que detectamos é que 65% das enchentes em São Paulo são causadas por chuvas produzidas na própria área urbana, no encontro da brisa fria e úmida que vem do mar com as ilhas de calor”, diz Pereira Filho.
Some-se um grande volume de chuva que cai em um curto período de tempo, com uma cidade impermeabilizada por asfalto e cimento, mais bueiros entupidos pelo lixo, e está dada a receita da enchente, pois não há tempo nem espaço para a água escoar. Segundo o secretário municipal do Verde e Meio Ambiente de São Paulo, Eduardo Jorge, as principais medidas de adaptação às enchentes que a cidade tem tomado são a construção de piscinões e a implantação de parques lineares – que também ajudam a enfrentar aumento da temperatura. Ele afirma que há 20 parques em implantação, além de um programa para recuperar várzeas de rios e córregos.
O mais importante deles, diz Eduardo Jorge, é o Parque Várzea do Tietê. O projeto de 35 anos, idealizado pelo então governador Paulo Egydio Martins, agora será implantado a título de compensação ambiental pela obra da Marginal Tietê. A obra, com construção de pistas adicionais, tem sido criticada por aumentar a impermeabilização e por ter retirado muitas árvores. Às críticas o secretário responde que haverá um ganho de 500 vezes em permeabilidade com o parque, cuja obra, além de combater as cheias, promoverá saneamento básico e inclusão social por meio da criação de uma extensa área de lazer e cultura.
Já a chuva intensa em morros ocupados desordenadamente é a fórmula Para os deslizamentos e o soterramento de casas. Somente em um dia, 8 de setembro, quando choveu 60,5 milímetros, ocorreram 20 escorregamentos de solo na cidade de São Paulo, informa o coronel Orlando Rodrigues de Camargo Filho, da Defesa Civil Municipal.
Tanta água que cai do céu não é garantia de abastecimento. Nessa tempestade do dia 8, por exemplo, um volume de água que seria suficiente para abastecer toda a Grande São Paulo por 252 dias – segundo cálculos do IAG – virou “esgoto” em poucas horas, ao desaguar em bueiros, córregos e rios poluídos.
Rio 40 graus
Especificamente para o Rio, o estudo apresentado na Alemanha identificou uma tendência de aumento de chuvas na estação seca e de diminuição na chuvosa. A cidade já sofre com ilhas de calor: em dias nublados, a diferença de temperatura entre o Centro e as áreas periféricas vegetadas chega a nada menos que 10 graus. Com zonas mal drenadas, não por acaso a população sofre com a leptospirose, doença transmitida pela urina do rato, que encontra na água das enchentes um meio de se propagar, explica Ulisses Confalonieri, professor titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em 1996, lembra ele, o Rio sofreu uma das maiores epidemias da doença no mundo, se não a maior. Sem falar na dengue, que também se propaga na água limpa acumulada.
Para fazer frente a tudo isso, as recomendações vão desde criar defensas na orla marítima, investir em sistemas de alerta de desastres e em reposição das faixas de areia da praia até fortalecer o sistema de saúde e a rede de saneamento. Para melhorar a drenagem e também combater o calor, criar áreas e telhados verdes, que absorvem água da chuva e ajudam a regular a temperatura e a umidade.
Algumas dessas medidas se aplicam a São Paulo, onde há diferença de mais de 6 graus entre o Centro e a periferia vegetada. Diante da alta concentração de fábricas e do tráfego pesado, que intensificam a poluição atmosférica – ainda mais em uma cidade ladeada por morros que impedem a dispersão de poluentes –, a resposta é investir no sistema de saúde. Mecanismos de alerta e aumento da área permeável são necessários para enfrentar enchentes como as dos córregos Pirajussara e Ipiranga e dos rios Tamanduateí e Aricanduva, os mais sujeitos a inundações. E, para evitar deslizamentos nos morros, reflorestar e estabilizar o solo.
Novos retirantes do clima
Estima-se que a mudança climática gere 200 milhões de refugiados no mundo até 2050. No Brasil, em razão da seca no Nordeste e da transformação do Semiárido em uma região árida, quase 500 mil pessoas deverão migrar para outras regiões do País – das quais também se exigirão medidas de adaptação em termos de moradia, saúde, saneamento, educação e emprego, para receber esses migrantes. “Nós temos o dever de acolher os refugiados ambientais”, afirma o secretário Eduardo Jorge, lembrando que muito dessa cidade foi construído e funciona pelas mãos dos nordestinos.
O cálculo da migração é do estudo Mudanças Climáticas, Migrações e Saúde: Cenários para o Nordeste Brasileiro 2000-2050, elaborado pela Fiocruz e pela Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo ele, a mudança climática pode afetar toda a cadeia econômica da região – especialmente a agricultura – e reduzir em 11,4% o Produto Interno Bruto, no cenário mais pessimista. Os estados mais afetados serão Pernambuco, com queda de 18,6% na taxa de evolução do PIB, Paraíba (17,7%), Piauí (17,5%) e Ceará (16,4%).
A previsão é de que o fluxo ocorra para regiões relativamente menos atingia Das em termos de renda e emprego pela mudança climática, como a Sudeste e a Amazônia, além daquelas com economia agrícola forte, como a fronteira baiana da soja e área integrada aos estados de Tocantins e Goiás, para a qual estão programados grandes projetos de infraestrutura – escrevem os autores.
