(Entrevista originalmente publicada no website do Vitae Civilis)
Quando Al Gore apresentou o desafio econômico e político da mudança climática, no filme Uma Verdade Inconveniente (2007), a mensagem fundamental era a de que precisamos nos desfazer de todo o aparato dos combustíveis fósseis sobre o qual a civilização atual se ergueu e substituí-lo por fontes de energia não poluentes. Trata-se de uma tarefa hercúlea, obviamente, mas que também sinaliza um grande espaço aberto para respostas calcadas em ciência e tecnologia.
De lá pra cá, entretanto, a ciência tem revelado que não é a apenas a fronteira do clima que a humanidade começa a romper. Em 2009, um estudo liderado pelo Centro de Resiliência de Estocolmo delineou as nove fronteiras planetárias, entre as quais, além da mudança do clima, também a biodiversidade e o ciclo do nitrogênio já teriam sido alterados além do limite para evitar verdadeiras catástrofes. O ciclo do fósforo e a acidificação dos oceanos seguem perigosamente o mesmo rumo.
Foi a esse panorama que a economista Kate Raworth, pesquisadora sênior da rede Oxfam, acrescentou o conceito de fronteiras sociais, no relatório Podemos viver dentro de um donut?. Ao apresentar o diagrama da rosquinha, delimitada por fronteiras ambientais máximas e limites sociais mínimos, a Oxfam demonstra que um “espaço seguro e justo para a humanidade” é aquele em que todos têm o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas, enquanto coletivamente se vive dentro das possibilidades biofísicas de um único planeta. Em outras palavras, é preciso reduzir o fosso das desigualdades entre ricos e pobres.
Essa é a mensagem inconveniente, apesar de todas as possibilidades transformadoras da tecnologia. “Se temos alguma chance de viver dentro da rosquinha, isso vai demandar uma equidade muito maior na distribuição de recursos globais, entre os países e no interior dos países”, diz a pesquisadora. Tal como a boa saúde respeita os limites do corpo humano, o espaço global da rosquinha também é aquele em que a humanidade tem as melhores chances de se desenvolver e de buscar suas aspirações.
Historicamente, as agendas social e ambiental foram percebidas como separadas e às vezes até como adversárias. No início do século 21, estamos testemunhando a fusão definitiva desses dois aspectos?
Concordo. Temos visto por muito tempo diferentes ministérios responsáveis por meio ambiente e por desenvolvimento, jornalistas diferentes escrevendo sobre esses assuntos, e diferentes ONGs promovendo-os. Foi na Rio-92 que o conceito de desenvolvimento sustentável efetivamente uniu as duas pontas. Vinte anos atrás, aquela geração nos disse: “vamos reconhecer essas coisas como interdependentes”. Por um lado, é tão óbvio que o bem-estar humano depende dos recursos naturais e que esses pontos estão absolutamente interligados, mas realmente é preciso reconhecer que o debate continuou de maneira separada.
Minha formação é de economista. Todo mundo que estuda a economia é introduzido nas primeiras páginas dos manuais de macroeconomia à ideia do círculo de bens e capitais e você vê a economia de mercado fluindo livremente na página. O que obviamente está faltando nessa imagem – e os economistas ecológicos têm apontado isso há anos – é que a economia também está baseada nos recursos ambientais.
Muitas pessoas têm tentado por muitos anos preencher essa lacuna, mas isso fica profundamente enraizado na mente de alguém que aprende sobre economia sem o ambiente, até o ponto em que você realmente não nota mais que a natureza está lá.
Eu realmente espero que estejamos chegando ao fim disso. Fiquei muito impressionada e satisfeita com a reação que o relatório da rosquinha tem provocado, quão ampla e entusiasmada tem sido a resposta ao conceito de um sistema operacional que reúne limites ambientais e sociais. Isso apenas demonstra que as pessoas clamam por modelos simples que digam “é claro que essas coisas são relacionadas e interdependentes”. Finalmente, temos uma imagem simples que mostra isso.
