Por Amália Safatle
Antes de tudo, reconhecer a queda: admitir que o antigo modelo de metrópole foi superado. Em seguida, levantar e sacudir a poeira: por pior que seja o quadro, não esmorecer. E então dar a volta por cima: reinventar as grandes cidades, fazer florescer suas vocações, descobrir as lideranças que vão arregimentar forças em uma nova direção, e construir esse futuro de forma participativa e transparente.
O economista André Urani toma emprestado de Paulo Vanzolini o mote para propor uma reinvenção das metrópoles brasileiras, que se desindustrializaram, perderam sua identidade, mas ainda não preencheram esse vazio com o desenvolvimento de novas frentes. Sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) e escalado para dirigir o Instituto Natura, a ser lançado em breve, Urani propõe a criação de uma megalópole entre Rio e São Paulo que atue como um portal de conceitos e ideias brasileiras para o mundo, por meio do qual o país totalmente terceiro milênio cantado por Caetano Veloso ressurja, aglutine e seja um vetor do que há de melhor em termos de vanguarda e inovação.
Segundo uma apresentação sua de poucos anos atrás, não existe desindustrialização no Brasil, mas sim uma mudança de vocação de nossas metrópoles. O que está acontecendo é uma migração das indústrias para as áreas periféricas das metrópoles, atraindo as pessoas para essas franjas e esvaziando as áreas centrais?
Vamos por etapas. No mundo como um todo, da mesma maneira que cidade tem a ver com comércio, metrópole tem a ver com indústria. A primeira grande metrópole foi Londres. Marx n’O Capital se refere a Londres como a metrópole industrial. Depois, muitas outras cidades se tornaram metrópole, quase todas em torno da indústria. É o processo de industrialização que tomou corpo no século XIX, e se espalhou pelo mundo no século XX, que tem a ver com a metropolização. Quanto mais tarde se iniciou esse processo, mais virulento ele foi, de modo geral. O nosso foi um caso tardio e extremamente virulento. Como nos industrializamos muito tarde e tínhamos de fazer as contas com quem já tinha feito esse caminho antes, foram necessárias aqui maiores intervenções do Estado e isso criou distorções, desequilíbrios mais rápidos e violentos do que em outros lugares. Para se ter ideia, de 1940 a 1980, o crescimento brasileiro triplica, vamos de 40 milhões para 120 milhões de habitantes. E todos esses 80 milhões a mais vão para a cidade. A proporção de pessoas vivendo no campo e na cidade se inverte, fica 70% e 30%. Quem comandou isso foi São Paulo, de forma inconteste, o que não quer dizer que não tenha ocorrido em outras cidades. O que aconteceu no Rio de Janeiro nesse período foi devastador.
Óbvio que, quando se compara com São Paulo, tudo fica pequeno, então parece que a indústria só foi para lá. Não é verdade. No Rio, entre 1940 e 1970, o PIB industrial multiplicou-se por 12. É gigantesco. Toda a área de subúrbio do Rio vira cidade em meados do século passado por causa da indústria. Houve ainda metrópoles com crescimento tardio, como Belo Horizonte e Curitiba, que de alguma maneira tentaram evitar algum descompasso que já tinha acontecido no Rio e em São Paulo, do meu ponto de vista sem muito sucesso. Fato é que as maiores cidades brasileiras incharam de forma extremamente rápida e violenta em meados do século passado, por conta da industrialização. Você tinha um país que crescia a um ritmo acelerado, puxado pela indústria, centrado nas principais regiões metropolitanas, devido a um modelo muito preciso de acumulação guiado pelo Estado Nacional, que intervinha nos mais diferentes mercados, de câmbio, de trabalho, de crédito, distorcendo preços relativos. Essa distorção acabou criando um processo voraz de industrialização, e esse modelo implodiu. O modelo não foi sacaneado, ele implodiu.
No sentido de que não deu certo?
Tomou-se uma decisão no Brasil de privilegiar a industrialização, que passava por reaparelhar o Estado Nacional e dotá-lo dos instrumentos para mudar a estrutura econômica, chamando tecnologias e capitais estrangeiros, elegendo setores estratégicos, colocando o Estado para agir diretamente em setores que não atraíam gente de fora, fortalecendo o capital nacional. Esse modelo nacional-desenvolvimentista teve um êxito extraordinário em mudar a cara deste país. Saímos de um país pobre e essencialmente agrícola para um país de classe média urbanizada, com uma economia diversificada, uma indústria importante, um setor de serviços razoavelmente bem estruturado. O custo dessa transformação foi o acúmulo de uma série de distorções econômicas e sociais. Por um lado, criou-se um Estado destrambelhado, com uma dívida imensa e enorme dificuldade de se financiar, que acabava provocando inflação ou dívida externa. Com distorções sociais importantes, porque, elegendo setores estratégicos, desprezavam-se os outros, e então houve enorme concentração de renda. Criaram-se tensões políticas muito graves. Um Estado poderoso não podia discutir muito democraticamente com todos. Isso implodiu, porque era uma ditadura, pela concentração de renda absurda, porque deixou de ter capacidade de se financiar, e aí criou a crise da dívida, a inflação elevada… o modelo ruiu. Não se pode dizer que não teve sucesso. Em alguma medida ele mudou o País, mas os pressupostos do modelo implodiram.
Há 15 ou 20 anos, houve uma tentativa de promover reformas para voltar a ter um Estado menos interventor que no período de 1940 a 1980, com a abertura da economia. Isso obrigou os industriais que produziam aqui a competir com os que estavam fora do País e tinham tecnologia mais sofisticada e trabalhadores mais qualificados. A indústria teve de suportar um tranco muito duro. Muita gente acha que o custo disso foi a desindustrialização. Eu digo que não foi bem isso. A indústria não se mandou para a China – alguma parte foi. Mas a grande parte foi para outras regiões metropolitanas, como Goiânia, Campinas, Vale do Paraíba.
Por que isso aconteceu?
Para buscar custos menores. Porque era preciso competir. De uma hora para outra você se deparou com uma economia aberta.
Mas você podia competir sem mudar de lugar.
