Por Amália Safatle
Movidas pela ideia de risco ou de oportunidade, cada vez mais companhias se posicionam em relação à biodiversidade. Com peso de até 80% na economia, seu poder de influência será essencial para colocar em prática as decisões tomadas em nível internacional
Um elo se parte e a cadeia não será mais a mesma. Muitos elos se rompem e o sistema perde força, até definhar por completo. Na economia e nas empresas, qualquer semelhança com os ecossistemas não é coincidência. Em nível microeconômico, as empresas, ainda que não percebam, operam sob as leis dos sistemas naturais. Queiram ou não, suas etapas de pesquisa, produção e comercialização são comunicantes e interdependentes – entre si e com o mundo exterior.
Assim, quanto mais coesos estiverem seus elos internos e externos, mais completo e integrado for seu ciclo e mais diversificada sua atuação, tanto mais resistentes as empresas estarão aos riscos e às ameaças de toda sorte. O mesmo vale para a macroeconomia.
Embora óbvia, essa não é a visão mais usual no meio econômico, que tradicionalmente atua como se vivesse descolado do mundo natural e de seus ciclos – e como se assim pudesse sobreviver a longo prazo. Mas, ultimamente, mudanças importantes têm ocorrido com relativa rapidez nas discussões sobre o valor do capital natural nas contas nacionais e no modelo mental das empresas, que, movidas pela ideia de risco ou de oportunidade, despertam para um “fazer negócios” levando em conta cenários como conservação da biodiversidade e equilíbrio climático. O que não falta são os alertas.
Ban Ki-Moon, secretário-geral das Nações Unidas, foi enfático ao afirmar na Assembleia Geral da ONU sobre biodiversidade em Nova York, ocorrida no final de setembro: “Estamos quebrando a nossa economia natural”. Para estancar a perda de biodiversidade, ele defende um pacote de socorro semelhante ao adotado para lidar com a última crise financeira mundial.
“Permitir que (nossa infraestrutura natural) decline é como jogar dinheiro pela janela”, afirma. Isso porque os ecossistemas, cuja resiliência depende da diversidade biológica, geram trilhões de dólares e são o meio de subsistência de milhares de pessoas em todo o mundo, segundo informações do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Assim, Ban relaciona a perda da biodiversidade diretamente ao declínio econômico e ao aumento da pobreza.
Ao obter pela primeira vez uma valoração da natureza e seus ativos, o estudo A economia dos ecossistemas e da biodiversidade (Teeb, na sigla em inglês), lançado este ano, é um verdadeiro marco, capaz de unir o que o homem não devia separar: a conservação ambiental e o mundo da economia e dos negócios.
Pavan Sukhdev, que se licenciou por dois anos e meio do banco de investimentos onde trabalha – o Deutsche Bank –, para produzir o relatório Teeb, contou a Página22 suas expectativas sobre a décima Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a COP 10, que se realizará em Nagoya, de 18 a 29 de outubro.
Um dos pontos positivos que espera é justamente um acordo para avançar na contabilidade de ecossistemas. “Isso significa incluir o capital natural – que é o maior ativo de uma nação – no balanço dos países e passar a contabilizar perdas” (leia aqui a íntegra da entrevista com Sukhdev).
Com uma série de temas intensos em pauta (confira o quadro “Agenda intensa em Nagoya” ao final desta reportagem), a participação do setor econômico será ainda mais fundamental. “Esta conferência terá uma agenda mais importante que a COP anterior”, avalia Braulio Ferreira de Souza Dias, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente.
Um dos principais desafios será chegar a um acordo sobre metas mais precisas e ambiciosas para 2020 do que as que haviam sido assumidas para 2010, e não foram alcançadas. Segundo Sukhdev, sem colaboração das empresas, que respondem por nada menos que 70% a 80% da economia, os governos não conseguirão cumprir as novas metas.
“Temos insistido muito com o setor privado para a necessidade de serem mais proativos. E vemos realmente uma mudança de comportamento, principalmente das empresas maiores, que enfrentam maior competição no cenário internacional”, afirma Dias.
O secretário atribui boa parte dessa mudança à maior exigência dos consumidores, o que inclusive leva as empresas a olhar melhor para sua cadeia de suprimentos com o objetivo de identificar a origem das matérias-primas que estão utilizando. “No passado, não interessava a origem, se era ilegal, se era insustentável, importava apenas o preço”, diz.
