Artista inglês sugere 33 atitudes irreverentes capazes de mudar a visão das pessoas em relação à cidade e, especialmente, a seus restos
Três de fevereiro não foi muito diferente da maior parte dos dias de janeiro: choveu em São Paulo. Há algum tempo, a água deixou de ser visita-surpresa para se tornar uma espécie de companheira – nem sempre grata – do morador da cidade. Um cafezinho no escritório às 4 da tarde, e lá está a primeira nuvem no horizonte, sorrindo-lhe cinza. Às 5, lanche na padaria com o segundo pingo escorrendo-lhe, simpático, atrás da orelha. Fila para pagar o estacionamento, às 6; o terceiro, o quarto, o quinto. Em poucos minutos, todos os pingos do mundo.
Dizem que os jornalistas correm atrás da notícia. E em São Paulo essa expressão pode ser interpretada ao pé da letra, ainda que a letra esteja com água pelos joelhos. Pois, juntamente com a chuva, vem o engarrafamento mais intenso. Três de fevereiro foi dia da palestra do artista inglês Joshua Sofaer, no Centro Cultural São Paulo, às 19h30. Para chegar ao local, o jornalista que vos escreve partiu do Itaim Bibi, às 18 horas, pouco depois do temporal.
Em geral, o trajeto é simples. Meia hora de ônibus até uma estação de metrô, mais 20 minutos pelos subterrâneos, na direção do destino desejado. Naquele dia, em meia hora, o ônibus não andara nem metade do percurso até a estação. E a distância que faltava acabou sendo percorrida à sola de sapato, para alcançar o metrô, em longos 40 minutos de subida. O jornalista chegou às 19h40, incrivelmente a tempo de assistir à palestra desde o começo.
Motivado pelo programa de residências Artist Links, do Consulado Britânico no País, que proporciona intercâmbio entre artistas da Inglaterra e do Brasil, o palestrante passou um tempo em terras e chuvas brasileiras para estudar melhor a questão do lixo em São Paulo. Ele pesquisou a fundo os sistemas de coleta e tratamento do que é descartado, e elaborou 33 propostas para a solução de problemas relacionados ao tema na cidade.
Lixo e trânsito não combinam, pois os restos que são jogados fora sem o menor cuidado entopem bueiros, emporcalham as ruas e contribuem para as enchentes, complicando a vida de pedestres e motoristas. Muitas das propostas de Sofaer são apresentadas em tom lúdico. Mas o bom humor é apenas estratégia para debater questões sérias.
O inglês lembra que, no México, certa vez foi registrada a queda de um meteorito de 22 toneladas. Segundo os números que forneceu, cada cidadão de São Paulo descarta 850 gramas de lixo por dia. Com uma expectativa de vida média de 70 anos, são cerca de 22 toneladas de lixo produzidas ao longo de toda a existência da pessoa. “Não existe registro de um meteorito desses no Brasil”, afirma. Assim, por exemplo, a sexta das propostas é esculpir um em alumínio, “como lembrança de nossas responsabilidades individuais”.
O artista concorda com um especialista que ouviu na visita feita ao Museu do Lixo*. A tese é de que, se o cidadão tivesse mais orgulho de seu município, cuidaria melhor dele. E o problema de indivíduos que jogam lixo fora de maneira inadequada poderia ser menor.
*Localizado na sede do Departamento de Limpeza Urbana de São Paulo (Limpurb), próximo ao Estádio do Canindé. Reúne objetos diversos, entre eles raridades
Tanto que a oitava proposta promove a interação entre habitantes da capital paulista, restos e cidade. “Poderíamos estimular os moradores a compor a calçada na frente de casa com material de sucata. O lixo que costuma ser depositado sobre a calçada se transformaria em parte dela”, idealiza Sofaer.
A educação do povo também entra no projeto. Entre as sugestões, nos livros didáticos, as crianças aprenderiam a contar com números relacionados ao volume de lixo endereçado aos aterros sanitários. Além disso, seriam promovidos passeios guiados, nos quais gente de todas as idades conheceria as etapas do descarte – da esteira de produção à fábrica de reciclagem.
As propostas do inglês buscam promover uma relação diferente das pessoas com o lixo, os processos de reciclagem e até mesmo as atividades do catador, na visão dele uma figura que se constitui no flaneur* contemporâneo. No entanto, em sua versão atual, o homem que flana interage com o ambiente. No caso, cata detritos, sem somente vagar com rumo indeterminado.
*Expressão usada pelo poeta francês Charles Baudelaire para designar o sujeito que anda pela cidade sem compromisso, observando o que se passa ao redor e vivenciando a experiência urbana
As sugestões sobre o que fazer com o lixo acabam levando a outras. Uma delas é a vigésima nona, de renomear vias públicas. O objetivo seria estimular o debate sobre quem são modelos de cidadão que gostaríamos de ter, escolher os vencedores e rebatizar determinadas ruas com o nome deles. Há um projeto nesses moldes com previsão de se concretizar, no Porto, Portugal.