Mas aí o sindicato não deixava reduzir o salário, por exemplo. Você falava do quão insuportável é se locomover em São Paulo, imagina o custo que tem para o Brasil carregar uma mercadoria até Santos e ser obrigado a passar pela Avenida dos Bandeirantes.
O aumento de restrições ambientais também foi um fator?
Sim, isso apertou o cerco. Segurança… o fato é que se tornou muito mais vantajoso para o setor industrial produzir fora dos grandes centros metropolitanos. Grande parte da indústria perdida foi para regiões próximas a esses centros. Hoje se chega ao Porto de Sepetiba sem passar pela cidade do Rio de Janeiro.
E, hoje, quais são as novas vocações das metrópoles?
A serem construídas.
Podemos dizer que a vocação é uma economia terciária, tecnológica, criativa?
Essa questão de revocacionamento das regiões metropolitanas tem habitado a agenda política do Ocidente ao longo das últimas três décadas. Londres, que falávamos no começo, hoje é uma cidade exuberante e emprega menos gente na indústria, proporcionalmente em relação à sua população, do que o Rio de Janeiro. Ela é uma cidade desindustrializada. Mas Londres está mal? Não. Eles se reinventaram. Investiram em setores criativos, economia do conhecimento, serviços de qualidade, turismo. A receita de Londres serve para o Rio? Depende do quê. Barcelona também se reinventou e seguiu outro caminho.
Qual seria então a vocação do Rio?
Existem várias possíveis, mas o principal é uma coisa que eu digo em um livro meu: Trilhas para o Rio – Do reconhecimento da queda à reinvenção do futuro (Ed. Campus/Elsevier). Você quer sacudir a poeira e dar a volta por cima, como diz Paulo Vanzolini? O verso que vem antes é reconhece a queda,/ e não desanima/, esse é o ponto principal. Temos de reconhecer o tamanho do estrago, senão nunca seremos capazes de tomar medidas à altura das demandas para poder de fato se reinventar ou revocacionar essas metrópoles. Perdi metade desse livro para falar do tombo. As pessoas acham que sou pessimista, mas sou até otimista, porque, apesar de reconhecer o tamanho do tombo, eu não esmoreço.
O livro aborda São Paulo também?
Sim, tem um capítulo que diz “não estamos sós, a crise é metropolitana”, que pega justamente o caso de São Paulo para mostrar a encrenca metropolitana.
E não estamos falando só de queda do PIB, certo? É encrenca em vários sentidos?
Encrenca de perda de identidade. O Rio de Janeiro não deixou de ser apenas capital do País, deixou de ser mais um monte de coisas. No caso de São Paulo também, e tem muito a ver com a indústria. A cidade ainda tem muitas indústrias, mas muito menos em relação ao que tinha há 30 anos.
São Paulo pode não ter mais a indústria física em seu território, mas ainda está ligada às indústrias…
Sim, mas para mim, você, um amigo nosso, nós que vamos ali tomar um chope na Vila Madalena, fica até melhor morar em São Paulo trabalhando em serviços ligados à indústria, e esta lá longe. Mas o peão que foi para São Paulo procurar um emprego ficou a ver navios, quer dizer, nem navio ele tem para ver em São Paulo. Para nós é muito cômodo, eu tenho internet em casa e no escritório e consigo me comunicar com a fábrica, eu não preciso estar nela. O tamanho do emprego na indústria não caiu, ao contrário. Nem sequer o peso da indústria caiu, o problema é que ela se mandou de onde estava. Então, no espaço de uma geração, milhões de pessoas que saíram dos estados pobres e migraram para as grandes cidades em busca de alguma coisa… o gato comeu, e isso gera um ressentimento muito grande. Dado que a indústria não volta mais para a Zona Leste de São Paulo, o que faremos com essa gente?
Que tipo de atividade elas têm e que as mantém lá?
Muita gente faz bicos. Em São Paulo, 49,5% da população adulta não tem o equivalente ao Ensino Fundamental. E há muitos setores dinâmicos e sofisticados como consultoria, serviços financeiros e de saúde, muita coisa ligada a design, a moda, tem várias coisas acontecendo em termos de reinvenção de São Paulo. Mas que oportunidade isso gera?
Exatamente o que eu ia perguntar: essa sofisticação não acaba reforçando uma exclusão social, pois requer uma formação que as pessoas não têm? E assim elas não conseguem emprego por não possuir qualificação?
Primeira coisa, o futuro não é como era antigamente. Passamos uma geração inteira sem crescer e as pessoas ainda estão coladas a um futuro muito antigo, essa coisa de “vamos construir fábrica”. Não estou dizendo que não se deve construí-las… Eu aprendi com um velho professor que todo problema complicado tem uma solução simples, e ela está errada. Se você achar que um problema complicado tem uma solução simples, continue procurando, porque você não a encontrou. A solução não está no passado. O Rio não vai se resolver recuperando a capital, São Paulo e Rio não vão se resolver atraindo a indústria de volta. Temos de pôr a cabeça para funcionar e inventar algo novo. E se não podemos olhar para trás, olhemos para o lado. Barcelona fez um caminho, Bilbao, outro, a Filadélfia, um terceiro, e por aí vai.
Isso tudo está em aberto? “A construir” significa que ainda não se tem ideia do que fazer ou já se começa a tatear caminhos?
Tudo está muito incipiente. Por exemplo, a Zona Leste de São Paulo. O que pode ser o futuro de lá? Serviços? Que tipo de serviços? O que pode ser inventado para as pessoas que lá estão? Difícil. Imagine que, em Barcelona, três anos depois dos Jogos Olímpicos, em 1995, eles resolveram lançar um olhar sobre algo até então ignorado, a periferia deles. A periferia industrial de Barcelona, há 15 anos, era um lugar inóspito, feio, cheio de galpões abandonados, com desemprego gigantesco, um bando de jovens à toa, gangues, drogas, violência… Então vamos tentar entender esse lugar e inventar o futuro. Em 1995, criaram o programa @22 (referência ao século XXII), com o objetivo de transformar aquele pedaço de chão num lugar dinâmico, moderno, fundado nas novas tecnologias, criando espaços verdes, chamando o setor privado. Sabe qual era a meta deles em 1995? O ano de 2025. Eles se deram 30 anos de tempo. Eles reconhecem que com menos de 30 anos não seria possível dar uma resposta a esses problemas todos. Qual política pública no Brasil hoje tem 30 anos? Como é que você se planeja para, em democracia, fazer uma política de 30 anos? Para poder transformar de fato o território é preciso uma geração toda. Temos no Brasil um problema de governança no seguinte sentido: as instituições não foram desenhadas para dar conta desse tipo de problema. Há 20, 30 anos, essas cidades todas de que falamos também não davam. Mas eles foram capazes de inovar e criar instituições para isso. Em democracia, temos um problema de desenho institucional. Enquanto formos limitados a estruturas de governança estanques, estaremos presos nessa armadilha. Como mudar isso? As respostas são as mais diversas possíveis, mas com pontos em comum. Primeiro, são todas experiências democráticas. São participativas, em que se chegou a um pacto entre o setor público e o privado. São instituições transparentes, do ponto de vista da prestação de contas, e capazes de se financiar – não só através de tributos, mas de mercado –, e de fazer projetos.
