Os problemas do uso do solo na região subvertem a lógica mais elementar. Para descobrir as soluções, é preciso seguir os fios que formam esse novelo e impedem seu pleno desenvolvimento
Nos tempos míticos, a Frígia – no território conhecido como a Ásia Menor, hoje na região central da Turquia – foi governada por Górdio, um rei que ficou famoso por inventar um nó tão elaborado que o Oráculo de Apolo ofereceu seu trono a quem conseguisse desatá-lo.
O nó permaneceu invicto por 500 anos até que, em 334 a.C., Alexandre, o Grande, decidiu ver o prodígio e, após passar um bom tempo tentando resolvê-lo, sacou a espada e liquidou a questão com um golpe preciso. Em certa medida, a conservação da Amazônia é o nó górdio de nossa geração. Não que estejamos advogando que a solução virá no fio da espada – nada de bom viria disso! –, mas precisamos de soluções disruptivas. Especialmente com um furacão se armando no horizonte.
Há poucas semanas, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) publicou um relatório chamado Perspectivas Agrícolas 2011-2020, no qual prevê que as commodities agrícolas vão ficar nas alturas pela próxima década. Considerando- se a forma torta como o Código Florestal vem sendo debatido, a projeção de alta no preço dos alimentos dá aos defensores da produção a todo custo munição fresquinha com a qual abater a oposição.
Plantando nos vazios
Acontece que há vários anos circula pelo Planalto a tese de que dá para multiplicar a agricultura brasileira sem avançar – ainda mais – sobre a vegetação nativa. Bastaria colocar as áreas já desmatadas para produzir de verdade. De tão popular, essa tese virou premissa também do Programa de Produção Sustentável de Óleo de Palma lançado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em maio do ano passado.
Embora por aqui seja considerado um produto de importância menor, o óleo de palma (nada mais, nada menos que azeite de dendê) corresponde a quase um terço do mercado mundial de óleos vegetais.
Mesmo assim, segundo conta o técnico do Departamento de Cana-de-Açúcar e Agroenergia do Mapa, João Abreu, o programa federal resolveu limitar a expansão dessa cultura às áreas aptas ao plantio que tivessem sido declaradas antropizadas pelo Prodes antes de 2007.
Com isso, chegou-se a quase 32 milhões de hectares – a maioria deles na Região Norte –, nos quais a palma poderia ser plantada sem derrubar uma árvore. Existe até um projeto de lei (PL nº 7.326/10) que pretende proibir o plantio fora dos limites determinados pelo Zoneamento Agroecológico.
Esse exemplo reforça a ideia de que usar áreas subutilizadas para aumentar a produção agrícola é do mais elementar bom senso. Logo de cara temos 24,1 milhões de hectares disponíveis. Segundo o IBGE, esse é o tamanho da área da Amazônia Legal desmatada até 2002 e que foi simplesmente abandonada sem uso produtivo. Isso representa mais ou menos um terço de toda terra antropizada na região até aquele ano.
Embora tenham quase uma década, os dados só foram divulgados pelo instituto no começo do mês passado e devem compor o primeiro conjunto de uma base de dados que, até 2014, vai permitir a comparação de dados sobre geologia, relevos, solos e vegetação do país inteiro.
Essa é só a proverbial ponta do iceberg. Conforme ressaltado pela reportagem “Sr.(a). Presidente” (edição 45), a produtividade da pecuária brasileira beira o mau gosto.
Um levantamento publicado pelo professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), Gerd Sparovek, indica que, do universo de 850 milhões de hectares do País, o setor agropecuário ocupa 275 milhões, dos quais 211 milhões são pastos. Levando-se em conta que o rebanho bovino brasileiro está em 205 milhões de cabeças, temos uma ocupação média de 0,97 cabeça por hectare. É muito pouco. Uma elevação modesta para, digamos, 1,5 cabeça liberaria 74,5 milhões de hectares para a lavoura.
A pergunta é: por que isso não acontece?
“É a economia, estúpido”
“Tem a ver com a lógica da reprodução do capital no campo”, opina o secretário de Desenvolvimento Rural Sustentável, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Roberto Vizentin. Ele reconhece que há contradições entre o bem-intencionado discurso de crescer sobre as áreas improdutivas e a persistência do avanço da fronteira agrícola. “A FAO fez projeções muito promissoras para o setor agrícola. Nesse sentido, acho até compreensível que apareça essa ideia de incorporar novas áreas, afinal, esse tem sido o modelo hegemônico. Acontece que, na verdade, desmatamos áreas o bastante para mais que dobrar a produção”, pontua, ressaltando que ainda falta uma política agrícola realmente adaptada ao bioma amazônico.
