Por Amália Safatle
Enquanto mal ou bem a agenda climática avança, a da biodiversidade continua obscurecida e perde em objetividade. Traduzi-la em termos econômicos é a saída para que ganhe corpo e voz
Outro dia, um biólogo do Ibama afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que, na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, “quatro ou cinco espécies de peixes têm potencial de se extinguir, mas assumimos esse risco”. Ele respondia a críticas feitas por ictiólogos à consistência técnica do estudo de impacto ambiental produzido para dar sinal verde ao empreendimento. E teria dito que, pior que a extinção, seria a construção de 25 termoelétricas movidas a combustível fóssil.
Sem agora entrar no mérito de que há uma série de alternativas menos impactantes que as termoelétricas para suprir energia no lugar de Belo Monte, o leitor corre o risco de suspeitar que os estudos de valoração econômica da biodiversidade estão avançadíssimos.
Pelo raciocínio acima, uma espécie de peixe equivaleria a aproximadamente cinco usinas termoelétricas… Noves fora e ironias à parte, nem os estudos estão assim apurados nem poderiam ser tão simplistas. Como descrito na reportagem à página 20, a perda de biodiversidade atingiu tal escala avassaladora que mal os cientistas conseguem compreendê-la, quem dirá dimensioná-la. Complexa, sistêmica, sofisticada e tênue, exige bem mais que um cálculo linear de causa e efeito.
Apesar disso, trabalhar seriamente na tradução desse universo multidimensional em miúdos econômicos parece ser a singela contribuição que está ao alcance da nossa sociedade capitalista para minimizar os estragos e evitar piores consequências.
A diversidade da vida é valiosa demais para que se ponha um número nela. Por outro lado, “pensá-la” em termos econômicos, ainda que reducionista, é uma forma – talvez a única – de que dispomos para nos aproximar de uma compreensão maior do problema e das soluções, dentro de nosso pequeno e limitado sistema de operar o mundo.
– A biodiversidade é meio “MasterCard”, não tem preço, mas ainda assim precisamos inserir uma vertente econômica na lógica de governo sobre essa questão – diz Maria Cecília Wey de Brito, secretária de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, para quem o assunto não tem sido devidamente incorporado nas políticas públicas.
No campo das ONGs, a constatação geral é a mesma. Clóvis Borges, da Sociedade de Pesquisa em Vida Silvestre e Educação Ambiental (SPVS), uma das mais atuantes organizações nessa área, traz a seguinte figura de linguagem econômica:
– Imagine uma máquina funcionando: de um lado entra a biodiversidade, de outro saem os serviços ambientais [1], gerando riquezas a partir da natureza. Quanto menor a diversidade, menor a riqueza gerada.
[1] Benefícios obtidos dos ecossistemas, como: serviços de provisão (alimentos, água, madeira, fibras e recursos genéticos), reguladores (controle climático, de enchentes, de doenças e da qualidade da água), culturais (benefícios recreativos, estéticos e espirituais) e de base (formação do solo, polinização e ciclagem de nutrientes).
Borges acredita que expor a questão dessa forma facilita a compreensão e o convencimento da sociedade sobre a necessidade de agir.
Enquanto isso, outra agenda ambiental – a climática – tem avançado a passos bem mais largos. Ganhou popularidade, visibilidade na mídia, adesão de diversas empresas na forma de programas para redução de emissões, metas a cumprir e, bem ou mal, mercados voluntários e oficiais para negociação de créditos. Uma das razões apontadas para esse avanço é justamente a sua tradução mais simplificada nos termos da Economia.
– Enquanto a natureza do problema climático se concentra em um único indicador, que é a relação entre a concentração atmosférica de gases de efeito estufa e a temperatura global, a biodiversidade, por definição, é complexidade – explica Carlos Eduardo Frickmann Young, o Cadu, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Por isso, Cadu defende que se construa um indicador de biodiversidade, ainda que a métrica abra mão da precisão em nome da conservação.
– O argumento de que a biodiversidade não permite comparações traz consequências práticas muito ruins. Além disso, qualquer medida será melhor que a usada hoje, que é simplesmente hectare de floresta.
Assim como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma média ponderada de saúde, educação e desenvolvimento econômico, ele sugere uma combinação de fatores como a quantidade de diferentes espécies viventes na área, a existência de endêmicas (espécies que só existem naquela região) e o grau de ameaça a que estão expostas.
Bad guy
Falar a língua do mercado não é a única vantagem que a agenda climática tem a seu favor. “Na campanha do clima, existe um bad guy, um vilão claramente identificado a se combater”, diz Rosa Lemos de Sá, secretária-geral do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio). É o gás de efeito estufa que, embora invisível, manifesta-se em desastres climáticos que vêm bater à porta, em um ritmo até mais acelerado do que se supunha.
– Já a biodiversidade é mais difusa, ela está presente em tudo. Suas perdas são cumulativas e de longo prazo, muitas vezes serão percebidas daqui a 20 anos ou mais – diz Rosa.
Mas estudos feitos recentemente começam a dar rosto e voz a essas perdas silenciosas. O terceiro Panorama Global de Biodiversidade (GBO-3, na sigla em inglês), relatório da Organização das Nações Unidas, expõe que a destruição de ecossistemas da Terra deve começar a afetar economias de vários países nos próximos anos. Segundo o relatório, vários ecossistemas estariam próximos de sofrer mudanças irreversíveis, como o desaparecimento rápido de florestas, a proliferação de algas em rios e a morte generalizada de corais.
Até o momento, a ONU calculou a perda anual de florestas entre US$ 2 trilhões e US$ 5 trilhões, número muito maior que os prejuízos causados pela crise econômico-financeira que sacudiu o mundo nos dois últimos anos.
Florestas cujo valor se torna mais palpável por meio da “moeda” do carbono. Segundo pesquisa [2] conduzida pelo professor Britaldo Silveira Soares-Filho, diretor do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, as áreas protegidas da Amazônia têm um potencial de evitar a emissão de até 8 bilhões de toneladas de carbono para a atmosfera até 2050. Isso equivale a um ano de emissões de gases do efeito estufa de todos os países juntos. “É uma cifra significativa que revela o papel da proteção das florestas no fortalecimento da posição brasileira nas negociações internacionais do clima”, conforme comunicado à imprensa.
[2] O estudo contou com a colaboração de 12 especialistas de várias instituições, entre elas o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Woods Hole Research Center e o WWF.
Embora qualquer floresta, por exemplo a de eucaliptos plantados, tenha capacidade de armazenar carbono, a riqueza biológica determina a sua maior resiliência. Quanto mais rica, mais “sustentável”. Isso porque “a floresta vive da floresta”, resume Fernando Veiga, coordenador de Serviços Ambientais na organização The Nature Conservancy (TNC).
Assim, embora na definição de Borges, da SPVS, a biodiversidade seja hoje “o primo pobre” da história, ela é quem é capaz de agregar valor ao carbono. O mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd), por exemplo, ganha o sinal de plus quando, mais que remunerar pela emissão evitada de carbono, conserva a biodiversidade e os ciclos de água da floresta (mais sobre Redd em entrevista desta edição).
Ao fazer a ligação entre clima e biodiversidade, o Redd ajuda a unir o que não devia ter sido separado, na visão de especialistas como Cadu Young:
– Não se pode fragmentar a sustentabilidade. Um erro da Convenção do Clima foi não colocar de início a biodiversidade em pauta, por meio das florestas. Agora, com o Redd plus, existe muito espaço para avançar nessa intersecção.
Até porque o sistema é um só e os seus componentes são estreitamente ligados. Por exemplo, a queima da floresta traz perdas à biodiversidade, que, empobrecida, reduz a resiliência dos sistemas naturais diante da mudança do clima. Assim, os sistemas biodiversos são vitais tanto para a mitigação como para a adaptação ao aquecimento global. “Demorou 20 anos para cair a ficha do clima. A biodiversidade não tem esse tempo”, afirma Pavan Sudhkev, coordenador do estudo The Economics of Ecosystem and Biodiversity (mais abaixo).
A necessidade de criar uma roupagem econômica para a biodiversidade não é constatação nova. Já era uma tônica das discussões da COP 8, realizada em Curitiba em 2006. “Nesses últimos anos, algumas iniciativas interessantes surgiram. Avançamos nessa linha, mas a passos de formiguinha”, avalia Peter May, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e diretor-adjunto da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira.
Mais foco, por favor!
Mas, com generalidades, não se vai chegar a lugar nenhum. Clóvis Borges identifica a falta de precisão como o grande problema da conservação da biodiversidade. É o famoso “do que exatamente estamos falando?” Ele entende que as ações voltadas para a biodiversidade têm de ser específicas, e não ser tratadas de forma genérica como “proteção ambiental” ou “sustentabilidade” [3].