Não tem nada parecido acontecendo no Brasil?
Tem algumas pequenas experiências ainda incipientes, e muita coisa fake, essa coisa do copy and paste, de você não saber o que está copiando, não adicionar um mínimo de inteligência…
O que tem de interessante?
Teve um projeto no Grande ABC, conduzido pelo saudoso Celso Daniel, capaz de fazer uma série de coisas interessantes em torno daqueles sete municípios, começando pela questão dos mananciais da represa Billings. Mas ali se padeceu de uma liderança que foi assassinada… ele era a liderança do processo. Mas, ainda que seja louvável, é muito pouco diante da necessidade de renovação institucional. Tem muita coisa acontecendo em termos de revitalização das grandes cidades. Seja no Rio, seja em São Paulo, há uma efervescência gigantesca no campo da sociedade civil que dá margem a coisas desde “Sou da Paz” até o “Viva Rio”, passando pelo AfroReggae, por polos industriais, gastronômicos. Há muitos projetos, ideias, mas ainda não fomos capazes de transformar essas ideias em processo de transformação, de pensar a coisa de uma maneira mais ampla.
Enquanto a transformação não acontece, há ainda uma ilusão para os migrantes de que o Rio e São Paulo são cidades de oportunidades?
Sim, e temos de desmanchar isso. Minha cidade natal, Turim, na Itália, tinha 600 mil habitantes em plena Segunda Guerra. E dobrou para 1,2 milhão em 1980. Eu nasci em 1960 e tinha horror à minha cidade, achava ela cinza, triste, industrial, preconceituosa. Em 1980, 180 mil pessoas trabalhavam diretamente na Fiat. Hoje ela emprega 12 mil, dividiu por 15 o número de empregados. A cidade encolheu para 900 mil habitantes, e é linda, alegre, colorida, tornou-se muito mais simpática. As grandes regiões metropolitanas têm de se convencer de que não estão condenadas a crescer, elas podem encolher, e isso pode ser muito bom.
Bom para as pessoas também?
Também, pois vão encontrar mais oportunidades fora dali. Esse é um discurso complicado de fazer, podem achar que você está sendo antipático. Mas, se pegar um adulto de 30 anos, que tenha o equivalente ao Ensino Fundamental completo, as chances de ocupação dele são maiores fora da região metropolitana. Ele também pode voltar à escola. Existem ferramentas de educação de jovens e adultos que podem e devem ser aproveitadas. Mas tem gente que não vai querer ou não vai poder. Para essas pessoas, é melhor tentar inventar uma nova vida em uma cidade onde estarão tão bem servidas em estrutura, acesso a serviços, mais oportunidades de trabalho, maiores possibilidades de colocar os filhos em uma escola decente, mais tranquilas do ponto de vista da segurança, menos tempo no trânsito. Foi o que aconteceu em Turim. As pessoas saíram e não voltaram. E hoje em dia há uma megalópole se conformando entre Turim e Milão, como há uma megalópole se conformando entre o Rio e São Paulo. É um contínuo de urbanização, mas feito de maneira anárquica, desordenada. O futuro de Rio e São Paulo deveria ser pensando conjuntamente no século XXI, existe um espaço para a megalópole brasileira. Não existe espaço para duas metrópoles globais nesse cantinho do mundo, disputando entre si a primazia da economia criativa. Tem alguma coisa em conjunto que podemos pensar.
Desenhamos uma megalópole aqui, 242 municípios, de Campos a Campinas, passando por Juiz de Fora, isso dá 0,97% do território nacional, 23% da população brasileira, 35% do PIB. Nesse pedaço de chão, você tem todas as indústrias que puder imaginar, as melhores e maiores universidades brasileiras, os maiores bancos públicos e privados, os maiores equipamentos culturais, os melhores hospitais. Esse pedaço de chão tem 92% do petróleo brasileiro antes do pré-sal, energia elétrica em abundância, toda energia nuclear, toda pesquisa em termos de biomassa, 1.200 quilômetros de litoral e 50 parques naturais. Isso tem tudo para ser líder mundial em dois setores que serão chave daqui para a frente: energia e sustentabilidade. Essa é uma oportunidade para escaparmos da maldição do BRIC, aquela coisa do Goldman Sachs que diz que seremos potência porque temos água doce, minério e capacidade de produzir e distribuir proteínas animais e vegetais. Se esse for o nosso futuro, podemos esquecer nossas cidades. Se quisermos dar sentido às cidades, temos de ser capazes de vender conceito, ideia, produtos com valor adicionado.
Qual é a vantagem da organização em uma megalópole?
