Sem objetivos claros na redução da desigualdade, é forte o risco de que a própria legitimidade da economia verde seja colocada em questão
O desequilíbrio metabólico da atual relação entre a sociedade e os ecossistemas muda radicalmente a natureza, o alcance e o significado da questão da desigualdade no mundo contemporâneo. O principal desafio da Rio+20 não consiste em juntar economia verde e luta contra a pobreza. Essa junção já está em curso e faz parte do business as usual, da forma corriqueira de se levar adiante os negócios públicos e privados. O desafio fundamental é associar a construção da economia verde ao combate à desigualdade. Além de seu óbvio fundamento ético e funcional, a luta contra a desigualdade adquire uma dimensão material inédita, da qual se podem citar dois exemplos vindos de importantes documentos internacionais recentes.
O primeiro refere-se ao uso dos recursos materiais necessários à reprodução social. O International Resource Panel, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), publicou, há algumas semanas, o relatório Decoupling Natural Resource Use and Environmental Impacts from Economic Growth (Descasando o uso dos recursos naturais e os impactos ambientais do crescimento econômico). Esse descasamento exprime – juntamente com a promoção do uso sustentável da biodiversidade – a essência da economia verde, ou seja, a urgência de reduzir o consumo dos materiais e da energia que se encontram na base da riqueza social. Os resultados alcançados até aqui são, no mínimo, ambíguos.
Por um lado, cada unidade de riqueza é oferecida ao mercado sobre a base do uso decrescente de materiais. Apesar desse avanço, entretanto, a extração de recursos da superfície terrestre cresceu oito vezes durante o século XX, atingindo um total de 60 bilhões de toneladas anuais, considerando-se apenas o peso físico de quatro elementos: minérios, materiais de construção, combustíveis fósseis e biomassa.
Amplia-se o uso de recursos não bióticos e, com eles, a poluição e as emissões de gases de efeito estufa. O descasamento entre a produção de riqueza e sua base material, mesmo em economias avançadas como o Japão e a Alemanha, foi apenas relativo, pois em termos absolutos a pressão sobre os recursos aumenta. Mas a informação que mais chama a atenção refere-se à desigualdade. Um indiano que nascer hoje consumirá ao longo de sua vida o correspondente a 4 toneladas de materiais anuais. Um canadense vai consumir 25.
Achim Steiner, diretor-geral do Pnuma, que prefacia o relatório, preconiza que, nos próximos anos, o consumo médio global, num mundo com mais de 9 bilhões de habitantes, terá de cair das atuais 9 toneladas anuais per capita para algo entre 5 e 6 toneladas. A função da economia verde é estimular inovações que permitam a estas 5 ou 6 toneladas propiciar muito mais bem-estar e utilidades que as oferecidas hoje. Mas somente um mundo com recursos infinitos poderia manter este nível de desigualdade e, ao mesmo tempo, satisfazer as necessidades básicas dos que estão hoje em situação de pobreza.
O segundo exemplo, na mesma direção, vem do World Economic and Social Survey, do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas, e tem por título The Great Green Technological Transformation (A Grande Transformação Tecnológica Verde). O documento propõe que se estabeleça um limite para o consumo per capita de energia – 70 gigajoules por ano –, o que significaria cortar pela metade o gasto de energia do europeu médio e em três quartos o do americano. Já o indiano teria amplo espaço para aumentar seu consumo primário de energia, que hoje é, em média, de 15 gigajoules. Mas esse limite proposto refere-se à energia primária [1] e pode ser em grande parte compensado pela inovação, ou seja, pelo aumento na eficiência com que se usa a energia em todas as etapas anteriores à prestação dos serviços ou à produção dos bens e serviços a que se ela destina.
[1] Aquela que está disponível na natureza em estado bruto, tal como carvão, petróleo, gás natural, urânio, ventos, recursos hídricos e energia solar
O grande desafio do século XXI, assim, está na construção de um metabolismo social capaz de garantir a permanência e a regeneração dos serviços que os ecossistemas prestam às sociedades. Mais precisamente, trata-se de chegar a um metabolismo industrial que reduza drasticamente o uso de carbono na base material e energética da sociedade e, ao mesmo tempo, ofereça oportunidades para que as necessidades básicas dos seres humanos sejam preenchidas. Sem objetivos claros na redução da desigualdade, é forte o risco de que a própria legitimidade da economia verde seja colocada em questão.
É difícil imaginar tema mais importante para ocupar o centro da Rio+20.