As 33 propostas do artista podem ser conferidas em sua totalidade aqui. Constituem-se em meio de vagarmos também com rumo determinado. Um novo olhar sobre algo que ninguém deseja mais ver, ou muito menos sentir o cheiro. Mas cujo problema é preciso resolver: o lixo e as consequências da falta de cuidado com o seu destino.[:en]Artista inglês sugere 33 atitudes irreverentes capazes de mudar a visão das pessoas em relação à cidade e, especialmente, a seus restos
Três de fevereiro não foi muito diferente da maior parte dos dias de janeiro: choveu em São Paulo. Há algum tempo, a água deixou de ser visita-surpresa para se tornar uma espécie de companheira – nem sempre grata – do morador da cidade. Um cafezinho no escritório às 4 da tarde, e lá está a primeira nuvem no horizonte, sorrindo-lhe cinza. Às 5, lanche na padaria com o segundo pingo escorrendo-lhe, simpático, atrás da orelha. Fila para pagar o estacionamento, às 6; o terceiro, o quarto, o quinto. Em poucos minutos, todos os pingos do mundo.
Dizem que os jornalistas correm atrás da notícia. E em São Paulo essa expressão pode ser interpretada ao pé da letra, ainda que a letra esteja com água pelos joelhos. Pois, juntamente com a chuva, vem o engarrafamento mais intenso. Três de fevereiro foi dia da palestra do artista inglês Joshua Sofaer, no Centro Cultural São Paulo, às 19h30. Para chegar ao local, o jornalista que vos escreve partiu do Itaim Bibi, às 18 horas, pouco depois do temporal.
Em geral, o trajeto é simples. Meia hora de ônibus até uma estação de metrô, mais 20 minutos pelos subterrâneos, na direção do destino desejado. Naquele dia, em meia hora, o ônibus não andara nem metade do percurso até a estação. E a distância que faltava acabou sendo percorrida à sola de sapato, para alcançar o metrô, em longos 40 minutos de subida. O jornalista chegou às 19h40, incrivelmente a tempo de assistir à palestra desde o começo.
Motivado pelo programa de residências Artist Links, do Consulado Britânico no País, que proporciona intercâmbio entre artistas da Inglaterra e do Brasil, o palestrante passou um tempo em terras e chuvas brasileiras para estudar melhor a questão do lixo em São Paulo. Ele pesquisou a fundo os sistemas de coleta e tratamento do que é descartado, e elaborou 33 propostas para a solução de problemas relacionados ao tema na cidade.
Lixo e trânsito não combinam, pois os restos que são jogados fora sem o menor cuidado entopem bueiros, emporcalham as ruas e contribuem para as enchentes, complicando a vida de pedestres e motoristas. Muitas das propostas de Sofaer são apresentadas em tom lúdico. Mas o bom humor é apenas estratégia para debater questões sérias.
O inglês lembra que, no México, certa vez foi registrada a queda de um meteorito de 22 toneladas. Segundo os números que forneceu, cada cidadão de São Paulo descarta 850 gramas de lixo por dia. Com uma expectativa de vida média de 70 anos, são cerca de 22 toneladas de lixo produzidas ao longo de toda a existência da pessoa. “Não existe registro de um meteorito desses no Brasil”, afirma. Assim, por exemplo, a sexta das propostas é esculpir um em alumínio, “como lembrança de nossas responsabilidades individuais”.
O artista concorda com um especialista que ouviu na visita feita ao Museu do Lixo*. A tese é de que, se o cidadão tivesse mais orgulho de seu município, cuidaria melhor dele. E o problema de indivíduos que jogam lixo fora de maneira inadequada poderia ser menor.
*Localizado na sede do Departamento de Limpeza Urbana de São Paulo (Limpurb), próximo ao Estádio do Canindé. Reúne objetos diversos, entre eles raridades
Tanto que a oitava proposta promove a interação entre habitantes da capital paulista, restos e cidade. “Poderíamos estimular os moradores a compor a calçada na frente de casa com material de sucata. O lixo que costuma ser depositado sobre a calçada se transformaria em parte dela”, idealiza Sofaer.
A educação do povo também entra no projeto. Entre as sugestões, nos livros didáticos, as crianças aprenderiam a contar com números relacionados ao volume de lixo endereçado aos aterros sanitários. Além disso, seriam promovidos passeios guiados, nos quais gente de todas as idades conheceria as etapas do descarte – da esteira de produção à fábrica de reciclagem.
As propostas do inglês buscam promover uma relação diferente das pessoas com o lixo, os processos de reciclagem e até mesmo as atividades do catador, na visão dele uma figura que se constitui no flaneur* contemporâneo. No entanto, em sua versão atual, o homem que flana interage com o ambiente. No caso, cata detritos, sem somente vagar com rumo indeterminado.
*Expressão usada pelo poeta francês Charles Baudelaire para designar o sujeito que anda pela cidade sem compromisso, observando o que se passa ao redor e vivenciando a experiência urbana
As sugestões sobre o que fazer com o lixo acabam levando a outras. Uma delas é a vigésima nona, de renomear vias públicas. O objetivo seria estimular o debate sobre quem são modelos de cidadão que gostaríamos de ter, escolher os vencedores e rebatizar determinadas ruas com o nome deles. Há um projeto nesses moldes com previsão de se concretizar, no Porto, Portugal.
As 33 propostas do artista podem ser conferidas em sua totalidade aqui. Constituem-se em meio de vagarmos também com rumo determinado. Um novo olhar sobre algo que ninguém deseja mais ver, ou muito menos sentir o cheiro. Mas cujo problema é preciso resolver: o lixo e as consequências da falta de cuidado com o seu destino.