O Walmart, como se verá ao final desta reportagem, é exemplo de uma empresa que passou a prestar atenção nisso, atento aos riscos institucionais e comerciais de figurar na ponta de uma cadeia que pode trazer no seu rastro o desmatamento [1] ilegal da Amazônia, a superexploração da pesca, o trabalho escravo.
[1] O Walmart foi citado no relatório A Farra do Boi, lançado em 2009 pelo Greenpeace, como uma das empresas que comercializavam produtos pecuários obtidos com desmatamento ilegal.
Hoje a empresa é uma das líderes – ao lado de Natura, Alcoa, Vale, Instituto Ethos e outras organizações [2] – do Movimento Empresarial pela Biodiversidade (MEB). Movimento este que, até 23 de setembro, já havia arregimentado cerca de 50 empresas e associações. Nesta data, elas assinaram uma carta de compromisso público, pela qual assumem responsabilidades e fazem propostas ao governo brasileiro para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade (veja aqui a íntegra da carta e a lista das signatárias).
[2] São elas: Aberje, Conservação Internacional, Gvces, Imazon, Ipê, União Internacional para o Biocomércio Justo e WWF.
Em paralelo, articulava-se mais um movimento, este capitaneado pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), com apoio da Petrobras. Juntamente com a Editora Abril, organizaram no final de agosto o Fórum Biodiversidade e a Nova Economia – com participação do Ministério do Meio Ambiente e a presença de representantes de empresas, entre as quais Natura, CPFL e Camargo Corrêa.
“Esse movimento visa fortalecer o posicionamento brasileiro no cenário internacional de defesa e uso sustentável da biodiversidade”, informa a Petrobras, por meio de sua assessoria de imprensa.
Ao contrário de companhias cujo negócio depende diretamente dos ativos da biodiversidade, a Petrobras vê o apoio à causa como uma forma de atender ao que a sociedade espera cada vez mais das empresas: responsabilidade social e ambiental. Principalmente daquelas com empreendimentos impactantes ao meio ambiente, como exploração de petróleo, energia elétrica e mineração. Ou seja, há uma imagem institucional em jogo.
A fim de melhor gerir esse tema, a Petrobras informa que criou em 2006 uma coordenação de biodiversidade, responsável por mapear áreas protegidas, sensíveis e vulneráveis, sistematizar a avaliação de impactos, e definir planos de recuperação para as áreas degradadas.
Mais que oportunidade de negócio ou gestão de risco, o diretor de sustentabilidade da Natura, Marcos Vaz, vê na questão da biodiversidade uma forma de garantir a longevidade da empresa, a sua existência a longo prazo. Sem serviços ecossistêmicos, não há ambiente para nenhum tipo de negócio florescer e se manter.
A seguir, conheça algumas experiências empresariais no campo da biodiversidade.
De ponta…
“Aqui trabalhamos com a área nobre da pesquisa: o pensar”, diz Eduardo Setti, diretor da Ybios, empresa que atua no início da cadeia dos negócios da biodiversidade: a pesquisa e o desenvolvimento.
É deste pensar que partirão os projetos de pesquisa, a busca de parcerias, as idas ao campo, as prospecções, até o fornecimento de insumos para as indústrias. Formada pelos acionistas Natura, Centroflora e Grupo Orsa, a Ybios é tocada por uma equipe enxuta e jovem, da qual três integrantes têm pós-doutorado.
O seu maior campo de atuação é a cosmética, como envelhecimento e tratamento da acne, além de anti-inflamatórios. No bioma das Zonas Costeiras, os pesquisadores vão buscar ativos da biodiversidade para criar insumos de fotoproteção, dada a alta incidência solar. Das condições extremas que o Cerrado e a Caatinga impõem à vegetação também nascem soluções genéticas preciosas para os bionegócios.
Enquanto no Brasil a oferta é pródiga, a demanda no mundo é crescente. Segundo Setti, da Ybios, empresas e consumidores, de forma geral, têm buscado produtos mais naturais, como revela relatório da Global New Products Database, que monitora tendências de consumo e inovação.