*Professor titular do Departamento de Economia da FEA, do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador de Projeto Temático do Programa Fapesp de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais. [:en]
Sem objetivos claros na redução da desigualdade, é forte o risco de que a própria legitimidade da economia verde seja colocada em questão
O desequilíbrio metabólico da atual relação entre a sociedade e os ecossistemas muda radicalmente a natureza, o alcance e o significado da questão da desigualdade no mundo contemporâneo. O principal desafio da Rio+20 não consiste em juntar economia verde e luta contra a pobreza. Essa junção já está em curso e faz parte do business as usual, da forma corriqueira de se levar adiante os negócios públicos e privados. O desafio fundamental é associar a construção da economia verde ao combate à desigualdade. Além de seu óbvio fundamento ético e funcional, a luta contra a desigualdade adquire uma dimensão material inédita, da qual se podem citar dois exemplos vindos de importantes documentos internacionais recentes.
O primeiro refere-se ao uso dos recursos materiais necessários à reprodução social. O International Resource Panel, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), publicou, há algumas semanas, o relatório Decoupling Natural Resource Use and Environmental Impacts from Economic Growth (Descasando o uso dos recursos naturais e os impactos ambientais do crescimento econômico). Esse descasamento exprime – juntamente com a promoção do uso sustentável da biodiversidade – a essência da economia verde, ou seja, a urgência de reduzir o consumo dos materiais e da energia que se encontram na base da riqueza social. Os resultados alcançados até aqui são, no mínimo, ambíguos.
Por um lado, cada unidade de riqueza é oferecida ao mercado sobre a base do uso decrescente de materiais. Apesar desse avanço, entretanto, a extração de recursos da superfície terrestre cresceu oito vezes durante o século XX, atingindo um total de 60 bilhões de toneladas anuais, considerando-se apenas o peso físico de quatro elementos: minérios, materiais de construção, combustíveis fósseis e biomassa.
Amplia-se o uso de recursos não bióticos e, com eles, a poluição e as emissões de gases de efeito estufa. O descasamento entre a produção de riqueza e sua base material, mesmo em economias avançadas como o Japão e a Alemanha, foi apenas relativo, pois em termos absolutos a pressão sobre os recursos aumenta. Mas a informação que mais chama a atenção refere-se à desigualdade. Um indiano que nascer hoje consumirá ao longo de sua vida o correspondente a 4 toneladas de materiais anuais. Um canadense vai consumir 25.
Achim Steiner, diretor-geral do Pnuma, que prefacia o relatório, preconiza que, nos próximos anos, o consumo médio global, num mundo com mais de 9 bilhões de habitantes, terá de cair das atuais 9 toneladas anuais per capita para algo entre 5 e 6 toneladas. A função da economia verde é estimular inovações que permitam a estas 5 ou 6 toneladas propiciar muito mais bem-estar e utilidades que as oferecidas hoje. Mas somente um mundo com recursos infinitos poderia manter este nível de desigualdade e, ao mesmo tempo, satisfazer as necessidades básicas dos que estão hoje em situação de pobreza.
O segundo exemplo, na mesma direção, vem do World Economic and Social Survey, do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas, e tem por título The Great Green Technological Transformation (A Grande Transformação Tecnológica Verde). O documento propõe que se estabeleça um limite para o consumo per capita de energia – 70 gigajoules por ano –, o que significaria cortar pela metade o gasto de energia do europeu médio e em três quartos o do americano. Já o indiano teria amplo espaço para aumentar seu consumo primário de energia, que hoje é, em média, de 15 gigajoules. Mas esse limite proposto refere-se à energia primária [1] e pode ser em grande parte compensado pela inovação, ou seja, pelo aumento na eficiência com que se usa a energia em todas as etapas anteriores à prestação dos serviços ou à produção dos bens e serviços a que se ela destina.
[1] Aquela que está disponível na natureza em estado bruto, tal como carvão, petróleo, gás natural, urânio, ventos, recursos hídricos e energia solar
O grande desafio do século XXI, assim, está na construção de um metabolismo social capaz de garantir a permanência e a regeneração dos serviços que os ecossistemas prestam às sociedades. Mais precisamente, trata-se de chegar a um metabolismo industrial que reduza drasticamente o uso de carbono na base material e energética da sociedade e, ao mesmo tempo, ofereça oportunidades para que as necessidades básicas dos seres humanos sejam preenchidas. Sem objetivos claros na redução da desigualdade, é forte o risco de que a própria legitimidade da economia verde seja colocada em questão.
É difícil imaginar tema mais importante para ocupar o centro da Rio+20.
*Professor titular do Departamento de Economia da FEA, do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador de Projeto Temático do Programa Fapesp de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais.