A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte é um equívoco, e o Ibama não pode sucumbir à pressa nem a pressões externas para dar um parecer quanto à obra. É a opinião técnica de Francisco Hernandez, pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Univesidade de São Paulo, para quem o projeto deveria ser completamente abandonado.
Ele coordenou um painel composto por 42 pesquisadores colaboradores que analisaram o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto de Belo Monte (leia o resumo da análise), e contou à Página 22 que os erros e omissões do estudo vão desde subestimar números à população total impactada pela obra até a ausência de modelos comparativos de cenários da região com e sem a usina no futuro – além de outros mais grosseiros, como erros na catalogação de espécies de peixes.
“É um projeto antigo que foi sendo remendado para consertar problemas anteriores, mas que resulta em um novo outro complicadíssimo. Belo Monte não resolve problemas, só expõe problemas”, disse Hernandez.
O grupo considera que o impacto do projeto afetará uma área que cobre mais de 1000 km2 – maior do que a cidade de Campinas — e ocasionará o deslocamento forçado de mais de 20 mil pessoas, além de provocar a migração de outros 100 mil cidadãos que se mudariam para a região em busca de melhores condições de vida. De acordo com o painel, o impacto da mega obra é comparável à movimentação de terras acontecidas para as escavações do canal do Panamá, de cerca de 200 milhões de metros cúbicos.
Omissões
O novo projeto não prevê inundação de terras indígenas, mas o desvio de mais de 80% da vazão do rio Xingu repercute diretamente sobre populações nativas — como dos povos Juruna do Paquiçamba, Arara da Volta grande e grupos Xipaya, Kuruaya, Juruna, Arara, Kayapó. Para os pesquisadores, essas populações são praticamente esquecidas e poderiam – ironicamente — ficar sem água, devido à modificação da vazão do Rio Xingu.
O painel aponta ainda que não há estruturação de políticas que dêem conta do caos na saúde pública que pode ser gerado, já que existe a possibilidade de uma epidemia de malária (quanto mais desmatamento e mais gente na fronteira com a floresta, maior é o contato com os mosquitos transmissores). Hernandez alega que os gastos referentes a estes custos não foram contabilizados nas estimativas da obra, sendo transferidos para o poder público. Ainda nessa linha, o estudo aponta que não foi dada atenção para melhora a estruturação do sistema de saúde dos municípios da região, que não teriam condição de atender às demandas mais básicas decorrentes do aumento populacional.
Ansiedade
Alguns setores já estão ansiosos para uma data do leilão do projeto, que vem sendo reagendado sucessivamente, mesmo sem a resposta final do Ibama sobre a licença ambiental.
Hernandez alerta: os investidores devem prestar muita atenção para não entrarem em uma fria. Ele defende que nenhuma empresa atualmente busca se enroscar com uma obra que decorrerá em um verdadeiro fiasco ambiental, uma “nova Balbina” — usina hidrelétrica localizada no meio da Amazônia criticada por seus altos custos e enormes impactos ambientais. Para ele, o Ibama não deve acelerar a análise do EIA para possibilitar o leilão em dezembro.
Leia aqui o relatório dos pesquisadores na íntegra.
Um pouco de história*
1980 — Eletronorte inicia os estudos de viabilidade técnica e econômica do chamado Complexo Hidrelétrico de Altamira, precursor do projeto de Belo Monte.
1986 — Plano Nacional de Energia Elétrica, ou Plano 2010, propõe a criação de 165 usinas hidrelétricas até 2010, 40 delas na Amazônia Legal.
1988 — O Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu é aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), extinto órgão regulador do setor elétrico. Em simpósio nos Estados Unidos, Paulinho Paikan, líder Kaiapó, Kube-I Kaiapó e o etnobiólogo Darrel Posey, do Museu Emílio Goeldi do Pará, relatam indignados que o Banco Mundial (BIRD) iria financiar um projeto de hidrelétricas no Xingu que inundaria sete milhões de hectares e desalojaria 13 grupos indígenas. Apesar de serem diretamente atingidos, os índios não tinham sido consultados. Foram convidados a repetir o relato em Washington.
1989 – Realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro, em Altamira (PA). Acaba ganhando imprevista notoriedade, com a maciça presença da mídia nacional e estrangeira. Durante a exposição de Muniz Lopes sobre a construção da usina Kararaô, a índia Tuíra, prima de Paiakan, levanta-se da platéia e encosta a lâmina de seu facão no rosto do diretor da estatal num gesto de advertência, expressando sua indignação. A cena é reproduzida em jornais de diversos países e torna-se histórica.
1994 – Novo projeto é apresentado ao DNAEE e à Eletrobras. O reservatório da usina é reduzido de 1.225 km2 para 400 km2, evitando a inundação da Área Indígena Paquiçamba.
2001 – Em setembro, Resolução do Conselho Nacional de Política Energética reconhece Belo Monte como de interesse estratégico no planejamento de expansão de hidreletricidade até 2010.
2002 – O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio Mello, nega, em novembro, pedido da União e mantém suspensos os Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.