[3] Segundo pesquisa da organização Union for Ethical Biotrade, das 100 maiores empresas de cosméticos do mundo – setor que depende fortemente da biodiversidade –, apenas 3% mencionaram o assunto de maneira explícita e detalhada em seus relatórios e websites. Mais da metade citou apenas “sustentabilidade”, de forma vaga.
– As empresas podem dizer que contribuem para a biodiversidade ao economizar luz, mas isso é falacioso. Embora haja uma relação indireta de causa e efeito, não necessariamente essa ação de determinada empresa impedirá a construção de uma nova hidrelétrica que teria impactos sobre a biodiversidade. Por isso, a iniciativa deve ser focada. As empresas precisam se perguntar: “O que estou fazendo além da minha agenda habitual em ações diretas em prol da biodiversidade?” – defende Borges.
Para ele, o problema é que empresas, governos e nem mesmo entidades voltadas para o assunto desenvolveram conceitos suficientemente técnicos para lidar com a questão: – A formação da sociedade é falha para a biodiversidade, desde o ensino, que aborda taxonomia (classificação de organismos vivos), mas não necessariamente atrelada à conservação. Há uma desconexão entre esses estudos e a aplicação prática, assim como entre negócios e biodiversidade, apesar de alguns avanços.
Rosa, do Funbio, relata que há cerca de dez anos as empresas não recebiam ninguém para falar de biodiversidade, ao passo que hoje já existe uma procura para fazer projetos.
Pode até ser um começo, mas o ponto é que ainda não foi posto um senso de urgência, na avaliação de Borges, um combativo defensor da causa.
De fato, a sociedade em geral se vê em uma certa zona de conforto, como se as perdas da biodiversidade fossem para sempre assimiláveis e administráveis. A espécie humana nunca viveu tanto e tão bem, com expectativa de vida crescente e mortalidade descendente, auxiliada por avanços tecnológicos da indústria e da medicina. Até vida já se fabrica em laboratório, como mostrou a equipe liderada pelo cientista Craig Venter na construção do primeiro ser vivente sintético.
Além disso, uma quantidade imensa de riquezas econômicas foicriada pela civilização, sucesso que se deu com base na expropriação da natureza, aproveitando o “ativo” e desconsiderando o “passivo” – as chamadas externalidades [4]. Era assim que as empresas, até pouco tempo, operavam totalmente. Mas são contas que não fecham do ponto de vista de ecossistema global, e um dia devem se apresentar.
[4] Estudo da consultoria Trucost concluiu que o custo das externalidades entre as 3 mil maiores empresas do mundo equivale a 33% do lucro total do grupo (US$ 2,25 trilhões/ano). Foram considerados principalmente uso da água e poluição do ar. Derramamento de petróleo não entrou no cálculo.
– Pode até ser que a espécie humana sobreviva sem a biodiversidade. Nós podemos até viver como ratos e baratas, comendo qualquer coisa – diz Borges. Mas não é isso que se almeja em termos de evolução.
Há um tom de desconforto na sua voz:
– O desconforto faz parte de quem trabalha na luta pela biodiversidade. Não tem como sentir-se confortável.
Caminhos diversos
Há iniciativas recentes que aliam biodiversidade, economia e o mundo dos negócios. Página22 mapeou algumas delas
Teeb – a economia da biodiversidade
“Você não pode administrar aquilo que não mede.” Com essa frase de apresentação no site teebweb.org, o The Economics of Ecosystem and Biodiversity (Teeb) se intitula como a maior iniciativa internacional para chamar atenção sobre os benefícios econômicos globais da biodiversidade e os custos de sua perda e degradação. Capitaneada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a iniciativa foi apresentada no Brasil em maio por Pavan Sukhdev, profissional oriundo do Deustche Bank e fundador de um projeto de contabilidade “verde” na Índia, chamado Green India State Trust.
O exemplo mais emblemático que Pavan usa é o da pesca. Devido à extração predatória, embora tenha havido aumento da capacidade pesqueira nos últimos anos, o volume pescado tem diminuído. Investimentos na pesca sustentável e o fim de subsídios perniciosos seriam capazes de reverter o quadro (mais em nota desta edição). O relatório The Economics of Ecosytems & Biodiversity está disponível para download aqui.
