Por Amália Safatle
Refém do próprio triunfo evolutivo, acelerado pela tecnociência, o homem corre o risco de perder suas características mais caras. Mas ainda pode cultivar domínios que resguardem sua essência e existência na viagem pelo tempo
Houve um tempo em que ele próprio era a lesma singrando o azul da parede do quarto de dormir. O espaço era a casa de minha bisavó, em Goiás, e o sono vinha me fechar os olhos que seguiam aqueles rastros prateados, até que lentamente virassem rios de histórias deslizando no altiplano. A infância cintilante, as horas dilatadas, todo o tempo do mundo. Realidade e sonho misturados no quintal onde a gente prospectava pedras preciosas – e parava tudo para admirar a folia de cores que desfilavam nas taturanas.
O velho casarão ruiu, o quintal infinito virou um imóvel delimitado por ruas e seus automóveis, e não se tem notícia de pedra preciosa. Só permanece, mesmo, o tempo, aquele que é do mundo.
O físico e cosmólogo Stephen Hawking remete a Santo Agostinho para dizer que, se o mundo tem um início, este é o início do tempo. “Universo e tempo vieram a ser simultaneamente”, recita o astrofísico Amâncio Friaça, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), da USP. “O tempo é a condição mais fundamental do mundo físico”, afirma ele. “Na busca contínua dos princípios, chega-se a um nível em que a massa desaparece, que o espaço desaparece. Mas o tempo, não.”
Do ponto de vista filosófico, “o tempo faz parte do ‘ser’ do homem, é a espinha dorsal da sua própria existência”, explica Oswaldo Giacoia Junior, professor de Filosofia da Unicamp e um estudioso de Martin Heidegger*.
*Filósofo alemão, autor de Ser e Tempo, é considerado um dos maiores pensadores do século XX. Segundo ele, o “ser” é a essência, o elemento constitutivo de um “ente”. O ente, por sua vez, são as entidades existentes, os objetos os sujeitos (tudo que “é” é um ente). O homem é o único ente que coloca para si as questões do ser e do tempo
Não por acaso, a reflexão sobre o tempo nos pega de jeito, pois traz uma ressonância profunda com essência e existência. Impossível falar de sustentabilidade sem mergulhar nessa reflexão. Ela conduz ao questionamento de como nos relacionamos com o mundo, com todos os entes da natureza, com as pessoas mais próximas e também com nossa própria vida. Não necessariamente nessa ordem, mas ao mesmo tempo.
O fato de sermos essencialmente seres temporais (ou seja, temos a determinação final de ser finitos) causa em nós o que Heidegger chama de angústia. A angústia de ser para a morte. A própria Filosofia originou-se na Grécia ao refletir sobre a mortalidade do homem.
A angústia com a passagem do tempo e a corrida contra ele que a atual civilização ocidental tem travado até as últimas consequências (como as descritas nas reportagens Corrida para Onde? e Nem tudo nas mãos) constituem, portanto, uma crise existencial, conclui Giacoia.
O entretenimento e toda sua indústria, exemplifica o professor, são tentativas escapistas de nos “narcotizar” diante dessa angústia, em vez de lidarmos com ela. “O hedonismo que marca a nossa sociedade é a modalidade contemporânea da alienação”, completa. “Em geral, somos pessoas que não suportam o fracasso, o sofrimento e a finitude. Somos imaturos, afetivamente inseguros, incapazes de viver sem alguma adição (no sentido de vício).” Até os amigos, diga-se, viraram uma “categoria” que adicionamos em nossas redes sociais virtuais.
O templo de Amaterasu
Na ilha de Isé ergue-se há cerca de 2 mil anos o mais velho templo do Japão, em reverência a Amaterasu, Deusa do Sol no panteão xintoísta. Não que seja uma construção antiga.
É que a cada 20 anos – o período de uma geração – é demolido e reconstruído. Uma forma singela de lembrar o homem da sua finitude, da sua participação efêmera em uma história maior e absolutamente longeva. E de que nada é permanente, a não ser, claro, o tempo, em seu curso irreversível.