Essa fusão socioambiental se faz notar na trajetória da própria Oxfam, rede de organizações fundada para lidar com a questão da pobreza e que mais recentemente passou a incorporar o discurso ambiental.
Eu acho que a verdadeira mudança de perspectiva da Oxfam aconteceu nos últimos cinco ou dez anos, a partir do momento em que os programas nacionais e as equipe que trabalham em campo passaram a reportar inundações, secas, chuvas extemporâneas e imprevisíveis. Mais e mais pessoas perceberam que a Oxfam está trabalhando com comunidades que já foram afetadas pelas mudanças climáticas e isso está começando a desfazer 60 anos de conquistas no campo do desenvolvimento.
Temos feito campanhas sobre a mudança climática há vários anos. Nossa Campanha Cresça, que fala sobre um mundo em que todos tenham o suficiente para comer ou plantar, é baseada na ideia de desenvolvimento em um planeta de recursos finitos. Então, nós estamos avançando muito mais na compreensão sobre solo, água, alterações climáticas, energia e a integração com o desenvolvimento. É muito emocionante para a Oxfam voltar-se para áreas que originalmente eram vistas como preocupações ambientais e isso torna o nosso trabalho muito mais poderoso.
Mas o relatório da rosquinha parece trazer uma abordagem ainda mais inovadora. A mensagem é que a riqueza extrema é algo tão crítico quanto a pobreza extrema, portanto também deve ser objeto de debate?
Que ótimo que você viu isso no nosso relatório. Eu acho que está absolutamente certo. Acredito que a disseminação dos movimentos de ocupação em todo o mundo tem feito os políticos perceberem que as pessoas realmente se preocupam com as desigualdades extremas e observam o estrago feito pela concentração de riqueza, seja em termos de corrupção ou de iniquidade social, ou até mesmo em termos da nossa capacidade de vivermos circunscritos aos recursos de um único planeta.
Quando você reconhece que há limites planetários, isso automaticamente tem consequências distributivas. É extremamente importante reconhecer e tornar explícitas essas consequências. Isso é o que me motivou a colocar os limites sociais no coração das fronteiras planetárias, porque se você diz que há limites para aquilo que podemos usar, imediatamente se coloca a questão: eu vou receber o suficiente? A nossa cota será suficiente? Temos que colocar as demandas de direitos humanos no centro de tudo isso.
Se olharmos as estatísticas sobre por que estamos tão além do limite aceitável da mudança climática, fica politicamente impossível ignorar o problema de que 50% das emissões mundiais de carbono são produzidos por cerca de 10% das pessoas. Isso deixa absolutamente claro que, se queremos combater as alterações climáticas, então é preciso enfrentar as emissões não só nos países mais ricos, mas também nas classes mais ricas.
Se temos alguma chance de viver dentro da rosquinha, isso vai demandar uma equidade muito maior na distribuição de recursos globais, entre os países e no interior dos países. É isso que as negociações sobre mudanças climáticas estão tentando atingir. Claro que também é necessária maior eficiência no uso desses mesmos recursos e isso abre espaço para tecnologias transformadoras. Mas há também algo muito, muito político em torno da redistribuição dos recursos mundiais, de modo que todos tenhamos o suficiente para satisfazer as nossas necessidades, o que traz implicações para os ricos tanto quanto para os pobres.
Pode nos falar um pouco sobre os bastidores do relatório? Como surgiu a ideia dos círculos e da rosquinha? Em que momento você se sentiu que essa é uma discussão importante e que seria papel Oxfam promovê-la?