Avaliação setorial
Está em curso um estudo coordenado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com apoio de diversos grupos, denominado Importância Econômica e Social da Conservação da Biodiversidade e dos Serviços Ecossistêmicos no Brasil, América Latina e Caribe (tradução aproximada). Cadu Young, da UFRJ, e Peter May, da UFRRJ, estão trabalhando nele. Segundo May, o estudo apresenta um cenário business as usual, traça um cenário ideal e pretende calcular quanto custa passar do primeiro para o segundo. Os tópicos do estudo são: agricultura, floresta, pesca, hidreletricidade, assentados humanos e áreas protegidas. O resultado deve ser apresentado na COP 10, em Nagoya.
Forest Footprint Disclosure
Modelada no bem-sucedido Carbon Disclosure Project, essa ferramenta, que permite calcular a pegada florestal das empresas e orientá-las sobre como reduzi-la, foi lançada no ano passado, em Londres. A Fibria foi uma das empresas brasileiras que aderiram ao programa. O lançamento da etapa deste ano estava programado para 8 de junho em São Paulo (após o fechamento desta edição). Clique aqui e acesse o relatório, em inglês, com os resultados de 2009.
Certificação Life
Estão em fase de refinamento os critérios que definirão a pontuação das empresas para obtenção do selo Life, segundo Regiane Borsato. Ela é coordenadora técnica do Instituto Life, que lançou o programa no ano passado e conta com o apoio da ONU, do Funbio, da Fundação Avina e do MMA. O objetivo é incorporar práticas favoráveis à biodiversidade à gestão ambiental de organizações privadas ou públicas de diferentes portes e áreas de atuação. Entre as empresas que aderiram ao programa, estão Itaipu, O Boticário, MPX, Posigraf e Positivo Informática.
O regulamento pode ser acessado aqui e deve entrar em consulta pública este ano.
Servidão florestal
A iniciativa de uma nova empresa chamada Verdesa aponta para um potencial mercado de regularização fundiária – por meio do qual as propriedades rurais buscam entrar em conformidade com a lei, especialmente no cumprimento de Reserva Legal e no atendimento à Lei de Crimes Ambientais.
As pressões crescentes da sociedade e de financiadores como o BNDES, que atrela a liberação do crédito à legalização dos agricultores, criaram uma demanda por soluções financeiras e operacionais, como a da servidão florestal, explica Philippe Lisbona, que saiu do grupo de investimentos Stratus para fundar a Verdesa. A servidão é um mecanismo pelo qualo proprietário rural que não atende aos limites mínimos de Reserva Legal pode compensar esse déficit em terras de outro proprietário.
A compensação deve ser feita dentro da mesma microbacia ou bacia hidrográfica e no mesmo bioma. Estruturada durante os últimos dois anos, a Verdesa anunciaria em breve os dois primeiros contratos temporários de servidão florestal no Brasil – um no estado de São Paulo e outro no Paraná. A novidade está no caráter temporário do negócio, uma vez que contratos permanentes de servidão já foram realizados por intermédio da TNC, com a qual a Verdesa possui termos de cooperação técnica.
Lisbona explica que o contrato temporário é uma solução para os casos em que o proprietário em busca da regularização não possui capital suficiente para a compra definitiva de uma terra.
Assim, pode arrendá-la ou mesmo fazer um leasing – e assim pagar aos poucos pela propriedade. É uma saída conveniente também diante das incertezas legais que rondam o Código Florestal, uma vez que há propostas na mesa voltadas para a sua modificação. O principal projeto de mudança é relatado pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP).
“O importante é que vamos procurar terras para realizar a servidão que configurem ganhos ambientais, buscando áreas prioritárias para a conservação e em bacias hidrográficas estratégicas”, diz Lisbona. Sua intenção é trabalhar também com serviços ambientais, como água, carbono e manejo florestal.
Biocomércio ético
Mais de 20 empresas já aderiram à União para um Biocomércio Ético (UEBT), associação internacional cujo papel é promover o comércio sustentável e ético de produtos da biodiversidade. No Brasil, tem como associados a Natura e a Raros, empresa de óleos essenciais que trabalha com a biodiversidade da Caatinga. O Barômetro da Biodiversidade, pesquisa realizada pela UEBT, apontou em 2010 que o Brasil, entre os países pesquisados (os outros são Alemanha, França, Reino Unido e EUA), é o que apresenta maior entendimento sobre o assunto. Das pessoas ouvidas no Brasil, 94% já ouviram falar de biodiversidade e 47% a definiram corretamente. E as mulheres acertaram mais.
Confira, na galeria ao lado, slides da apresentação de Pavan Sudhkev.