Se há uma cidade nos Estados Unidos que guarda as marcas indeléveis do século XX e ao mesmo tempo carrega a promessa de renovação urbana no século XXI, ela é, sem dúvida, Detroit. Para muita gente, Detroit é apenas uma cidade inóspita, sede do que foi a poderosa indústria automobilística americana. Para outros, é símbolo maior da decadência urbana nos EUA, exemplo perfeito das cidades que encolhem, como descreveu a Regina Scharf. Eu tenho uma conexão especial com Detroit, onde – acredite se quiser – passei minha lua-de-mel há mais de dez anos. Por isso me alegram imensamente as recentes notícias de que há um movimento em gestação na ex-Motor City e que de seus detritos podem nascer tesouros.
À margem dos Grandes Lagos e próxima do que foi a maior região mineradora de cobre e ferro nos EUA – a Península Superior de Michigan, cuja produção atingiu o pico nos anos 20 e hoje é quase nula – a cidade floresceu no fim do século XIX e início do seguinte com o crescimento de várias indústrias, em especial a automobilística. Hordas migraram do Sul dos EUA para trabalhar nas montadoras, tornando Detroit um centro de atividade sindical e a quarta maior metrópole americana. A cidade também recebeu milhares de imigrantes estrangeiros e na década de 60, época de crescente tensão racial, foi palco de conflitos. Com uma extensa rede de estradas e muitos carros à disposição, a maioria dos habitantes brancos mudou-se para os subúrbios, alguns dos quais hoje estão entre os mais afluentes do país. Com eles foi-se boa parte da receita dos impostos e seguiram-se a decadência de infra-estrutura e serviços públicos e o aumento da violência.
Com a recente crise financeira e a bancarrota das grandes montadoras – depois do pacote estatal que a salvou, a GM hoje é conhecida como Government Motors –, Detroit é um sombra de seu passado. A taxa oficial de desemprego em junho foi de 14,3%, mas estima-se que na prática beire os 30%. O encolhimento da população – hoje em torno de 900 mil na região metropolitana – e o abandono de várias casas e prédios deixa espaço para que a natureza avance. Lotes inteiros sem uso aos poucos tornam-se uma pradaria urbana e casas voltam ao estado “selvagem”, como documentou o fotógrafo James D. Griffioen.
Há quem veja nesse processo a transformação de Detroit em uma tela em branco, pronta para ser desenhada novamente. E iniciativas brotam. Nos últimos anos, com poucos supermercados na região central, Detroit desenvolveu uma vibrante comunidade dedicada à agricultura urbana. Com tanto espaço e prédios abandonados, ficou barato adquirir imóveis na cidade e vários artistas – inclusive de outras partes dos EUA – estão se mudando para Detroit para abrir estúdios, galerias e espaços criativos.
Por 500 dólares, o designer de jogos eletrônicos Jerry Paffendorf comprou um terreno no centro de Detroit e lançou o projeto Loveland, em que realidades física e virtual se misturam para engajar o maior número de pessoas no futuro de Detroit. A parte física envolve a venda de mínimas parcelas do terreno – um square inch, ou polegada quadrada, equivale a 6,45 centímetros quadrados e custa um dólar. Os “inchvestors” passam a fazer parte de uma comunidade virtual cujo objetivo é aprender sobre a cidade e decidir sobre seu futuro. “Queremos colocar Detroit de volta na rede”, diz Paffendorf. Ele promete que a renda com a venda de inches em Detroit será destinada a projetos artísticos e sem fins lucrativos na cidade.
No lugar das grandes corporações que dominaram a cidade em décadas passadas, hoje Detroit tem uma forte cultura faça-você-mesmo. Os cidadão arregaçam as mangas para executar serviços que a prefeitura não dá conta, como a manutenção de parques e praças e a demolição de casas abandonadas. No começo de agosto, Detroit recebeu a Maker Faire, um festival voltado a inventores e criadores. Um plano que começou a ser colocado em prática no ano passado prevê o estreitamento de ruas e a criação de ciclovias para formar um corredor não-motorizado ligando os principais pontos da cidade. Uma primeira fase do projeto foi concluída com a reabilitação da Dequindre Cut, uma ciclovia e corredor verde.
Em bicicletas e a pé, milhares de pessoas invadiram as quase desertas ruas de Detroit em julho, quando a cidade sediou a segunda edição da versão americana do Fórum Social Mundial. “Outro mundo é possível, outros EUA são necessários, outra Detroit está acontecendo” foi o slogan do evento. Muito do que acontece hoje em Detroit é resultado de seu declínio – e há que lembrar que problemas profundos como a desigualdade racial permanecem. Agricultura, arte e iniciativa não são suficientes para reverter décadas de declínio industrial, apontam os críticos, e quiçá eles estejam certos. Talvez o que venha a renascer das cinzas seja algo completamente diferente.