As pessoas das aldeias participam da reconstrução, cortam as árvores para obter a madeira, carregam as pedras, transportam todo o material pelos rios e assim se tornam sujeito desse processo natural e contraditório de morte e renascimento.
Contradição, pois, assim como o tempo tem uma face desorganizadora, sob o ponto de vista da Física e da lei da entropia, tem outra organizadora, que apura e sofistica a vida na Terra por meio da evolução das espécies. Quanto mais complexa a vida, mais entropia ela envolve.
A lei da entropia, ou segunda lei da termodinâmica, trouxe, segundo Friaça, do IAG, enormes ganhos conceituais para a Física, ao mudar a noção de tempo. Levantou igualmente reflexões fundamentais para a Economia e a sustentabilidade. Demonstra que, em sistemas isolados, nem toda a energia pode ser transformada em trabalho: há perda de uma parte para o ambiente. Ou seja, a água da chaleira esquenta, mas aquece também a cozinha. O calor que se dissipa jamais retorna à forma original. Ainda que se mantenha a mesma quantidade de energia no sistema, a sua qualidade muda.
Na Física elaborada por Isaac Newton no século XVII, o tempo era reversível: nas fórmulas newtonianas, a trajetória das partículas podia ser seguida perfeitamente de trás para a frente. “Se trocássemos t por -t, daria no mesmo. Assim, passado e futuro seriam indistinguíveis”, explica Friaça. “Já a entropia aumenta com o tempo. O futuro distingue-se do passado pelo maior valor da entropia.” Por isso, sua lei é também conhecida como flecha do tempo.
A noção da perda irreversível baseou o pensamento do economista ecológico Nicholas Georgescu-Roegen, que apontou um problema de metabolismo da sociedade: quanto maior a escala econômica, ou seja, o tamanho de sua população e seu nível de afluência, maior é a entropia.
Estaria a nossa escala econômica acelerando o futuro?
“Essa discussão teve importância para mostrar que a Economia não está isolada do ambiente e assim desmitificar o moto-perpétuo”, diz Andrei Cechin, mestre em Ciência Ambiental pelo Procam-USP e um estudioso do pensamento de Georgescu. A entropia desfaz a ideia de que tudo se recria, de que tudo se recicla. Perdas irreparáveis acontecem pelo caminho.
Ao defender a redução da escala econômica a fim de prolongar a estada do homem na Terra, o economista romeno propõe também uma reflexão ética e temporal: temos a opção de consumir muito agora e deixar as gerações futuras em falta, ou poupar neste momento para que elas possam usufruir depois. “Para Georgescu, nós já fizemos nossa escolha”, diz Cechin, e ela não pende para o futuro.
Tecnodependência
Uma escolha da nossa sociedade, sem dúvida, foi a de mergulhar na tecnociência*. Apostam-se fichas e fichas na tecnologia salvadora da humanidade ante os perigos globais e já não existe nenhum âmbito que não seja tecnologicamente mediado, extrapolando a ideia renascentista de que o homem e sua técnica podem e devem dominar e controlar a natureza.
*Por se apoiarem mutuamente, e terem seus processos de desenvolvimento dependentes um do outro, a ciência e a tecnologia, embora distintas, podem ser vistas como uma unidade, na forma de tecnociência.
O próprio tempo se transformou em um objeto, algo externalizado, que assumiu formas mercadológicas. Pode ser comprado e vendido, é divisível, mensurável, planejável (aprenda a gerir seu tempo). Ganhou expressão financeira (tempo é dinheiro). “E perdeu a dimensão ontológica, ou seja, pensada a partir do ser”, diz Giacoia.
Gaston Pineau, diretor do departamento de Ciências da Educação e da Formação da UFR Arts et Sciences Humaines, da França, escreve em Temporalidades na Formação (Triom, 2004): “Quando o relógio evolui para o relógio de bolso e o cronômetro, passa a ser a primeira máquina-ferramenta, o primeiro sistema artificial capaz de produzir alguma coisa em série: o tempo”.
