Estimar o potencial da Rio+20 é um exercício arriscado. Tal como em 1992, qualquer resultado comemorável dependerá do vigor dos atores sociais que se movimentam em torno da conferência
Há 20 anos, quando o ambientalista João Paulo Capobianco sentou-se à mesa de uma coletiva de imprensa, às vésperas da primeira Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, a pergunta que todos os jornalistas haviam preparado era “o que podemos esperar da Rio 92?” O entrevistado não teve dúvidas e sapecou como resposta: “Nada”, apenas para desfrutar dos segundos de constrangimento que se seguiram.
O argumento de Capobianco era que não se poderia “esperar” coisa alguma do processo de negociação das Nações Unidas, mas antes trabalhar arduamente para que as melhores ambições tivessem alguma chance de se concretizar. Quem optasse por esperar o faria melhor sentado. Naquela época, como hoje, eram consideráveis os entraves para promover soluções globais em um multilateralismo que mais se assemelha à somatória de interesses domésticos inconciliáveis.
Parece oportuno relembrar essa anedota, já que estamos falando de um evento repleto de déjà-vu. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que retorna ao Rio de Janeiro em junho de 2012, marca não apenas os 20 anos da Rio 92 e os 40 anos de Estocolmo 72 (a primeira conferência da ONU sobre meio ambiente), como também os 25 anos do relatório Nosso Futuro Comum [1], um marco da dis- seminação do conceito de desenvolvimento sustentável.
[1] Documento da ONU que define o desenvolvimento sustentável como “(aquele) que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”
Para completar, 2012 é um ano decisivo também na trilha específica das negociações sobre mudança do clima, quando expira o prazo para definição de uma segunda fase de compromissos sob o mandato do Proto- colo de Kyoto. Isso sem falar na folclórica pecha de “fim do mundo” que apimenta ainda mais esse calendário.
E, mais uma vez, a pergunta que estamos perse- guindo, como jornalistas, é “o que podemos esperar da Rio+20?” Infelizmente, não estamos aptos a dar essa resposta. E de pouco adianta recorrer aos especialistas na matéria, tão diversificados que estão em expectativas e prioridades eleitas.
Apenas para citar um exemplo, quem perguntar a Rubens Born, coordenador-executivo do Vitae Civilis, se a Rio+20 tem o potencial de tornar-se tão icônica quanto a Rio 92, receberá de volta a análise: “Sim e não”. O caso é que há forças ambíguas atuando sobre possíveis desfechos da conferência, como assinala Born.
De um lado, uma crise econômica que segue pro- vocando espasmos na Europa e nos Estados Unidos, o que causa aversão por quaisquer compromissos ao bloco rico dos países-membros, sobretudo financeiros. De outro, a energia dos “indignados” [2] ao redor do globo, passível de ser canalizada para um grande movimento de pressão pelo desenvolvimento sustentável. De um lado, uma reunião oficial que, a depender dos arranjos ditados pela ONU, tem tudo para ser esvaziada. De outro, um clima de ceticismo que se instaurou sobre o atual sistema de governança global e que impele a própria ONU a demonstrar, afinal de contas, para que serve a organização.
[2] Movimento que surgiu na Espanha para se opor às medidas de enfrentamento da crise econômica naquele país
Assim, melhor que arriscar algum palpite certeiro será oferecer ao leitor as linhas gerais mais importantes desse grande contexto que cerca a Rio+20, e esperar que lhes sejam úteis para elaborar, autonomamente, suas próprias expectativas.
PEQUENA NOTÁVEL
Aron Belinky, coordenador nacional do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20, e entrevistado nesta edição, costuma definir a conferência como o “o filho que foi concebido na lua de mel e nasceu depois do divórcio”.
A ideia de realizar novamente a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro partiu do ex-presidente Lula, em 2007, ano que marcou o boom do tema mudança climática, graças ao quarto relatório do IPCC e ao filme Uma Verdade Inconveniente. Naquele ano, também a Conferência do Clima, em Bali (COP 13), teve um desfecho algo animador, com a adesão da Austrália ao Protocolo de Kyoto e a aprovação do “mapa do caminho” para que se alcançasse um novo acordo vinculante entre os países. A economia mundial, na aparência, estava nos trilhos.
Depois veio a crise e o fiasco da COP 15, em Copenhague. Tudo mudou. Para Belinky, é quase como se a ONU não quisesse fazer muito alarde, sob o risco de ser colada novamente ao rótulo de fracasso, e os sintomas estão na própria organização do evento. O processo oficial terá só três dias – a título de comparação, as cúpulas do clima contam com duas semanas – e a última reunião preparatória será realizada com apenas quatro dias de antecedência.
O embaixador designado para secretariar a conferência é Sha Zukang, o mais velho diplomata chinês em atividade na ONU. De origem militar e em fim de carreira, Sha tem pouca familiaridade com o tema da Rio+20. Seu perfil fica ainda mais diminuído se comparado ao de Maurice Strong, o secretário-geral das conferências de 1972 e 1992, a quem se atribui boa parcela da liderança sobre os compromissos assumidos e sobre o caráter paradigmático que ambas as reuniões tiveram.
Mas em se tratando do processo ONU, e especialmente em uma ocasião que reúne tanto simbolismo, a disposição dos países-membros em avançar é apenas um pedaço da história. A partir da Rio 92, a organização abriu-se para a colaboração da sociedade civil. Os mais de 20 mil ativistas que compareceram à capital fluminense naquele ano para pressionar os líderes mundiais e inaugurar a agenda de eventos paralelos foram os arquitetos de um clima de pressão até então inédito.
Hoje, as organizações sociais estão mais maduras, e protagonizam um contexto de sociedade civil transnacional. Com as novas possibilidades de articulação que a internet oferece, a que dimensão isso pode chegar? Mais uma vez, esses grupos terão a prerrogativa de comentar encaminhamentos e apresentar propostas, seja por meio dos Major Groups [3], seja com o grupo de contato com a sociedade civil do país anfitrião, o Brasil4, desenhado extraordinariamente para a Rio+20. (mais em reportagem “Contatos imediatos”)
Grupos setoriais da sociedade civil mundial, incluindo ONGs e Negócios, criados em 1992 para informar e aconselhar a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU
Mesmo fora da intersecção entre ativistas e diplo- matas, a reedição do chamado “espírito do Rio” de alguma forma compete a todo mundo. É justo antever que qualquer resultado comemorável no ano que vem dependerá bastante da habilidade dos atores sociais em criar momentum – palavrinha pomposa que no Brasil po- deria ser substituída pela velha máxima “ou vai ou racha”.
PRAGMATISMO
Mas como criar momentum se, em 2009, a temperatura do debate, da divulgação e das expectativas foi altíssima e o resultado tão decepcionante? Vale a pena? Nesse ponto, é importante revelar que o desenho da Rio+20 é muito diferente das Conferências das Partes (COPs), em que os diplomatas se reúnem em torno de um texto-base a ser anexado à convenção de referência e as divergências se acumulam em cada palavra ou vírgula.
No artigo “Rio+20: Another World Summit?”, disponível na internet, os pesquisadores Miquel Muñoz e Adil Najam, da Universidade de Boston, defendem que estamos testemunhando o fim da era em que a “pergunta operacional” do sistema global de governança era: “Um acordo é possível?” Nas últimas décadas, foram assinados tratados sobre meio ambiente e temas afins às centenas, mas o descumprimento é sistemático. Assim, a nova pergunta-motor sobre o sistema internacional seria: “Os acordos estão funcionando?”
“Para usar uma analogia da física, estamos menos interessados na força aplicada e mais no trabalho resultante”, escreveram os autores. Em outras palavras, a Rio+20 seria o espaço não para novas convenções, mas para desenvolver mecanismos capazes de usar o que quer que o mundo já tenha acordado para ganhar escala e gerar impactos verificáveis. Os dois grandes temas escolhidos pela ONU para basear o debate revelam justamente essa tendência ao pragmatismo.
O tema “estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável”, também chamado de “governança”, dirige-se à reforma do arranjo institucional de modo a fazer avançar os planos e as metas estabelecidos internacionalmente. Já estão na mesa propostas que vão desde o fortalecimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) até a criação de um novo organismo supranacional da sustentabilidade, incumbido de acompanhar a aplicação dos acordos aprovados em diversas instâncias multilaterais e de arbitrar conflitos entre as nações.
A “economia verde no contexto da erradicação da miséria” é tema que tem origem na Green Economy Initiative, impetrada pelo Pnuma em 2008, durante a eclosão da crise financeira mundial. A proposta, então, era oferecer uma saída para a retomada da prosperidade econômica por meio dos negócios verdes e inclusivos. O leitor deve reparar que o tratamento que a ONU e seus diversos interlocutores dão ao assunto é de “fase de transição para o desenvolvimento sustentável”. Em teoria, um objetivo menos ambicioso e mais factível.
A ideia é remanejar mercados e fluxos financeiros para motivar setores-chave (como agricultura, energia, construção e transporte) a reduzir emissões de carbono, bem como o consumo de recursos naturais, ao mesmo tempo que gerariam mais empregos. Entre as medidas que poderiam ser aplicadas para este fim estão a inclusão de critérios socioambientais nas compras públicas, pacotes de estímulos e aplicação de taxas verdes, como um imposto sobre as emissões de carbono.
Mas, para ganhar adesão, a economia verde precisará superar a relevante antipatia que conquistou em alguns círculos. Os críticos apontam que o novo conceito apenas confere pinceladas de verde sobre o mesmo sistema insustentável de produção e consumo. Em manifesto recente, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) afirma que é preciso “resistir ao ambientalismo de mercado”. Conforme explica José Eli da Veiga em entrevista, a ideia de economia verde ou crescimento verde ignora a recomendação dos economistas ecológicos por uma completa reformulação macroeconômica, capaz de dissociar o consumo da prosperidade.
Fica mais fácil compreender isso no contexto da desigualdade mundial. Lembremos que a disponibilidade de recursos naturais não é infinita. Enquanto os países de extremo desenvolvimento social continuarem a crescer – considerem-se, por exemplo, a Suécia, a Dinamarca ou o Canadá –, é como se estivessem usurpando o “espaço ecológico” daquelas nações que ainda precisam crescer para distribuir oportunidades socioeconômicas à toda população. Sem uma abordagem sobre a desigualdade, a economia até pode ser verde, mas será realmente inclusiva?
OPORTUNIDADE E PROPÓSITO
Pouca gente se lembra que houve uma conferência Estocolmo+5 e também uma Rio+5. A Rio+10, um pouco mais recente (Johannesburgo, 2002), ainda está na memória dos engajados em questões ambientais, mas é definida por José Augusto Pádua, historiador especializado em política ambiental, como “a conferência mais inútil que eu já vi na minha vida”.
Para estimar o potencial do próximo grande evento no calendário da sustentabilidade, é útil compreender por que algumas conferências se tornaram memoráveis e outras caíram no esquecimento. Segundo Muñoz e Najam, da Universidade de Boston, a peneira histórica opera com dois critérios e o primeiro deles é o timing.
Em 1972, o mundo industrializado experimentava as mazelas da poluição causada pela arrancada econômica do pós-guerra. Na ocasião, estava claro que os problemas ambientais não respeitavam fronteiras e Estocolmo garantiu o seu lugar na História ao trazer o tema pela primeira vez ao âmbito das Nações Unidas. Já do lado de baixo do Equador, a falta de indústrias é que incomodava e o ambientalismo se assemelhava à uma quimera.