É criar instâncias de governança compartilhada e desinchar as metrópoles, ocupando essas cidades intermediárias de forma ordenada, preservando os ativos ambientais que existem aqui, como os resquícios de Mata Atlântica fundamentais para a diversidade da fauna e flora, poderemos nos posicionar no mundo de um modo competitivo em setores estratégicos. Por exemplo, trabalhar de forma interligada o petróleo com a biomassa, buscando formas de substituição, encontrar um caminho para isso e jogar em transporte de massa. Agora, quero voltar a uma questão que você colocou antes, de que não temos respostas prontas a respeito das vocações novas, porque isso, para dar certo, precisa resultar de algum processo de discussão. Você não impõe vocações. Esse processo de reinvenção das metrópoles do mundo teve lideranças, e não precisa ser uma liderança política tradicional. Tem de ser alguém que puxe para si a responsabilidade de liderar esse processo. E hoje ainda estamos com dificuldade de reconhecer a queda e ter alguém que assuma a liderança. Temos chances incríveis, a Olimpíada, a Copa, mas que podemos jogar na latrina se isso se transformar numa coleção de pequenos projetos, sem discutir um verdadeiro processo de transformação da cidade. Por que são importantes os Jogos Olímpicos? Porque de alguma maneira se consegue sair da armadilha de projetos de curto prazo, para se amarrar a projetos de mais longo prazo. Em 2016, o prefeito talvez ainda seja o Eduardo Paes, mas o presidente não será o Lula e o governador não será o Sérgio Cabral. Então, eles são obrigados a fazer projetos para além de seus mandatos.
A formação de uma megalópole não repetiria os problemas de inchaço populacional, de ocupação desordenada, de não se desenvolver outras regiões do País?
Chamar isso de “megalópole brasileira” é justamente para dizer que não é contra o Brasil, ao contrário. Não é separatista. Nos últimos 30 anos, o Brasil renunciou à sua vanguarda, à sua elite. Até 30 anos atrás, o Brasil era um país jovem, simpático, totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro milênio, totalmente Terceiro Mundo, tinha o Hélio Oiticica, o Caetano, essa coisa da Tropicália, arrojada, inovadora, e isso se acabrunhou de 1980 pra cá. Sempre teve muita desigualdade no País. A desigualdade até 1980 vinha acompanhada de mobilidade, as pessoas todas tinham a impressão de que o amanhã seria melhor do que o hoje. E de 1980 para cá, a desigualdade se manteve, mas a mobilidade parou. De repente se criou uma sociedade completamente díspar e injusta, com imobilidade total. Isso gera um rancor humano, principalmente de quem está por baixo. E fica parecendo que vanguarda é feia, que elite é feia. Nisso perdemos muitas boas cabeças para outros países, artistas, empresários, pessoas criativas. Isso até pouco tempo atrás. Mas temos de melhorar isso. Hoje se tem uma ascensão. Temos de nos conscientizar de que, para o Brasil se posicionar no mundo, são necessárias as “Isabela Capeto”, estou dizendo no campo da moda, no campo da música, da arte, do conceito, da ideia, da inovação. Para isso, é necessário investir na vanguarda, nas pessoas que têm capacidade de criar.
E são as cidades que reúnem essas pessoas.
Sim. Para isso, a megalópole seria como que um portal de conceitos e ideias brasileiras para o mundo. Que não precisam ser só daqui, mas que você precisa concentrar. Por exemplo, o Gilberto Gil, que está aqui. Ele é carioca? Não, ele é baiano. Mas ele precisa de um ambiente como este para que as coisas que ele necessita estejam disponíveis. Não será a banda larga no Recôncavo Baiano que vai resolver. Precisa ter um adensamento. Por que a megalópole não é contra o resto? Com todo o respeito, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Porto Alegre não conseguem reunir condições de juntar essa massa crítica que hoje existe aqui, em termos de produção de ciência, de arte. Por exemplo, a Natura aposta pesado na questão amazônica com a linha Ekos e está em Cajamar (Região Metropolitana de São Paulo), com muitos projetos interessantes de desenvolvimento local nas comunidades produtoras. Isso não é possível se não tiver alguém investindo intensamente em inovação em termos de cosmético, com alguém trabalhando em marketing – e isso você só reúne em São Paulo ou no Rio. Não vai conseguir reunir essa massa crítica em Belém, com todo o respeito. E tudo isso gera bem-estar em Belém. Então não há contradição, e sim complementaridade.
Mas, antes da megalópole, há um problema metropolitano para resolver, não é?
Os problemas não serão resolvidos no arco de um governo, mesmo que reeleito. Oito anos é pouco para resolver transporte, poluição, precariedade das moradias, falta de preparo das pessoas, precariedade da infraestrutura. Temos de inventar instituições capazes de dar conta do problema. Olha essa baía (aponta da janela a Baía de Guanabara), eu trabalho aqui há sete anos, com essa vista linda. Sabe quantas vezes mergulhei naquela água? Nenhuma, porque o prefeito daqui não investe nada para despoluir o Rio Carioca que deságua aqui na frente, porque ele não sabe se o prefeito de Niterói ou de São Gonçalo investe nisso também. Então fica todo mundo parado.
E haverá provas das Olimpíadas ali.
Sim. Sem contar que existe um aterro sanitário, que está sendo desativado, que despeja metais pesados. Quanto tempo se leva para ter de volta os golfinhos ali? Um prefeito que começar essa obra não vai entregar isso. O setor privado tem interesse nisso, mas é preciso construir formas de governança capazes de aguentar o tranco da alternância no poder. Essa é a questão. Não precisamos esperar o marco legal ficar pronto de cima para baixo, podemos construir a partir da mobilização dos governos locais, da iniciativa privada, da sociedade civil… é assim que se constrói. Há um grande conformismo, sinal de uma cabeça retrógrada que ainda temos, que espera soluções nacionais. As soluções não são nacionais, são locais. Tem apetite no setor privado, temos de sair da caixa. Não se revitaliza o Rio Pinheiros (em São Paulo) em quatro anos. Você não transforma aquilo em um lugar decente, para levar seus filhos para andar de bicicleta, e gostando da paisagem, em menos de dez anos – sei lá quanto tempo se leva para limpar aquilo. Sabia que a totalidade do esgoto de Guarulhos é despejada no Tietê? Tudo! Um milhão e meio de pessoas. É assustador. Esgoto in natura. Tem solução? Tem. Quanto tempo vai levar? Não dá para saber.
O senhor e o José Luiz Alquéres (presidente do Grupo Light e parceiro na ideia de formação da “megalópole brasileira”) têm conversado com os prefeitos das cidades?
