Um mundo menos assimétrico não é só uma bela ideia que deveríamos perseguir por considerações éticas. É também um componente fundamental da equação global
“Nós somos os 99%.” Apesar da obstinação com que o Occupy Wall Street (OWS) [1] tem se recusado a elaborar uma lista de demandas, o slogan do movimento é cristalino: o problema é a desigualdade. Especialmente, a forma como o 1% mais rico parece ter tomado controle de tudo. Na narrativa do movimento, a turminha dos super-ricos tem usado seus bilhões para comprar os governos e fazê-los aprovar políticas que beneficiam o topo, enquanto transfere a conta para a patuleia pagar.
“Acho que ‘desigualdade’ seria uma excelente forma de resumir tudo em uma palavra. Se existe um sentimento central, é essa busca por justiça e pela responsabilização das empresas responsáveis pela crise”, diz o jornalista Michael Levitin, que participa do movimento desde 24 de setembro. Apesar de ninguém estar autorizado a falar em nome do OWS – não existem lideranças formais –, o jornalista é um dos editores do The Occupied Wall Street Journal, publicação do movimento, o que o deixa em boa posição para comentar.
Segundo Levitin, existe um sentimento de ultraje se movendo em ondas pelo mundo que tem animado as recentes erupções sociais. Em sua leitura, as revoltas na Espanha, na Inglaterra, na Grécia e na chamada Primavera Árabe [2] estariam conectadas a essa indignação global. Essa não é uma ligação que só os norte-americanos veem, os brasileiros do Acampa Sampa parecem ter a mesma leitura (mais na reportagem “Ocupar, levantar acampamento e acampar de novo“). As similaridades no estilo e retórica sinalizam que esses movimentos têm buscado inspiração uns nos outros.
[1] Em 17 de setembro, um grupo de ativistas resolveu ocupar de forma permanente o Parque Zuccotti, uma pequena praça nas imediações da Bolsa de Valores de Nova York, e rebatizá-la de Liberty Square. Sem liderança institucionalizada ou demandas formais, o Occupy Wall Street tornou-se a matriz de uma onda de ocupações em várias cidades norteamericanas
[2] A série de protestos em países do Oriente Médio e Norte da África que começou em dezembro de 2010. Agitações importantes foram registradas em vários países da região. No Egito, na Líbia e na Tunísia, os movimentos levaram à troca dos governos
O professor de sociologia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) Giovanni Alves acredita que, embora a crise tenha sido o estopim, essa insatisfação está enraizada num processo de 30 anos de idade. “A desigualdade social em países como Grécia, Espanha, Itália e Portugal vem crescendo por conta da concentração da renda e do desmonte do Estado de Bem-Estar Social. A crise só tornou a situação mais aguda ao fazer a pobreza atingir a classe média”, resume.
Como está fazendo pós-doutorado na Universidade de Coimbra, Alves tem acompanhado a crise na Europa. Segundo ele, o driver é a crescente precariedade que atinge, sobretudo, os jovens. Há uma tendência para equalização nas taxas de exploração da força de trabalho no mundo que tem feito as oportunidades de carreira secarem. “Mesmo que faça tudo o que se exige – ter diploma, falar vários idiomas etc. –, um jovem português não tem perspectiva de futuro”, exemplifica.
CONCENTRAÇÃO CRESCENTE
O professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP Ricardo Abramovay confirma que há um processo de concentração em andamento. Segundo ele, entre o pós-guerra e os anos 1970, as democracias ocidentais se mostraram capazes de redistribuir riqueza, mas, a partir daí, houve uma inflexão. “Nos anos 1980, o 1% mais rico controlava 8% da economia dos Estados Unidos. Em 2007, esse controle subiu para 23%”, aponta.
Um levantamento feito pelo Washington Post dá um sinal mais preciso. Os pesquisadores do jornal compararam os vencimentos médios de altos executivos com os de trabalhadores comuns nos Estados Unidos, entre os anos 1964 e 2005. Enquanto no primeiro grupo a renda subiu de US$ 822 mil para US$ 4,9 milhões – um salto de quase 600% –, os dos trabalhadores caíram de US$ 31,9 mil para US$ 28,3 mil.
Embora seja um dos campeões mundiais de desigualdade – quando ajustado à desigualdade, nosso IDH despenca de 0,718 para 0,591 –, desta vez o Brasil não está puxando a tendência para baixo. “No relatório deste ano, o Coeficiente de Gini ficou em 53,9. No ano passado era de 55. É uma queda expressiva para um ano”, elogia o consultor do Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil Rogério Borges Oliveira.
Para Abramovay, a desigualdade de renda não é um mal em si e serve como estímulo para que as pessoas assumam riscos. O problema é que o fosso se alargou demais. “O grau de remuneração no topo tornou-se tão obsceno que já não cumpre qualquer função do ponto de vista da racionalidade econômica”, opina.
Pior ainda. Como lembra o professor da PUC-SP Ladislau Dowbor, a partir de determinado ponto, a concentração de dinheiro vira concentração de poder.