A Rio 92 foi como o apito de uma panela de pressão mundial. Primeiro, porque o convite “venham poluir o Brasil” do ministro João Paulo dos Reis Velloso, representante brasileiro em Estocolmo, transformou-se em profecia. No começo da década de 1990, os países ricos haviam se modernizado para reduzir a poluição industrial, mas também haviam exportado fábricas obsoletas para o bloco dos pobres que, depois da “década perdida”, acumulavam grave degradação ambiental, afundados ainda mais na miséria.
Ao mesmo tempo, eventos históricos como a queda do Muro de Berlim e o fim do Apartheid , na África do Sul, provocavam um clima de otimismo e de disposição para a cooperação internacional. O timing do Rio em 1992 era o retumbante casamento de indignação e esperança. Pobre Rio+10, não teve a mesma sorte, encerrada numa disputa inglória com as atenções devotadas à guerra ao terror.
Em 2012, em que pese a persistente crise econômica, a disseminação do debate socioambiental e a precisão da ciência terão o mais alto nível de toda essa trajetória. Ponto para o timing. O que falta conhecer é o segundo critério apontado pelos pesquisadores de Boston: ter um grande propósito.
Em 1972, era o marco zero do meio ambiente como tema de interesse multilateral. Em 1992, a consolidação da ideia de desenvolvimento sustentável. E em 2012? Está em algum lugar entre a reforma da ONU, um conjunto de medidas de estímulo à economia verde e o mais ambicioso e improvável objetivo de redefinir o desenvolvimento dissociado do crescimento.
Seja como for, é importante ter em mente a análise simples de Najam e Muñoz: “Conferências raramente resolvem problemas, mas podem determinar o debate internacional por anos e décadas à frente”. Assim, o melhor que se poderia esperar da Rio+20 é o peteleco inicial num dominó de mudanças tão profundas que nós ainda estaremos tentando interpretar integralmente 20 anos depois.[:en]Estimar o potencial da Rio+20 é um exercício arriscado. Tal como em 1992, qualquer resultado comemorável dependerá do vigor dos atores sociais que se movimentam em torno da conferência
Há 20 anos, quando o ambientalista João Paulo Capobianco sentou-se à mesa de uma coletiva de imprensa, às vésperas da primeira Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, a pergunta que todos os jornalistas haviam preparado era “o que podemos esperar da Rio 92?” O entrevistado não teve dúvidas e sapecou como resposta: “Nada”, apenas para desfrutar dos segundos de constrangimento que se seguiram.
O argumento de Capobianco era que não se poderia “esperar” coisa alguma do processo de negociação das Nações Unidas, mas antes trabalhar arduamente para que as melhores ambições tivessem alguma chance de se concretizar. Quem optasse por esperar o faria melhor sentado. Naquela época, como hoje, eram consideráveis os entraves para promover soluções globais em um multilateralismo que mais se assemelha à somatória de interesses domésticos inconciliáveis.
Parece oportuno relembrar essa anedota, já que estamos falando de um evento repleto de déjà-vu. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que retorna ao Rio de Janeiro em junho de 2012, marca não apenas os 20 anos da Rio 92 e os 40 anos de Estocolmo 72 (a primeira conferência da ONU sobre meio ambiente), como também os 25 anos do relatório Nosso Futuro Comum [1], um marco da dis- seminação do conceito de desenvolvimento sustentável.
[1] Documento da ONU que define o desenvolvimento sustentável como “(aquele) que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”
Para completar, 2012 é um ano decisivo também na trilha específica das negociações sobre mudança do clima, quando expira o prazo para definição de uma segunda fase de compromissos sob o mandato do Proto- colo de Kyoto. Isso sem falar na folclórica pecha de “fim do mundo” que apimenta ainda mais esse calendário.