Sim, temos conversado. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Alguma hora cai a ficha, as pessoas são simpáticas à ideia, mas até transformar essa simpatia em projeto mesmo, falta alguma coisa. Enquanto isso, vamos circulando a ideia.[:en]Antes de tudo, reconhecer a queda: admitir que o antigo modelo de metrópole foi superado. Em seguida, levantar e sacudir a poeira: por pior que seja o quadro, não esmorecer. E então dar a volta por cima: reinventar as grandes cidades, fazer florescer suas vocações, descobrir as lideranças que vão arregimentar forças em uma nova direção, e construir esse futuro de forma participativa e transparente.
O economista André Urani toma emprestado de Paulo Vanzolini o mote para propor uma reinvenção das metrópoles brasileiras, que se desindustrializaram, perderam sua identidade, mas ainda não preencheram esse vazio com o desenvolvimento de novas frentes. Sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) e escalado para dirigir o Instituto Natura, a ser lançado em breve, Urani propõe a criação de uma megalópole entre Rio e São Paulo que atue como um portal de conceitos e ideias brasileiras para o mundo, por meio do qual o país totalmente terceiro milênio cantado por Caetano Veloso ressurja, aglutine e seja um vetor do que há de melhor em termos de vanguarda e inovação.
Segundo uma apresentação sua de poucos anos atrás, não existe desindustrialização no Brasil, mas sim uma mudança de vocação de nossas metrópoles. O que está acontecendo é uma migração das indústrias para as áreas periféricas das metrópoles, atraindo as pessoas para essas franjas e esvaziando as áreas centrais?
Vamos por etapas. No mundo como um todo, da mesma maneira que cidade tem a ver com comércio, metrópole tem a ver com indústria. A primeira grande metrópole foi Londres. Marx n’O Capital se refere a Londres como a metrópole industrial. Depois, muitas outras cidades se tornaram metrópole, quase todas em torno da indústria. É o processo de industrialização que tomou corpo no século XIX, e se espalhou pelo mundo no século XX, que tem a ver com a metropolização. Quanto mais tarde se iniciou esse processo, mais virulento ele foi, de modo geral. O nosso foi um caso tardio e extremamente virulento. Como nos industrializamos muito tarde e tínhamos de fazer as contas com quem já tinha feito esse caminho antes, foram necessárias aqui maiores intervenções do Estado e isso criou distorções, desequilíbrios mais rápidos e violentos do que em outros lugares. Para se ter ideia, de 1940 a 1980, o crescimento brasileiro triplica, vamos de 40 milhões para 120 milhões de habitantes. E todos esses 80 milhões a mais vão para a cidade. A proporção de pessoas vivendo no campo e na cidade se inverte, fica 70% e 30%. Quem comandou isso foi São Paulo, de forma inconteste, o que não quer dizer que não tenha ocorrido em outras cidades. O que aconteceu no Rio de Janeiro nesse período foi devastador.
Óbvio que, quando se compara com São Paulo, tudo fica pequeno, então parece que a indústria só foi para lá. Não é verdade. No Rio, entre 1940 e 1970, o PIB industrial multiplicou-se por 12. É gigantesco. Toda a área de subúrbio do Rio vira cidade em meados do século passado por causa da indústria. Houve ainda metrópoles com crescimento tardio, como Belo Horizonte e Curitiba, que de alguma maneira tentaram evitar algum descompasso que já tinha acontecido no Rio e em São Paulo, do meu ponto de vista sem muito sucesso. Fato é que as maiores cidades brasileiras incharam de forma extremamente rápida e violenta em meados do século passado, por conta da industrialização. Você tinha um país que crescia a um ritmo acelerado, puxado pela indústria, centrado nas principais regiões metropolitanas, devido a um modelo muito preciso de acumulação guiado pelo Estado Nacional, que intervinha nos mais diferentes mercados, de câmbio, de trabalho, de crédito, distorcendo preços relativos. Essa distorção acabou criando um processo voraz de industrialização, e esse modelo implodiu. O modelo não foi sacaneado, ele implodiu.
No sentido de que não deu certo?
Tomou-se uma decisão no Brasil de privilegiar a industrialização, que passava por reaparelhar o Estado Nacional e dotá-lo dos instrumentos para mudar a estrutura econômica, chamando tecnologias e capitais estrangeiros, elegendo setores estratégicos, colocando o Estado para agir diretamente em setores que não atraíam gente de fora, fortalecendo o capital nacional. Esse modelo nacional-desenvolvimentista teve um êxito extraordinário em mudar a cara deste país. Saímos de um país pobre e essencialmente agrícola para um país de classe média urbanizada, com uma economia diversificada, uma indústria importante, um setor de serviços razoavelmente bem estruturado. O custo dessa transformação foi o acúmulo de uma série de distorções econômicas e sociais. Por um lado, criou-se um Estado destrambelhado, com uma dívida imensa e enorme dificuldade de se financiar, que acabava provocando inflação ou dívida externa. Com distorções sociais importantes, porque, elegendo setores estratégicos, desprezavam-se os outros, e então houve enorme concentração de renda. Criaram-se tensões políticas muito graves. Um Estado poderoso não podia discutir muito democraticamente com todos. Isso implodiu, porque era uma ditadura, pela concentração de renda absurda, porque deixou de ter capacidade de se financiar, e aí criou a crise da dívida, a inflação elevada… o modelo ruiu. Não se pode dizer que não teve sucesso. Em alguma medida ele mudou o País, mas os pressupostos do modelo implodiram.
Há 15 ou 20 anos, houve uma tentativa de promover reformas para voltar a ter um Estado menos interventor que no período de 1940 a 1980, com a abertura da economia. Isso obrigou os industriais que produziam aqui a competir com os que estavam fora do País e tinham tecnologia mais sofisticada e trabalhadores mais qualificados. A indústria teve de suportar um tranco muito duro. Muita gente acha que o custo disso foi a desindustrialização. Eu digo que não foi bem isso. A indústria não se mandou para a China – alguma parte foi. Mas a grande parte foi para outras regiões metropolitanas, como Goiânia, Campinas, Vale do Paraíba.
Por que isso aconteceu?
Para buscar custos menores. Porque era preciso competir. De uma hora para outra você se deparou com uma economia aberta.
Mas você podia competir sem mudar de lugar.