A Ybios tem razões para se concentrar na cosmética, uma vez que a taxa de sucesso é maior que no campo farmacêutico. Setti refere-se uma estatística da Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, segundo a qual, de cada 5 mil compostos com potencial para virar um medicamento, apenas 1 realmente chega ao mercado.
Mas, seja o campo que for, a pesquisa e o desenvolvimento de insumos e produtos da biodiversidade encontram pelo caminho uma série de obstáculos de ordem legal, relacionados a como evitar a biopirataria e repartir de maneira justa os benefícios oriundos da exploração do patrimônio genético com aqueles que tradicionalmente detêm o conhecimento sobre esses recursos – uma complexa questão que se traduz na sigla ABS: Access and Benefit Sharing.
“A gente reconhece que a legislação sobre ABS tem dificultado a pesquisa”, diz Braulio Dias, do MMA. “E claro, sem pesquisa, não haverá investimento em novas tecnologias, comercialização de produtos da biodiversidade, nem repartição de benefícios.”
Estão em jogo nessa questão muitos conflitos de interesses: os direitos de populações tradicionais e povos indígenas, os direitos de patentes das empresas, o interesse econômico e o da comunidade acadêmica em fazer suas pesquisas. Assim, há muita desconfiança recíproca. “Junte-se a isso uma situação inicial com pouco conhecimento sobre a temática, e o resultado é que a primeira geração da legislação sobre ABS ficou burocrática, cheia de exigências e de implementação um tanto custosa”, diz o secretário.
Esta “primeira geração” no Brasil se dá na forma de uma medida provisória baixada em 2001. Hoje, o Executivo trabalha em um projeto de lei que será enviado ao Congresso Nacional para votação. Mas esse caminho, nas palavras de Dias, tem-se demonstrado um pouco difícil, pela falta de consenso dentro do próprio governo. “O setor agrícola possui propostas e expectativas diferentes daquelas da área ambiental, o que tem dificultado fechar esse acordo. E, ao chegar ao Congresso, não deverá ser aprovada de imediato, porque é uma legislação complexa. Mas a gente espera que isso leve a médio prazo à aprovação de um novo marco legal que possa reduzir um pouco a burocracia e definir melhor o que constitui biopirataria.”
Dias explica que uma das maiores dificuldades atuais é a falta de definição de biopirataria na Lei de Crimes Ambientais, o que leva a diferentes interpretações. Com isso, as empresas ficam inseguras para explorar a biodiversidade, com receio de alguém acusá-las de não cumprir adequadamente a legislação.
Enquanto o projeto de lei não é aprovado, o secretário diz que a própria MP prevê alguns mecanismos que poderiam ser mais utilizados para dar maior agilidade à pesquisa. Um deles é a possibilidade de credenciamento de instituições com a finalidade de “terceirizar um pouco” as funções do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen) e do Departamento de Patrimônio Genético. Já foram credenciados o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas Dias afirma que mais instituições poderiam ajudar a desafogar a quantidade de processos tramitados no MMA.
Outra possibilidade prevista na MP para agilizar os processos é o uso da licença especial. Assim, em vez de conceder autorização de pesquisa para cada expedição ou projeto, autorizam-se todas as atividades de uma instituição – é o caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que já possui tal licença.
Setti, da Ybios, avalia que o atual ambiente para pesquisa está melhor que no passado. Como exemplo disso, ele cita a desoneração tributária de subvenções do governo destinadas ao fomento das atividades de pesquisa e inovação tecnológica nas empresas, prevista pela MP 497/2010. Menciona também as linhas de financiamento a baixo custo ou a fundo perdido. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por exemplo, disponibilizou, em 2010, R$ 80 milhões somente para desenvolvimento de produtos que tenham origem na biodiversidade.
Uma das maiores dificuldades que a legislação atual impõe, relata Vaz, da Natura, é o chamado acordo prévio entre a empresa e as comunidades detentoras do conhecimento. Ou seja, é preciso estipular os detalhes da repartição dos benefícios sem a empresa saber se a pesquisa vai dar certo, sem saber se determinado determinado ativo genético apresenta a propriedade que se busca, sem saber se ela apresenta efeito danoso, e sem saber se existe em quantidade suficiente para uma exploração comercialmente sustentável, cuja exploração não esgote os recursos.