E, mais uma vez, a pergunta que estamos perse- guindo, como jornalistas, é “o que podemos esperar da Rio+20?” Infelizmente, não estamos aptos a dar essa resposta. E de pouco adianta recorrer aos especialistas na matéria, tão diversificados que estão em expectativas e prioridades eleitas.
Apenas para citar um exemplo, quem perguntar a Rubens Born, coordenador-executivo do Vitae Civilis, se a Rio+20 tem o potencial de tornar-se tão icônica quanto a Rio 92, receberá de volta a análise: “Sim e não”. O caso é que há forças ambíguas atuando sobre possíveis desfechos da conferência, como assinala Born.
De um lado, uma crise econômica que segue pro- vocando espasmos na Europa e nos Estados Unidos, o que causa aversão por quaisquer compromissos ao bloco rico dos países-membros, sobretudo financeiros. De outro, a energia dos “indignados” [2] ao redor do globo, passível de ser canalizada para um grande movimento de pressão pelo desenvolvimento sustentável. De um lado, uma reunião oficial que, a depender dos arranjos ditados pela ONU, tem tudo para ser esvaziada. De outro, um clima de ceticismo que se instaurou sobre o atual sistema de governança global e que impele a própria ONU a demonstrar, afinal de contas, para que serve a organização.
[2] Movimento que surgiu na Espanha para se opor às medidas de enfrentamento da crise econômica naquele país
Assim, melhor que arriscar algum palpite certeiro será oferecer ao leitor as linhas gerais mais importantes desse grande contexto que cerca a Rio+20, e esperar que lhes sejam úteis para elaborar, autonomamente, suas próprias expectativas.
PEQUENA NOTÁVEL
Aron Belinky, coordenador nacional do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20, e entrevistado nesta edição, costuma definir a conferência como o “o filho que foi concebido na lua de mel e nasceu depois do divórcio”.
A ideia de realizar novamente a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro partiu do ex-presidente Lula, em 2007, ano que marcou o boom do tema mudança climática, graças ao quarto relatório do IPCC e ao filme Uma Verdade Inconveniente. Naquele ano, também a Conferência do Clima, em Bali (COP 13), teve um desfecho algo animador, com a adesão da Austrália ao Protocolo de Kyoto e a aprovação do “mapa do caminho” para que se alcançasse um novo acordo vinculante entre os países. A economia mundial, na aparência, estava nos trilhos.
Depois veio a crise e o fiasco da COP 15, em Copenhague. Tudo mudou. Para Belinky, é quase como se a ONU não quisesse fazer muito alarde, sob o risco de ser colada novamente ao rótulo de fracasso, e os sintomas estão na própria organização do evento. O processo oficial terá só três dias – a título de comparação, as cúpulas do clima contam com duas semanas – e a última reunião preparatória será realizada com apenas quatro dias de antecedência.
O embaixador designado para secretariar a conferência é Sha Zukang, o mais velho diplomata chinês em atividade na ONU. De origem militar e em fim de carreira, Sha tem pouca familiaridade com o tema da Rio+20. Seu perfil fica ainda mais diminuído se comparado ao de Maurice Strong, o secretário-geral das conferências de 1972 e 1992, a quem se atribui boa parcela da liderança sobre os compromissos assumidos e sobre o caráter paradigmático que ambas as reuniões tiveram.
Mas em se tratando do processo ONU, e especialmente em uma ocasião que reúne tanto simbolismo, a disposição dos países-membros em avançar é apenas um pedaço da história. A partir da Rio 92, a organização abriu-se para a colaboração da sociedade civil. Os mais de 20 mil ativistas que compareceram à capital fluminense naquele ano para pressionar os líderes mundiais e inaugurar a agenda de eventos paralelos foram os arquitetos de um clima de pressão até então inédito.