Na falta desta, tudo vira uma questão de arbítrio dos custos. “Sai mais barato desmatar uma área nova do que investir em produtividade”, resume o coordenador de campanhas do Greenpeace, André Muggiati. O Greenpeace desempenhou papel fundamental para desvendar as conexões entre o crescimento da pecuária brasileira e o desmatamento na Amazônia. O relatório Farra do Boi, publicado em junho de 2009, colocou os frigoríficos brasileiros em uma saia justa ao apontar que o gado tinha sido o fator individual mais importante para que o ritmo do desflorestamento chegasse a indecorosos 27. 700 quilômetros quadrados em 2004.
Diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), André Nassar vai nessa mesma direção ao afirmar que, colocados em uma curva, o desmatamento e o crescimento do rebanho brasileiro “são quase irmãos gêmeos”. “Eles cresceram em ritmos parecidos até 2005 e, depois, começaram a cair”, analisa, acrescentando que o desmatamento funciona como uma espécie de salvaguarda à ineficiência dos criadores amazônicos ao segurar os custos de produção lá embaixo. “A pecuária na Amazônia era muito barata, porque seu único investimento era abrir as áreas e ainda dava para vender a madeira para se financiar”, completa.
Explorando dessa forma os recursos ambientais, os criadores conseguem se capitalizar e viabilizar um modelo de pecuária que consiste em deixar a boiada solta pelo pasto. Aumentar a produção? Basta abrir novas áreas! E, mesmo que o solo da floresta perca fertilidade com rapidez, isso não vem a ser um problema, porque o produtor acumula um patrimônio considerável na forma de terras que compensa a perda de faturamento.
Para dar uma ideia de quanto a terra pode render, dados da consultoria AgraFNP reproduzidos em um estudo do Icone informam que, no estado do Acre, um hectare de floresta saltava de R$ 185 para R$ 2.400 assim que era convertido em pasto – uma valorização de nada menos que treze vezes. Comercialmente falando, “fabricar” e “estocar” áreas subutilizadas na Amazônia Legal é um negocião.
Enquanto essa (ir)racionalidade econômica se mantiver, será difícil quebrar o ciclo vicioso. Nassar, contudo, vê alguns sinais animadores. Depois de mais de uma década crescendo, o rebanho brasileiro começou a se estabilizar, e isso diminui a pressão para a abertura de novas áreas – o que, somado aos avanços recentes na fiscalização dos grandes desmatamentos via satélite, ajuda a explicar por que o ritmo da devastação despencou para menos de 6,5 mil quilômetros quadrados ano passado. “Quando seu rebanho para de crescer, como pecuarista você só vai ganhar mais dinheiro se produzir mais”, comemora.
Se é mesmo esse o caso, Muggiati aponta que há um bocado de espaço para avanços, desde que haja os incentivos corretos – como financiamento e assistência técnica. “No Acre, a Embrapa desenvolveu um mecanismo de rotação de pastagens em que a produtividade chega a três cabeças por hectare”, aponta o ativista.
Contudo, Vizentin afirma que vamos continuar dando cabeçadas enquanto não encontrarmos uma forma de valorizar a floresta em pé. “Não vamos conseguir fazer a transição para esse novo modelo sem viabilizar a parte econômica”, pontua, enumerando um portfólio de ações nesse sentido que vai desde novos modelos de agricultura tropical, ações de manejo florestal, estruturação de cadeias extrativistas até a viabilização de projetos de pagamento por serviços ambientais (leia mais ao final da reportagem).
Propriedades fundamentais
Mas não para por aí. Em larga medida, esse sistema de produção de terras ociosas funciona no vácuo deixado pela regularização fundiária. O fato é que ninguém sabe precisamente quem é dono do que na Amazônia Legal e isso turbina a grilagem de terras. Sem a titularidade definitiva, fica difícil estimular os agricultores a investir em propriedades que, no fim das contas, podem acabar sendo tiradas deles a qualquer momento.
Para tentar atacar o problema, no começo de 2009 o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou o Programa Terra Legal, que pretende regularizar propriedades de até 1.500 hectares em 400 municípios amazônicos em uma área total entre 480 mil e 500 mil quilômetros quadrados. A ideia é cadastrar, georreferenciar e legalizar as propriedades dessa região, informa a secretária em exercício do programa, Shirley Nascimento.
Ela própria reconhece os percalços criados pelo gigantismo da iniciativa. “A primeira chamada para empresas de georreferenciamento foi de 100 mil quilômetros lineares. Cerca de 70% das empresas não deram conta do volume de trabalho”, diz. Mesmo assim, a secretária garante que já tem resultados positivos. “Já temos 90 mil propriedades cadastradas, 15 mil medidas e, há pouco tempo, lançamos uma segunda chamada para o georreferenciamento de 143 mil quilômetros lineares”, comemora. Com isso, ela espera encerrar o ano com 50 mil propriedades medidas e 20 mil títulos de posse entregues.
Os números grandes impressionam, mas, nas contas do ministério, as 90 mil propriedades cadastradas representam cerca de 110 mil quilômetros quadrados. É pouco mais de um quinto da meta do programa.