Como economista, eu sempre me senti extremamente frustrada. Como você pode construir o pensamento econômico sem reconhecer que a economia existe no âmbito do meio ambiente? Quando vi pela primeira vez o diagrama das nove fronteiras planetárias, senti uma forte empolgação. O que eu vi foram cientistas naturais dizendo: “bem, se vocês economistas não estão demarcando os limites, então nós vamos fazer isso por vocês”. Depois, Johan Rockström (co-autor do estudo sobre limites planetários) me disse que, na verdade, eles não chegaram pensar sobre as ramificações que o estudo traria para outras disciplinas. Eu acho isso lindo, porque mostra a fertilização cruzada da interdisciplinaridade. Eles estavam penas tentando falar com outros cientistas, mas pessoas de fora captaram essa ideia.
Então pensei que, finalmente, especialistas altamente respeitados estavam falando em limites, não em termos monetários, mas com métricas naturais. Eles falam em partes por milhão de dióxido de carbono, quilômetros cúbicos de água, a quantidade de nitrogênio no solo, e isso também é de suma importância porque provoca um reequilíbrio. Descrições econômicas tornaram-se tão poderosas no mundo da decisão política que tudo é expresso em termos monetários. Se você quer salvar uma floresta, precisa informar os bilhões de dólares que valem os serviços ecossistêmicos. Isso é muito dominante. Por isso é tão importante ter métricas naturais respondendo à economia e nos dizendo que precisamos entender algo sobre os fundamentos de como funciona o planeta.
Em seguida, tentei imaginar o que é que nós podemos trazer para esse desenho, a partir da perspectiva do desenvolvimento, da pobreza e dos direitos humanos. O que vi foi apenas um teto externo da utilização dos recursos, que revela a degradação ambiental inaceitável, mas é claro que também há um limite interno para que cada ser humano, no mínimo, tenha o suficiente para satisfazer os seus direitos fundamentais. No começo, pensei: será que isso vai ser levado a sério? Porque a ciência natural é vista como objetiva, acurada e técnica. A minha era uma ideia mais política, as pessoas veem a ciência social como mais subjetiva. Então guardei a ideia no bolso por um tempo.
Até que fui convidada para uma reunião que discutia o trabalho das fronteiras planetárias, incluindo alguns dos cientistas que escreveram o estudo original. E muito rapidamente a discussão se voltou para as pessoas dizendo “bem, este quadro é muito poderoso, mas silencia sobre as dimensões sociais”. Assim, eu me levantei e disse: “Eu tenho uma ideia. Posso desenhá-la na parede?”. Então eu fiz o diagrama da rosquinha e, em seguida, um dos cientistas olhou para o quadro e disse: “você acabou de desenhar o diagrama que nos faltava”.
Um dos princípios mais famosos da economia convencional é o trickle-down (gotejamento). Significa que se o topo da pirâmide fica ainda mais rico, essa riqueza se transforma em investimentos que escorrem para a base e eventualmente beneficiam os mais pobres. Isso está acontecendo na realidade?
Novamente, os movimentos de ocupação revelam que, em muitos países, em vez de gotejar para os pobres, a riqueza ficou mais concentrada nas mãos dos ricos. Como um relatório da Oxfam recentemente mostrou, a desigualdade de renda vem aumentando em quase todos os países do G20 desde 1990.
A rosquinha ajuda a tornar claro por que o trickle-down não pode ser uma estratégia de longo prazo para o desenvolvimento. Isso resultou em uma situação de desigualdade global extraordinária, na qual a humanidade coletivamente ultrapassa vários limites planetários, ao mesmo tempo em que deixa muitos milhões de pessoas sem acesso aos recursos mais essenciais. Promover muito mais equidade no uso de recursos é claramente crucial para que a humanidade viva em um espaço seguro e justo – e abordagens como o trickle-down não podem nos levar até lá.
Por outro lado, o argumento da rosquinha nos apresenta tanto um teto quanto um piso global. Significa que devemos ficar paralisados entre os dois extremos? Você teme que isso possa ser interpretado como barreira para o desenvolvimento e as aspirações humanas?