Hoje, as organizações sociais estão mais maduras, e protagonizam um contexto de sociedade civil transnacional. Com as novas possibilidades de articulação que a internet oferece, a que dimensão isso pode chegar? Mais uma vez, esses grupos terão a prerrogativa de comentar encaminhamentos e apresentar propostas, seja por meio dos Major Groups [3], seja com o grupo de contato com a sociedade civil do país anfitrião, o Brasil4, desenhado extraordinariamente para a Rio+20. (mais em reportagem “Contatos imediatos”)
Grupos setoriais da sociedade civil mundial, incluindo ONGs e Negócios, criados em 1992 para informar e aconselhar a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU
Mesmo fora da intersecção entre ativistas e diplo- matas, a reedição do chamado “espírito do Rio” de alguma forma compete a todo mundo. É justo antever que qualquer resultado comemorável no ano que vem dependerá bastante da habilidade dos atores sociais em criar momentum – palavrinha pomposa que no Brasil po- deria ser substituída pela velha máxima “ou vai ou racha”.
PRAGMATISMO
Mas como criar momentum se, em 2009, a temperatura do debate, da divulgação e das expectativas foi altíssima e o resultado tão decepcionante? Vale a pena? Nesse ponto, é importante revelar que o desenho da Rio+20 é muito diferente das Conferências das Partes (COPs), em que os diplomatas se reúnem em torno de um texto-base a ser anexado à convenção de referência e as divergências se acumulam em cada palavra ou vírgula.
No artigo “Rio+20: Another World Summit?”, disponível na internet, os pesquisadores Miquel Muñoz e Adil Najam, da Universidade de Boston, defendem que estamos testemunhando o fim da era em que a “pergunta operacional” do sistema global de governança era: “Um acordo é possível?” Nas últimas décadas, foram assinados tratados sobre meio ambiente e temas afins às centenas, mas o descumprimento é sistemático. Assim, a nova pergunta-motor sobre o sistema internacional seria: “Os acordos estão funcionando?”
“Para usar uma analogia da física, estamos menos interessados na força aplicada e mais no trabalho resultante”, escreveram os autores. Em outras palavras, a Rio+20 seria o espaço não para novas convenções, mas para desenvolver mecanismos capazes de usar o que quer que o mundo já tenha acordado para ganhar escala e gerar impactos verificáveis. Os dois grandes temas escolhidos pela ONU para basear o debate revelam justamente essa tendência ao pragmatismo.
O tema “estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável”, também chamado de “governança”, dirige-se à reforma do arranjo institucional de modo a fazer avançar os planos e as metas estabelecidos internacionalmente. Já estão na mesa propostas que vão desde o fortalecimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) até a criação de um novo organismo supranacional da sustentabilidade, incumbido de acompanhar a aplicação dos acordos aprovados em diversas instâncias multilaterais e de arbitrar conflitos entre as nações.
A “economia verde no contexto da erradicação da miséria” é tema que tem origem na Green Economy Initiative, impetrada pelo Pnuma em 2008, durante a eclosão da crise financeira mundial. A proposta, então, era oferecer uma saída para a retomada da prosperidade econômica por meio dos negócios verdes e inclusivos. O leitor deve reparar que o tratamento que a ONU e seus diversos interlocutores dão ao assunto é de “fase de transição para o desenvolvimento sustentável”. Em teoria, um objetivo menos ambicioso e mais factível.
A ideia é remanejar mercados e fluxos financeiros para motivar setores-chave (como agricultura, energia, construção e transporte) a reduzir emissões de carbono, bem como o consumo de recursos naturais, ao mesmo tempo que gerariam mais empregos. Entre as medidas que poderiam ser aplicadas para este fim estão a inclusão de critérios socioambientais nas compras públicas, pacotes de estímulos e aplicação de taxas verdes, como um imposto sobre as emissões de carbono.