Mas aí o sindicato não deixava reduzir o salário, por exemplo. Você falava do quão insuportável é se locomover em São Paulo, imagina o custo que tem para o Brasil carregar uma mercadoria até Santos e ser obrigado a passar pela Avenida dos Bandeirantes.
O aumento de restrições ambientais também foi um fator?
Sim, isso apertou o cerco. Segurança… o fato é que se tornou muito mais vantajoso para o setor industrial produzir fora dos grandes centros metropolitanos. Grande parte da indústria perdida foi para regiões próximas a esses centros. Hoje se chega ao Porto de Sepetiba sem passar pela cidade do Rio de Janeiro.
E, hoje, quais são as novas vocações das metrópoles?
A serem construídas.
Podemos dizer que a vocação é uma economia terciária, tecnológica, criativa?
Essa questão de revocacionamento das regiões metropolitanas tem habitado a agenda política do Ocidente ao longo das últimas três décadas. Londres, que falávamos no começo, hoje é uma cidade exuberante e emprega menos gente na indústria, proporcionalmente em relação à sua população, do que o Rio de Janeiro. Ela é uma cidade desindustrializada. Mas Londres está mal? Não. Eles se reinventaram. Investiram em setores criativos, economia do conhecimento, serviços de qualidade, turismo. A receita de Londres serve para o Rio? Depende do quê. Barcelona também se reinventou e seguiu outro caminho.
Qual seria então a vocação do Rio?
Existem várias possíveis, mas o principal é uma coisa que eu digo em um livro meu: Trilhas para o Rio – Do reconhecimento da queda à reinvenção do futuro (Ed. Campus/Elsevier). Você quer sacudir a poeira e dar a volta por cima, como diz Paulo Vanzolini? O verso que vem antes é reconhece a queda,/ e não desanima/, esse é o ponto principal. Temos de reconhecer o tamanho do estrago, senão nunca seremos capazes de tomar medidas à altura das demandas para poder de fato se reinventar ou revocacionar essas metrópoles. Perdi metade desse livro para falar do tombo. As pessoas acham que sou pessimista, mas sou até otimista, porque, apesar de reconhecer o tamanho do tombo, eu não esmoreço.
O livro aborda São Paulo também?
Sim, tem um capítulo que diz “não estamos sós, a crise é metropolitana”, que pega justamente o caso de São Paulo para mostrar a encrenca metropolitana.
E não estamos falando só de queda do PIB, certo? É encrenca em vários sentidos?
Encrenca de perda de identidade. O Rio de Janeiro não deixou de ser apenas capital do País, deixou de ser mais um monte de coisas. No caso de São Paulo também, e tem muito a ver com a indústria. A cidade ainda tem muitas indústrias, mas muito menos em relação ao que tinha há 30 anos.
São Paulo pode não ter mais a indústria física em seu território, mas ainda está ligada às indústrias…
Sim, mas para mim, você, um amigo nosso, nós que vamos ali tomar um chope na Vila Madalena, fica até melhor morar em São Paulo trabalhando em serviços ligados à indústria, e esta lá longe. Mas o peão que foi para São Paulo procurar um emprego ficou a ver navios, quer dizer, nem navio ele tem para ver em São Paulo. Para nós é muito cômodo, eu tenho internet em casa e no escritório e consigo me comunicar com a fábrica, eu não preciso estar nela. O tamanho do emprego na indústria não caiu, ao contrário. Nem sequer o peso da indústria caiu, o problema é que ela se mandou de onde estava. Então, no espaço de uma geração, milhões de pessoas que saíram dos estados pobres e migraram para as grandes cidades em busca de alguma coisa… o gato comeu, e isso gera um ressentimento muito grande. Dado que a indústria não volta mais para a Zona Leste de São Paulo, o que faremos com essa gente?
Que tipo de atividade elas têm e que as mantém lá?
Muita gente faz bicos. Em São Paulo, 49,5% da população adulta não tem o equivalente ao Ensino Fundamental. E há muitos setores dinâmicos e sofisticados como consultoria, serviços financeiros e de saúde, muita coisa ligada a design, a moda, tem várias coisas acontecendo em termos de reinvenção de São Paulo. Mas que oportunidade isso gera?
Exatamente o que eu ia perguntar: essa sofisticação não acaba reforçando uma exclusão social, pois requer uma formação que as pessoas não têm? E assim elas não conseguem emprego por não possuir qualificação?
Primeira coisa, o futuro não é como era antigamente. Passamos uma geração inteira sem crescer e as pessoas ainda estão coladas a um futuro muito antigo, essa coisa de “vamos construir fábrica”. Não estou dizendo que não se deve construí-las… Eu aprendi com um velho professor que todo problema complicado tem uma solução simples, e ela está errada. Se você achar que um problema complicado tem uma solução simples, continue procurando, porque você não a encontrou. A solução não está no passado. O Rio não vai se resolver recuperando a capital, São Paulo e Rio não vão se resolver atraindo a indústria de volta. Temos de pôr a cabeça para funcionar e inventar algo novo. E se não podemos olhar para trás, olhemos para o lado. Barcelona fez um caminho, Bilbao, outro, a Filadélfia, um terceiro, e por aí vai.
Isso tudo está em aberto? “A construir” significa que ainda não se tem ideia do que fazer ou já se começa a tatear caminhos?
Tudo está muito incipiente. Por exemplo, a Zona Leste de São Paulo. O que pode ser o futuro de lá? Serviços? Que tipo de serviços? O que pode ser inventado para as pessoas que lá estão? Difícil. Imagine que, em Barcelona, três anos depois dos Jogos Olímpicos, em 1995, eles resolveram lançar um olhar sobre algo até então ignorado, a periferia deles. A periferia industrial de Barcelona, há 15 anos, era um lugar inóspito, feio, cheio de galpões abandonados, com desemprego gigantesco, um bando de jovens à toa, gangues, drogas, violência… Então vamos tentar entender esse lugar e inventar o futuro. Em 1995, criaram o programa @22 (referência ao século XXII), com o objetivo de transformar aquele pedaço de chão num lugar dinâmico, moderno, fundado nas novas tecnologias, criando espaços verdes, chamando o setor privado. Sabe qual era a meta deles em 1995? O ano de 2025. Eles se deram 30 anos de tempo. Eles reconhecem que com menos de 30 anos não seria possível dar uma resposta a esses problemas todos. Qual política pública no Brasil hoje tem 30 anos? Como é que você se planeja para, em democracia, fazer uma política de 30 anos? Para poder transformar de fato o território é preciso uma geração toda. Temos no Brasil um problema de governança no seguinte sentido: as instituições não foram desenhadas para dar conta desse tipo de problema. Há 20, 30 anos, essas cidades todas de que falamos também não davam. Mas eles foram capazes de inovar e criar instituições para isso. Em democracia, temos um problema de desenho institucional. Enquanto formos limitados a estruturas de governança estanques, estaremos presos nessa armadilha. Como mudar isso? As respostas são as mais diversas possíveis, mas com pontos em comum. Primeiro, são todas experiências democráticas. São participativas, em que se chegou a um pacto entre o setor público e o privado. São instituições transparentes, do ponto de vista da prestação de contas, e capazes de se financiar – não só através de tributos, mas de mercado –, e de fazer projetos.