O perigo da técnica, diz o filósofo e professor da PUC-SP e da Unicamp, Zeljko Loparic*, é transformar o próprio homem em um produto tecnológico, de fabricação industrial em um mundo artificializado. Isso porque ela consiste em procedimentos de intervenção sobre a natureza, sobre o clima, sobre o processo de nascimento, sobre o código genético, a clonagem. É capaz de modificar seres humanos física e psiquicamente.
*Organizador do livro A Escola de Kyoto e o Perigo da Técnica – DWW Editorial, 2009. A Escola de Kyoto, nascida no início do século XX, foi o berço do pensamento filosófico no Japão contemporâneo.
Com isso, Loparic afirma que o homem corre o risco de perder as suas características únicas: a liberdade, a consciência de si, a dignidade, a solidão. “Winnicott (Donald Woods, pediatra e psicanalista inglês nascido no fim do século XIX) dizia que o homem é um ser inerentemente solitário. Temos um núcleo sagrado que não pode ser conhecido, nem tocado. E nem deve.”
Corre o risco de perder também a criatividade. Quando inventa um sistema do qual não pode mais viver sem, a tecnociência, deixa de controlar sua criação, torna-se seu refém. “Hoje, toda a sociedade que não se atualiza na tecnociência não sobrevive. Ou seja, ela passa a dominar o homem, em vez de o homem dominá-la”, complementa Giacoia.
Mas ainda há como o ser humano se preservar cultivando o que Loparic chama de “domínios”. Pausa: um instante antes que ele pronunciasse, na entrevista, a palavra “infância” como um desses domínios, as imagens da lesma, o rastro cintilante e as brincadeiras no quintal haviam me saltado da memória. Então compreendi perfeitamente quando explicou que a criança não “objetifica” o tempo, não faz dele um objeto. Ela brinca, simplesmente. Inventa o mundo, livremente. Não devemos abandonar essas qualidades só porque nos tornamos adultos responsáveis.
Outros “domínios”, enumera ele, são o da arte (ela passa ao largo da objetivação, da finalidade; a arte apenas é), o da amizade, o da presença gratuita, o da capacidade de devoção, o cuidado consigo.
“Na infância, nas relações amorosas, na loucura, na arte, na aventura, nós podemos existir à toa. Isso que nos diferencia das máquinas. Uma máquina não opera à toa, um avião não voa à toa”, diz Loparic.
O fogo e a roda
Não que se deva rechaçar a tecnociência. A tecnologia e a ciência, diz o filósofo, são fenômenos dos tempos modernos, constituem os novos capítulos da nossa história no planeta Terra. “Para (o físico Werner) Heisenberg* o desenvolvimento da tecnociência diz respeito à evolução da espécie humana. Nesse sentido, veio para ficar, assim como não podemos mais abrir mão do fogo, da roda, dos meios de comunicação.”
*Formulador, em 1927, do Princípio da Incerteza, que afirma a incapacidade de se descrever os movimentos do elétron. Foi um dos fundadores da Mecânica Quântica, que estuda sistemas físicos próximos ou abaixo da escala atômica, de moléculas a partículas subatômicas
Nesse tempo da incerteza quântica, a certeza é de que não há controle. No mundo de partículas aceleradas pela alta conectividade, as ideias sólidas e o pensamento linear derreteram. Sem a linearidade previsível de causa e efeito, fica impossível gerenciar os riscos.
“(O sociólogo polonês Zygmunt) Bauman fala que nos tornamos uma sociedade líquida, mas acho que já passamos para o estado gasoso”, afirma Ricardo Guimarães, sócio da Thymus, empresa de branding. “Não por acaso se fala em volatilidade do mercado financeiro”, comenta. A quebra da Bolsa de um pequeno país afeta os mercados globais. Um machucado no dedo mindinho do pé compromete o bem-estar do organismo inteiro. Imaginem as incertezas expressas nos modelos climáticos.
Essa mudança de “estado”, diz Guimarães, exige do ser humano uma capacidade crescente de edição e dicernimento, para se localizar, posicionar e fazer escolhas.