Essas migrações, afirmam eles, devem agravar os problemas de saúde pública no País. É que o deslocamento pode redistribuir espacialmente focos ou intensificar a transmissão de Doenças endêmicas como a dengue, a doença de Chagas e leishmaniose. Nos anos 1980 e 1990, por exemplo, migrações provocadas pela seca do El Niño levaram a surtos de leishmaniose visceral para as periferias de São Luís e Teresina. Algo semelhante aconteceu com trabalhadores rurais do Maranhão, que, fugindo da seca, contraíram malária no Pará e a disseminaram ao retornar para casa.
E quem não tiver condições econômicas de deixar suas terras terá de conviver com o provável aumento da desnutrição e das doenças associadas à falta de água tratada, como a esquistossomose e a leptospirose, além da mortalidade infantil por diarreia.
A adaptação às mudanças climáticas vai exigir dinheiro, informação, conhecimento e preparo de instituições como Atingia Defesa Civil e a Polícia Militar para lidar com a parcela mais vulnerável da população.
Em relação aos recursos, pesquisadores do International Institute for Environment and Development e do Grantham Institute for Climate Change at Imperial College London alertam que os custos globais e anuais de US$ 40 bilhões a US$ 170 bilhões, calculados pela Convenção Quadro sobre Mudança Climática, estão subestimados: seriam duas a três vezes maiores.
No Brasil, a carência de recursos soma-se à dificuldade de gerar conhecimento sobre o tema. “À exceção das informações disponibilizadas pelo IBGE e pelo Inpe, que inclusive são bem refinadas, as demais são muito difíceis de obter”, queixa-se Hogan, da Unicamp. Segundo ele, infelizmente “o espírito de colaboração não é universal”, e ao se fazer o mapa das vulnerabilidades, um dos objetivos é também sensibilizar “os donos dos dados” a abrir as informações.
Laura Valente, diretora regional para América Latina e Caribe da ONG Iclei – Governos Locais pela Sustentabilidade, cita os EUA e a Austrália como referência na criação de informações sobre medidas de adaptação das cidades às mudanças climáticas [Os dois guidebooks sobre adaptação nas cidades americanas e australianas podem ser acessados na página www.iclei.org/index. php?id=9128]. É com base nessas experiências que o Iclei no Brasil pretende desenvolver uma metodologia local.
Mas há, ainda, a delicada questão do relacionamento humano. Hoje sob a alçada do Ministério da Integração Nacional, a Defesa Civil tem na origem ligação com as Forças Armadas. Para Norma Felicidade, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres da USP São Carlos, a postura autoritária e hierarquizada herdada desses setores muitas vezes é conflituosa com a visão social que se precisa ter no atendimento às populações vulneráveis. Para isso, é preciso repensar o papel e a atuação da Defesa Civil no País.
“A Defesa Civil trabalha para evitar o desastre, mas falta uma cultura de prevenção no Brasil, por isso é preciso trabalhar o tema já nas escolas”, diz o coronel Orlando Camargo. Como convencer uma família de que ela precisa abandonar sua casa em área de risco? “As pessoas vão ocupando o solo, na esperança de juntar dinheiro para comprar um apartamento. Na Capela do Socorro tem gente construindo casa até dentro do rio, em cima de palafita. Como o brasileiro arrisca a vida!”, espanta-se o coronel.
A depender da resposta do clima à ação humana, essa aventura só vai aumentar. Por isso, é hora de a ação humana começar a responder ao clima.
Leia entrevista com a professora Norma Felicidade.
Santa Catarina: é errando que se aprende?
por Tatiana Achcar
Os recentes desastres naturais que assolaram Santa Catarina em novembro de 2008 e neste mês de setembro foram atípicos, rara combinação de efeitos climáticos que podem voltar a se repetir, afirmam os especialistas. A região está localizada na faixa subtropical, passagem de massas polares e vórtices ciclônicos. A presença de cadeias de serras retém a umidade que vem do litoral, favorecendo muita precipitação. Acrescente-se a isso vastas planícies aluviais e vales e é fácil ver Santa Catarina debaixo d’água.
Os fenômenos têm acontecido com mais intensidade e frequência, mas a ocupação humana intensa e irregular transforma os desastres naturais em socioambientais. Nas cidades e no litoral, essas terras são ocupadas por moradias; no interior, servem à agricultura.
Para o major da PM Márcio Luiz Alves, coordenador da Defesa Civil do Estado, é preciso mais recursos para obras de contenção, capacitação do corpo da Defesa Civil e campanhas de educação ambiental. Maria Lucia Herrmann, pesquisadora do grupo de estudos de Desastres Ambientais da Universidade Federal de Santa Catarina, recomenda às autoridades combater a ocupação irregular das encostas, evitar o adensamento nas margens dos rios, preservar áreas verdes, não compactar o solo e, a longo prazo, fazer obras de engenharia, como desvios de canal. Mas a lei estadual diminuiu a regulamentação de ocupação em área aluvial de 30 para 5 metros a partir da margem do rio.
Blumenau tem 160 anos de histórias de enchentes. “Temos nos acostumado com elas”, diz o prefeito João Paulo Kleinübing. Após a mais grave, no ano passado, as áreas mais vulneráveis não foram reocupadas. Medidas de prevenção, como mapear e demarcar as áreas de risco, estão planejadas para o longo prazo, mas nem o prefeito soube definir uma data. Em andamento, projeta-se um sistema de monitoramento de chuvas por meio de pluviômetro. E um plano de contingência, com instalação de abrigos, recrutamento de voluntários e órgãos públicos e doação de alimentos e bens básicos, está pronto, à espera da próxima e “costumeira” enchente.