Os seres humanos prosperam dentro de limites físicos. Há um limite para a velocidade de nossos batimentos cardíacos, ou para a temperatura do nosso corpo, o que evita o risco de um colapso. Respeitar esses limites corporais não restringe o nosso potencial. Pelo contrário, nos protege do perigo e assim possibilita que busquemos as nossas aspirações.
Da mesma forma, os limites planetários têm o intuito de manter a humanidade dentro da boa saúde do Holoceno, era geológica extraordinariamente estável e benevolente dos últimos 10 mil anos ou mais, que deu origem à agricultura e que tem permitido que grandes civilizações se desenvolvessem. Por essa razão, é precisamente entre os limites ambientais e sociais que os seres humanos têm a maior chance de prosperar e buscar o seu bem-estar.
Na Rio +20, há conversas sobre erradicação da pobreza e também sobre economia verde, que aparentemente se apoia muito em eficiência, tecnologia e geração de empregos verdes. Estamos errando o alvo da desigualdade?
Muitos dos principais defensores da economia verde reconhecem claramente que o combate à pobreza e à desigualdade deve estar no centro desse conceito. É uma pena que o termo “economia verde” pareça colocar a economia em primeiro, o meio ambiente em segundo, e um silêncio sobre justiça social. Isso coloca o conceito em risco de ser mal interpretado de uma maneira muito estreita, com o foco de reiniciar o crescimento do PIB por meio de investimentos verdes. Essa abordagem estreita certamente fracassaria na questão da desigualdade.
Acho que uma das razões pelas quais a rosquinha está ganhando interesse na preparação para Rio +20 é que a justiça social fica muito visível. Na linguagem do desenvolvimento sustentável de três pilares, a rosquinha define a essência dos pilares ambiental e social em primeiro lugar, expressa em métricas objetivas – como partes por milhão de CO2, ou a porcentagem de pessoas vivendo na pobreza de renda – e só em seguida questiona como seria o desenvolvimento econômico, a fim de levar a humanidade para o espaço seguro e justo. Eu acho que essa deveria ser a perspectiva inaugural de qualquer curso de graduação em economia.
Se a desigualdade se tornasse a abordagem central para o desenvolvimento sustentável, quão difícil seria chegar a um acordo, no nível da comunidade internacional?
É claro que é um grande desafio criar um sistema de governança para fronteiras planetárias e sociais em nível internacional, mas, de certa forma, esse projeto já está em andamento há décadas. Há mais de 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos começou a definir a essência das fronteiras sociais, pondo em prática as leis internacionais que tratam de respeitar, proteger e cumprir os direitos de cada pessoa. A ideia contemporânea de fronteiras sociais adiciona um prisma de uso de recursos naturais para essa governança dos direitos que vem evoluindo há tanto tempo.
As tentativas de administrar fronteiras planetárias, ao contrário, são relativamente recentes. O protocolo de Montreal, em 1987, foi um sucesso importante na reversão da destruição da camada de ozônio, e acabou mostrando que a comunidade internacional pode agir em conjunto para se afastar de fronteiras que já ameaçam colapsar. Mas os desafios em curso no âmbito das negociações sobre mudança climática da ONU deixam claro que quando os governos negociam fronteiras planetárias, eles estão, naturalmente, negociando sobre os limites sociais e suas implicações distributivas simultaneamente.
Além disso, diversas fronteiras, tais como a acidificação dos oceanos e o ciclo do nitrogênio e do fósforo, ainda não têm qualquer governança global em vigor, apesar de ser tão necessário. Uma nova organização, a Planetary Boundaries Initiative (PBI), foi criada para explorar o que seria necessário para criar as estruturas legais de governança. E como a própria PBI assinala, o primeiro e mais importante passo é reconhecer que limites planetários existem e precisam ser respeitados – assim como os limites sociais também.
Para saber mais: Visite a página da rosquinha no site do Vitae Civilis, que apresenta vídeos e documentos para download, além da agenda de debates sobre esse tema durante a Rio+20.