Regularizar a situação da terra na Amazônia vai bem além do que resolver um problemão de ordem burocrática. A informalidade é um hub no qual se conectam vários dos entraves ao uso racional da terra. Sem a posse, por exemplo, os agricultores não têm como acessar financiamentos bancários e programas governamentais – o Pronaf , por exemplo – que poderiam ter um impacto significativo na realidade da região. Sem poder investir em melhorias, cedo ou tarde esses agricultores cedem à tentação de voltar-se para alternativas na ilegalidade.
Isso sem contar que, na falta de um mapa que diga quem é dono do que, fica impossível atribuir responsabilidades para quem desmata além da conta. Com a regularização, isso acaba. “O Sipam faz um relatório bimestral que nos permite saber se tem alguém desmatando dentro das áreas já regularizadas”, explica a servidora.
Corações e mentes
Há outro fator pouco lembrado, mas fundamental para que qualquer plano seja bem-sucedido na Amazônia: conquistar a simpatia e a adesão da população local.
Embutido no pensamento de muitos ambientalistas há uma premissa que não agrada a quem vive às margens das florestas – a de que essas populações precisam matar no peito os custos ambientais do desenvolvimento econômico alheio e preservar a natureza que os outros devastam.
Autor de um projeto de serviços ambientais que conseguiu a proeza de unir as bancadas ambientalistas e ruralistas, o ex-deputado federal e atual secretário da Agricultura, Pecuária e Regularização Fundiária de Rondônia, Anselmo de Jesus, exaspera-se com a ideia de que “um estado tem de preservar pelo outro e um país tem de preservar pelo outro”. “O Sul e o Sudeste desmataram tudo e a Amazônia é que terá de pagar? É injusto!”, polemiza, acrescentando que o pagamento por serviços ambientais pode ajudar a resolver o impasse.
Oferecer alternativas claras e sérias de inserção econômica para que essas pessoas possam melhorar seus padrões de vida – e não apenas mantê-las na faixa da subsistência – é um ponto nevrálgico sem o qual as batalhas políticas em nível local podem reverter todos os ganhos quo movimento ambientalista já dava por consolidados.
Um caso recente é o Zoneamento Econômico-Ecológico de Mato Grosso, que, segundo o Ministério Público Estadual, eliminou mais de 85% das áreas protegidas mato-grossenses.
“Temos uma visão romantizada da vida nas comunidades do interior da Amazônia. Há pouco estive em Nova Ipixuna, onde visitei o Assentamento Agroextrativista de Piranheira [1] , e o que vi lá é que essas pessoas querem mais agilidade, agricultura mecanizada, projeto de farinheira… era essa a pauta do Zé e da Maria. Precisamos ampliar o horizonte do que queremos fazer das áreas da Amazônia”, diz Vizentin, do MMA.
[1] Assentamento que se tornou notoriamente trágico depois do recente assassinato do casal de líderes extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva em 24 de maio, no Pará
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Pagamento por serviços ambientais: uma saída com longo caminho pela frente
Monetizar os serviços que a natureza presta é uma das tentativas de fazer o sistema econômico ter interesse em conservá-la.
Pense, por exemplo, quanto valeria financeiramente o regime de chuvas que faz as lavouras crescerem e abastecem os reservatórios de água das grandes cidades.
Aí que entra uma série de iniciativas promissoras na área de remuneração dos serviços ambientais, voltados para encontrar formas de compensar os responsáveis por conservar esses serviços.
O PL nº 792/07, de autoria do exdeputado federal Anselmo de Jesus, conseguiu o impensável, ao ser votado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural em maio de 2010: unir ambientalistas e ruralistas em torno de uma aprovação unânime. A proposta ainda levará meses para chegar ao Plenário, e ainda há complexidades enormes a resolver antes dos primeiros cheques serem assinados. Exemplos: de onde sairá o dinheiro e quais serão os critérios para que ele seja repartido.
Mas alguns estados também ensaiam projetos nesse sentido. Desde 1993, São Paulo distribui o equivalente a 0,5% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços entre municípios que tenham parte de seu território protegida por Unidades de Conservação. Em 2010, repartiu mais de R$ 92 milhões entre 185 cidades.
Há também o Projeto Mina D’água, que vai remunerar os produtores rurais por preservarem nascentes. Segundo a coordenadora de biodiversidade da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, Helena Carrascosa, o programa surgiu da constatação de um paradoxo nos municípios. “São cidades que não podem produzir quase nada por terem muitas restrições ambientais. Mas são elas que produzem água para a Região Metropolitana de São Paulo. Se isso não for um serviço importante, o que é?”
Essa constatação levou ao desenho de um piloto em 2006 que resultou no atual programa. Mas os pagamentos não são particularmente elevados: R$ 75 por hectare a R$ 300 por ano em função da área e do tipo de serviço ambiental gerado.
E há ainda o dinheiro que poderá chegar ao País por meio do Redd – mecanismo que permite aos países desenvolvidos compensar suas emissões de carbono financiando a manutenção das florestas em países emergentes –, mas este ainda tem um extenso caminho a percorrer antes de se consolidar.