Dowbor aponta um estudo recente do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica que cruzou dados de mais de 43 mil empresas. Os suíços descobriram que um grupo de 737 corporações é dono de 80% do universo pesquisado e que 40% do bolo pertence a apenas 147 supercompanhias. “A concentração extrema de riquezas rompe as fronteiras entre o econômico e o político. Você passa a ser comandado por gente que não elegeu”, analisa.
QUESTÃO DE FUNDO
Mas a questão da renda é só a camada mais epitelial. Em entrevista publicada na edição 57, o economista José Eli da Veiga afirmou que a “desigualdade é a grande questão” e que seria praticamente impossível alcançar a sustentabilidade sem redistribuir a riqueza. Um resumo grosseiro do argumento: para que países pobres cresçam e se desenvolvam sem que isso aumente o cômputo global de emissões, os ricos terão de abrir espaço ecológico, buscando prosperidade sem crescimento econômico (e de emissões).
As diferenças entre o andar de cima e o de baixo são brutais. De acordo com dados da Pegada Ecológica [3], o consumo de cada ser humano deveria caber em 1,8 hectare global (gha), mas a média mundial está em 2,7 gha e o tamanho da pegada está ligado ao nível de renda. (Os resultados completos da pegada por país estão on-line. Clique em “Footprint Science” e depois em “Data and Results”)
Tomando como base a classificação do Banco Mundial, é fácil perceber a assimetria. Os habitantes dos países de renda elevada têm uma pegada de 6,1 gha, três vezes a dos moradores de países de renda média e cinco vezes a dos países de baixa renda – 2 gha e 1,2 gha, respectivamente. Isso significa que podemos ir esquecendo a aspiração de nivelar o padrão de consumo por cima.
[3] Desenvolvida pela Global Footprint Network, a Pegada Ecológica permite calcular a pressão sobre o meio ambiente. Em linhas gerais, a pegada traduz os hábitos de consumo numa área que seria necessária para produzir essa quantidade de bens e serviços. No Brasil, a metodologia é aplicada pelo WWF
O economista Sérgio Besserman, da PUC-RJ, coloca o impasse em números. Para evitar os piores cenários do aquecimento global, precisamos derrubar as emissões de carbono médias da atual 1,3 tonelada para menos de 0,5 tonelada. Considerando que um norte-americano emite 5,5 toneladas, tentar universalizar o padrão de consumo dos Estados Unidos seria uma irresponsabilidade. “O problema não é apenas a transição tecnológica necessária para sairmos dos combustíveis fósseis, mas também uma modificação no modelo de civilização”, comenta.
“Consumimos como se tivéssemos um planeta e meio à nossa disposição. Esse é um problema muito sério”, explica Michael Becker, coordenador do Programa Cerrado para o WWF-Brasil. Para ele, a dimensão ambiental coloca uma luz nova sobre o debate da redistribuição que sempre esteve mais ligada aos aspectos financeiros. Agora, a coisa fica mais séria. “Vamos precisar mudar o enfoque, porque a discussão passará a ser sobre o acesso a recursos naturais fundamentais, como a água e a terra”, considera.
“Separar essas duas agendas (a ambiental e a da igualdade) sempre soou como nonsense para mim”, diz Bill Kerry. Ele é codiretor da Equality Trust, organização criada para disseminar as informações a respeito dos benefícios das sociedades mais igualitárias. Basicamente, o Equality Trust pega indicadores de bem-estar – expectativa de vida, doenças mentais, níveis de violência, tamanho da população encarcerada etc. – e os compara aos índices de concentração de renda. A descoberta é que sociedades mais igualitárias se saem melhor em praticamente todos os aspectos.
ARMADILHA PSICOLÓGICA
Kerry afirma que há uma armadilha psicológica que faz a desigualdade descambar em consumismo. “Países desiguais exibem sinais do que chamamos de ‘ansiedade de status’. As pessoas se sentem impelidas a defender suas posições na hierarquia social e uma forma de fazer isso é consumir mais”, avalia. Além disso, as evidências do Equality Trust mostram que sociedades mais igualitárias reciclam mais, têm um setor de negócios mais engajado e apresentam maiores níveis de confiança – aspecto fundamental na hora de construir os consensos necessários para a transição rumo à sustentabilidade.
Nesse sentido, um movimento global que olha para a igualdade é bem-vindo. Besserman vê nos movimentos dos indignados “as primeiras luzes na formação de uma sociedade civil planetária”. Para ele, isso é importante, porque a pressão civil é a única maneira de contrabalançar a lógica do mercado, que, embora eficaz na alocação dos recursos, é cega a qualquer outro valor. “A única esfera da vida social que se globalizou até o momento foi a economia. Precisamos globalizar as pressões que o movimento democrático criou em nível nacional para circunscrever as ações dos mercados a valores externos a ele, incluindo a igualdade e a crise ecológica”, diz
As fotos desta reportagem são obras do artista dinamarquês Olafur Eliason, que expõe na pinacoteca do Estado de São Paulo, até 8 de janeiro. Ambas intitulam-se Seu Planeta Compartilhado