Não tem nada parecido acontecendo no Brasil?
Tem algumas pequenas experiências ainda incipientes, e muita coisa fake, essa coisa do copy and paste, de você não saber o que está copiando, não adicionar um mínimo de inteligência…
O que tem de interessante?
Teve um projeto no Grande ABC, conduzido pelo saudoso Celso Daniel, capaz de fazer uma série de coisas interessantes em torno daqueles sete municípios, começando pela questão dos mananciais da represa Billings. Mas ali se padeceu de uma liderança que foi assassinada… ele era a liderança do processo. Mas, ainda que seja louvável, é muito pouco diante da necessidade de renovação institucional. Tem muita coisa acontecendo em termos de revitalização das grandes cidades. Seja no Rio, seja em São Paulo, há uma efervescência gigantesca no campo da sociedade civil que dá margem a coisas desde “Sou da Paz” até o “Viva Rio”, passando pelo AfroReggae, por polos industriais, gastronômicos. Há muitos projetos, ideias, mas ainda não fomos capazes de transformar essas ideias em processo de transformação, de pensar a coisa de uma maneira mais ampla.
Enquanto a transformação não acontece, há ainda uma ilusão para os migrantes de que o Rio e São Paulo são cidades de oportunidades?
Sim, e temos de desmanchar isso. Minha cidade natal, Turim, na Itália, tinha 600 mil habitantes em plena Segunda Guerra. E dobrou para 1,2 milhão em 1980. Eu nasci em 1960 e tinha horror à minha cidade, achava ela cinza, triste, industrial, preconceituosa. Em 1980, 180 mil pessoas trabalhavam diretamente na Fiat. Hoje ela emprega 12 mil, dividiu por 15 o número de empregados. A cidade encolheu para 900 mil habitantes, e é linda, alegre, colorida, tornou-se muito mais simpática. As grandes regiões metropolitanas têm de se convencer de que não estão condenadas a crescer, elas podem encolher, e isso pode ser muito bom.
Bom para as pessoas também?
Também, pois vão encontrar mais oportunidades fora dali. Esse é um discurso complicado de fazer, podem achar que você está sendo antipático. Mas, se pegar um adulto de 30 anos, que tenha o equivalente ao Ensino Fundamental completo, as chances de ocupação dele são maiores fora da região metropolitana. Ele também pode voltar à escola. Existem ferramentas de educação de jovens e adultos que podem e devem ser aproveitadas. Mas tem gente que não vai querer ou não vai poder. Para essas pessoas, é melhor tentar inventar uma nova vida em uma cidade onde estarão tão bem servidas em estrutura, acesso a serviços, mais oportunidades de trabalho, maiores possibilidades de colocar os filhos em uma escola decente, mais tranquilas do ponto de vista da segurança, menos tempo no trânsito. Foi o que aconteceu em Turim. As pessoas saíram e não voltaram. E hoje em dia há uma megalópole se conformando entre Turim e Milão, como há uma megalópole se conformando entre o Rio e São Paulo. É um contínuo de urbanização, mas feito de maneira anárquica, desordenada. O futuro de Rio e São Paulo deveria ser pensando conjuntamente no século XXI, existe um espaço para a megalópole brasileira. Não existe espaço para duas metrópoles globais nesse cantinho do mundo, disputando entre si a primazia da economia criativa. Tem alguma coisa em conjunto que podemos pensar.
Desenhamos uma megalópole aqui, 242 municípios, de Campos a Campinas, passando por Juiz de Fora, isso dá 0,97% do território nacional, 23% da população brasileira, 35% do PIB. Nesse pedaço de chão, você tem todas as indústrias que puder imaginar, as melhores e maiores universidades brasileiras, os maiores bancos públicos e privados, os maiores equipamentos culturais, os melhores hospitais. Esse pedaço de chão tem 92% do petróleo brasileiro antes do pré-sal, energia elétrica em abundância, toda energia nuclear, toda pesquisa em termos de biomassa, 1.200 quilômetros de litoral e 50 parques naturais. Isso tem tudo para ser líder mundial em dois setores que serão chave daqui para a frente: energia e sustentabilidade. Essa é uma oportunidade para escaparmos da maldição do BRIC, aquela coisa do Goldman Sachs que diz que seremos potência porque temos água doce, minério e capacidade de produzir e distribuir proteínas animais e vegetais. Se esse for o nosso futuro, podemos esquecer nossas cidades. Se quisermos dar sentido às cidades, temos de ser capazes de vender conceito, ideia, produtos com valor adicionado.
Qual é a vantagem da organização em uma megalópole?