Mas, para ganhar adesão, a economia verde precisará superar a relevante antipatia que conquistou em alguns círculos. Os críticos apontam que o novo conceito apenas confere pinceladas de verde sobre o mesmo sistema insustentável de produção e consumo. Em manifesto recente, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) afirma que é preciso “resistir ao ambientalismo de mercado”. Conforme explica José Eli da Veiga em entrevista, a ideia de economia verde ou crescimento verde ignora a recomendação dos economistas ecológicos por uma completa reformulação macroeconômica, capaz de dissociar o consumo da prosperidade.
Fica mais fácil compreender isso no contexto da desigualdade mundial. Lembremos que a disponibilidade de recursos naturais não é infinita. Enquanto os países de extremo desenvolvimento social continuarem a crescer – considerem-se, por exemplo, a Suécia, a Dinamarca ou o Canadá –, é como se estivessem usurpando o “espaço ecológico” daquelas nações que ainda precisam crescer para distribuir oportunidades socioeconômicas à toda população. Sem uma abordagem sobre a desigualdade, a economia até pode ser verde, mas será realmente inclusiva?
OPORTUNIDADE E PROPÓSITO
Pouca gente se lembra que houve uma conferência Estocolmo+5 e também uma Rio+5. A Rio+10, um pouco mais recente (Johannesburgo, 2002), ainda está na memória dos engajados em questões ambientais, mas é definida por José Augusto Pádua, historiador especializado em política ambiental, como “a conferência mais inútil que eu já vi na minha vida”.
Para estimar o potencial do próximo grande evento no calendário da sustentabilidade, é útil compreender por que algumas conferências se tornaram memoráveis e outras caíram no esquecimento. Segundo Muñoz e Najam, da Universidade de Boston, a peneira histórica opera com dois critérios e o primeiro deles é o timing.
Em 1972, o mundo industrializado experimentava as mazelas da poluição causada pela arrancada econômica do pós-guerra. Na ocasião, estava claro que os problemas ambientais não respeitavam fronteiras e Estocolmo garantiu o seu lugar na História ao trazer o tema pela primeira vez ao âmbito das Nações Unidas. Já do lado de baixo do Equador, a falta de indústrias é que incomodava e o ambientalismo se assemelhava à uma quimera.
A Rio 92 foi como o apito de uma panela de pressão mundial. Primeiro, porque o convite “venham poluir o Brasil” do ministro João Paulo dos Reis Velloso, representante brasileiro em Estocolmo, transformou-se em profecia. No começo da década de 1990, os países ricos haviam se modernizado para reduzir a poluição industrial, mas também haviam exportado fábricas obsoletas para o bloco dos pobres que, depois da “década perdida”, acumulavam grave degradação ambiental, afundados ainda mais na miséria.
Ao mesmo tempo, eventos históricos como a queda do Muro de Berlim e o fim do Apartheid , na África do Sul, provocavam um clima de otimismo e de disposição para a cooperação internacional. O timing do Rio em 1992 era o retumbante casamento de indignação e esperança. Pobre Rio+10, não teve a mesma sorte, encerrada numa disputa inglória com as atenções devotadas à guerra ao terror.
Em 2012, em que pese a persistente crise econômica, a disseminação do debate socioambiental e a precisão da ciência terão o mais alto nível de toda essa trajetória. Ponto para o timing. O que falta conhecer é o segundo critério apontado pelos pesquisadores de Boston: ter um grande propósito.
Em 1972, era o marco zero do meio ambiente como tema de interesse multilateral. Em 1992, a consolidação da ideia de desenvolvimento sustentável. E em 2012? Está em algum lugar entre a reforma da ONU, um conjunto de medidas de estímulo à economia verde e o mais ambicioso e improvável objetivo de redefinir o desenvolvimento dissociado do crescimento.
Seja como for, é importante ter em mente a análise simples de Najam e Muñoz: “Conferências raramente resolvem problemas, mas podem determinar o debate internacional por anos e décadas à frente”. Assim, o melhor que se poderia esperar da Rio+20 é o peteleco inicial num dominó de mudanças tão profundas que nós ainda estaremos tentando interpretar integralmente 20 anos depois.