Segundo ele, como a natureza de qualquer empresa é avessa ao risco, elas são desestimuladas a embarcar nesse tipo de investimento. “Ou pior: acabam não seguindo os preceitos da CDB. Por isso, queremos um marco regulatório que estimule a inclusão do setor privado”, afirma Vaz.
Com o marco repleto de lacunas, Vaz conta que a Natura desenvolveu sua linha de produtos da biodiversidade com base em um processo de tentativa e erro, lidando com um tema com muito conhecimento científico por construir. “Caiu a castanha no chão. Quanto daquilo eu posso usar e quanto eu deixo? Quanto a natureza é capaz de repor e em que ritmo? No dia a dia, a gente percebe que poderia ter feito algumas coisas de maneira diferente. Aprendemos muito durante o processo”, diz.
…a ponta
O Walmart torna a biodiversidade tangível para o cliente: assim Daniela de Fiori, vice-presidente de assuntos corporativos e sustentabilidade, define a atuação da empresa em relação ao tema. Nos 50 mil a 60 mil itens de produtos que a loja vende, o consumidor se relaciona, na ponta da cadeia, com aquilo que a natureza pode oferecer. A questão é como comercializar cada vez mais itens que durante a sua produção não causaram prejuízos à biodiversidade e ao clima, e nem superexploraram a mão de obra.
O maior desafio é puxar o fio dessa meada. Ou seja, rastrear o caminho que esses produtos traçaram até chegar às prateleiras. Por meio do link walmart.rastreabilidadeonline.com.br, por exemplo, é possível identificar a origem da carne. Assim, o cliente pode verificar se o local da criação do boi não compactua com o desmatamento ilegal da Floresta Amazônica. “No futuro, teremos toda a linha de carnes rastreada”, diz Daniela.
Outro desafio é o que ela chama de “democratizar a sustentabilidade”, ou seja, como buscar soluções capazes de atender ao grande público, além de apenas alguns nichos. “Orgânicos, por exemplo, são um nicho. Não é possível alimentar o mundo somente com orgânicos”, argumenta.
Além dos acordos assinados contra o desmatamento ilegal na produção agropecuária, Daniela cita como políticas de maior alcance o compromisso assumido com a cadeia do pescado, os acordos para menor uso de embalagens nos produtos e para redução do fosfato nos detergentes, e o pacto contra o trabalho escravo.
Já é um começo para uma cadeia que não pode ter fim.
_________________________
Agenda intensa em Nagoya
Elo vital entre a biodiversidade e o investimento do setor privado, o Acesso e Repartição de Benefícios será um dos mais importantes temas em discussão na COP 10. Mas outras questões também devem fazer com que essa Conferência tenha uma agenda intensa e não menos polêmica. Uma delas é a aprovação um novo Plano Estratégico para a CDB, voltado para os próximos dez anos, definindo novo conjunto de metas globais para biodiversidade. Segundo Braulio Dias, secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, espera-se aprovar um plano de metas para compromissos financeiros e chegar a um acordo sobre mecanismos e meios de implementação – em particular com relação à tecnologia e à capacitação em países em desenvolvimento, a fim de que estes possam atingir as metas.
Também será negociado um adendo ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, para tratar das regras sobre responsabilidade e compensação no caso de dano ambiental causado pelo mau uso de transgênicos. Além disso, haverá discussões de temas como os biocombustíveis, a questionada fertilização de oceanos e a relação entre biodiversidade e mudança do clima.
Os interesses dividem-se basicamente em dois grupos: o dos países desenvolvidos e o dos megadiversos, liderado pelo Brasil e composto por mais 16 membros: África do Sul, Bolívia, China, Colômbia, Costa Rica, Equador, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru, Quênia, República Democrática do Congo e Venezuela. Juntos, esses 17 países abrigam mais de 70% da biodiversidade do planeta e são históricos provedores de recursos genéticos.
Mais sobre as COPs em:
O Plano Estratégico firmado em 2002
Informações sobre o não cumprimento das metas (o estudo completo será apresentado na COP 10)
A lista dos países participantes e signatários da CDB
O documento do Ministério das Relações Exteriores sobre pontos de interesse do Brasil
As decisões tomadas em cada uma das COPs
Informações sobre biodiversidade trocadas em miúdos e com bom humor