É criar instâncias de governança compartilhada e desinchar as metrópoles, ocupando essas cidades intermediárias de forma ordenada, preservando os ativos ambientais que existem aqui, como os resquícios de Mata Atlântica fundamentais para a diversidade da fauna e flora, poderemos nos posicionar no mundo de um modo competitivo em setores estratégicos. Por exemplo, trabalhar de forma interligada o petróleo com a biomassa, buscando formas de substituição, encontrar um caminho para isso e jogar em transporte de massa. Agora, quero voltar a uma questão que você colocou antes, de que não temos respostas prontas a respeito das vocações novas, porque isso, para dar certo, precisa resultar de algum processo de discussão. Você não impõe vocações. Esse processo de reinvenção das metrópoles do mundo teve lideranças, e não precisa ser uma liderança política tradicional. Tem de ser alguém que puxe para si a responsabilidade de liderar esse processo. E hoje ainda estamos com dificuldade de reconhecer a queda e ter alguém que assuma a liderança. Temos chances incríveis, a Olimpíada, a Copa, mas que podemos jogar na latrina se isso se transformar numa coleção de pequenos projetos, sem discutir um verdadeiro processo de transformação da cidade. Por que são importantes os Jogos Olímpicos? Porque de alguma maneira se consegue sair da armadilha de projetos de curto prazo, para se amarrar a projetos de mais longo prazo. Em 2016, o prefeito talvez ainda seja o Eduardo Paes, mas o presidente não será o Lula e o governador não será o Sérgio Cabral. Então, eles são obrigados a fazer projetos para além de seus mandatos.
A formação de uma megalópole não repetiria os problemas de inchaço populacional, de ocupação desordenada, de não se desenvolver outras regiões do País?
Chamar isso de “megalópole brasileira” é justamente para dizer que não é contra o Brasil, ao contrário. Não é separatista. Nos últimos 30 anos, o Brasil renunciou à sua vanguarda, à sua elite. Até 30 anos atrás, o Brasil era um país jovem, simpático, totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro milênio, totalmente Terceiro Mundo, tinha o Hélio Oiticica, o Caetano, essa coisa da Tropicália, arrojada, inovadora, e isso se acabrunhou de 1980 pra cá. Sempre teve muita desigualdade no País. A desigualdade até 1980 vinha acompanhada de mobilidade, as pessoas todas tinham a impressão de que o amanhã seria melhor do que o hoje. E de 1980 para cá, a desigualdade se manteve, mas a mobilidade parou. De repente se criou uma sociedade completamente díspar e injusta, com imobilidade total. Isso gera um rancor humano, principalmente de quem está por baixo. E fica parecendo que vanguarda é feia, que elite é feia. Nisso perdemos muitas boas cabeças para outros países, artistas, empresários, pessoas criativas. Isso até pouco tempo atrás. Mas temos de melhorar isso. Hoje se tem uma ascensão. Temos de nos conscientizar de que, para o Brasil se posicionar no mundo, são necessárias as “Isabela Capeto”, estou dizendo no campo da moda, no campo da música, da arte, do conceito, da ideia, da inovação. Para isso, é necessário investir na vanguarda, nas pessoas que têm capacidade de criar.
E são as cidades que reúnem essas pessoas.
Sim. Para isso, a megalópole seria como que um portal de conceitos e ideias brasileiras para o mundo. Que não precisam ser só daqui, mas que você precisa concentrar. Por exemplo, o Gilberto Gil, que está aqui. Ele é carioca? Não, ele é baiano. Mas ele precisa de um ambiente como este para que as coisas que ele necessita estejam disponíveis. Não será a banda larga no Recôncavo Baiano que vai resolver. Precisa ter um adensamento. Por que a megalópole não é contra o resto? Com todo o respeito, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Porto Alegre não conseguem reunir condições de juntar essa massa crítica que hoje existe aqui, em termos de produção de ciência, de arte. Por exemplo, a Natura aposta pesado na questão amazônica com a linha Ekos e está em Cajamar (Região Metropolitana de São Paulo), com muitos projetos interessantes de desenvolvimento local nas comunidades produtoras. Isso não é possível se não tiver alguém investindo intensamente em inovação em termos de cosmético, com alguém trabalhando em marketing – e isso você só reúne em São Paulo ou no Rio. Não vai conseguir reunir essa massa crítica em Belém, com todo o respeito. E tudo isso gera bem-estar em Belém. Então não há contradição, e sim complementaridade.
Mas, antes da megalópole, há um problema metropolitano para resolver, não é?
Os problemas não serão resolvidos no arco de um governo, mesmo que reeleito. Oito anos é pouco para resolver transporte, poluição, precariedade das moradias, falta de preparo das pessoas, precariedade da infraestrutura. Temos de inventar instituições capazes de dar conta do problema. Olha essa baía (aponta da janela a Baía de Guanabara), eu trabalho aqui há sete anos, com essa vista linda. Sabe quantas vezes mergulhei naquela água? Nenhuma, porque o prefeito daqui não investe nada para despoluir o Rio Carioca que deságua aqui na frente, porque ele não sabe se o prefeito de Niterói ou de São Gonçalo investe nisso também. Então fica todo mundo parado.
E haverá provas das Olimpíadas ali.
Sim. Sem contar que existe um aterro sanitário, que está sendo desativado, que despeja metais pesados. Quanto tempo se leva para ter de volta os golfinhos ali? Um prefeito que começar essa obra não vai entregar isso. O setor privado tem interesse nisso, mas é preciso construir formas de governança capazes de aguentar o tranco da alternância no poder. Essa é a questão. Não precisamos esperar o marco legal ficar pronto de cima para baixo, podemos construir a partir da mobilização dos governos locais, da iniciativa privada, da sociedade civil… é assim que se constrói. Há um grande conformismo, sinal de uma cabeça retrógrada que ainda temos, que espera soluções nacionais. As soluções não são nacionais, são locais. Tem apetite no setor privado, temos de sair da caixa. Não se revitaliza o Rio Pinheiros (em São Paulo) em quatro anos. Você não transforma aquilo em um lugar decente, para levar seus filhos para andar de bicicleta, e gostando da paisagem, em menos de dez anos – sei lá quanto tempo se leva para limpar aquilo. Sabia que a totalidade do esgoto de Guarulhos é despejada no Tietê? Tudo! Um milhão e meio de pessoas. É assustador. Esgoto in natura. Tem solução? Tem. Quanto tempo vai levar? Não dá para saber.
O senhor e o José Luiz Alquéres (presidente do Grupo Light e parceiro na ideia de formação da “megalópole brasileira”) têm conversado com os prefeitos das cidades?
Sim, temos conversado. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Alguma hora cai a ficha, as pessoas são simpáticas à ideia, mas até transformar essa simpatia em projeto mesmo, falta alguma coisa. Enquanto isso, vamos circulando a ideia.