Diante de todo o frenesi da sociedade acelerada, do excesso de estímulos e das toneladas de informações nos abarrotando por todos os lados, surgiu de uma roda de colegas, conversando sobre o tempo, a indagação: “O que eu quero conservar disso tudo?”
A abertura para se perguntar isso e se permitir as escolhas essenciais seria um indicador da evolução humana, sob o ponto de vista de Amartya Sen – que entende o desenvolvimento como expansão das liberdades.
Mas a instabilidade desses tempos voláteis que se avizinham não é prerrogativa da sociedade contemporânea – pelo menos não na escala geológica. Apenas 7% do tempo de vida do homem repousa no berço calmo do Holoceno*, de estabilidade climática, estações definidas, temperaturas confortáveis, conforme explica Amâncio Friaça, do IAG.
*Época que vem de 11.500 anos atrás.
Uma regularidade que tornou possível o desenvolvimento da agricultura e o florescimento da atual civilização, até que explodisse demograficamente, aumentasse de forma exponencial sua pegada e se tornasse um vetor de profundo desequilíbrio ambiental. “O triunfo do homem foi proporcionado pela estabilidade, e esse sucesso vai acabar com ela”. Nada que não se tenha enfrentado anteriormente, em priscas eras.
Antes do Holoceno, nossa espécie viveu e sobreviveu sob enormes variações climáticas. E, na visão de Friaça, o ser humano carrega essa lembrança geológica em sua memória. “Nossa escala de tempo é muito mais próxima da idade do Universo (13,5 bilhões de anos), em termos de grandeza numérica, do que da escala atômica*, o que nos sincroniza mais com o sistema universal”, filosofa o professor.
*A vida de um ser humano é 300 milhões de bilhões de vezes mais longa do que a de um átomo excitado de hidrogênio.
Segundo ele, o próximo estágio da evolução humana será lidar com a imprevisibilidade climática, em um ambiente quente e instável. Na competição entre as espécies, naturalmente ganham as que conseguem se desenvolver extraindo o mínimo possível do ambiente. Não é o caso humano: fizemos justamente o contrário. Pela péssima relação que temos com o meio, a tendência seria desaparecermos rapidamente. Mas, para Friaça, o homem resiste pela inteligência, pela noção do tempo, pela capacidade de imaginar o futuro e de ser autocrítico. Uma pintura otimista?
Único ente entre todos que se coloca a questão do ser e do tempo, fato é que somos diferentes no mundo. “Um ser de fronteira, portanto sempre estrangeiro”, diz Loparic.
Estrangeiro na Terra, mas não no Universo? Como ser de fronteira, temos mais perguntas que respostas. Nunca soube onde os rastros cintilantes iam parar.
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Kronos, Kayros, Aeon: percepções complementares do tempo
As percepções sobre o tempo são múltiplas e somente na língua grega compreendem-se três, distintas entre si. Kronos é a palavra que remete ao tempo devorador. Determinado, mensurável, sequencial, não reversível, exigente. Relaciona-se ao que é externo a nós. Leva ao impasse, à obstinação, à morte.
Mas existe também o tempo da oportunidade, do espaço inesperado, do equilíbrio, da conexão conosco, da integração física, afetiva e moral – este é chamado de Kayros, o tempo favorável.
Já Aeon é a plenitude, a eternidade. O tempo suspendido, indeterminado. Não tem antes nem depois. Sem fronteiras, indivisível.
Não são dimensões excludentes, nem uma se sobrepõe à outra, mas simultâneas e complementares.
Na sustentabilidade, por exemplo, a urgência ambiental e a força mobilizadora para agir diante dela remetem a Kronos. Nossa sociedade funciona e produz bens e serviços graças a esse pulsar cronológico. Mas é preciso também dar espaço para Kayros, aquele que abre brechas para a oportunidade. E a busca da essência se dá no plano de Aeon.
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Confira aqui o encontro no qual pesquisadores do GVces e outros convidados discutem sobre o tema do tempo.
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Leia aqui o artigo do astrofísico Amâncio Friaça sobre escalas do tempo, intitulado “Mensagem numa Garrafa Pet”.