Quem terá o domínio das atividades econômicas do século XXI? A literatura mais recente traz duas respostas polares a esta questão crucial
Pavan Sukhdev, em Corporation 2020, enfatiza o papel cada vez mais importante das corporações na vida contemporânea.
Seu diagnóstico a respeito das grandes empresas é implacável: até aqui, sua marca emblemática é o ano de 1920, quando foi juridicamente consolidada nos Estados Unidos a ideia de que a firma existe exclusivamente para atender aos acionistas: utilizá-la para cumprir obrigações socioambientais não faz parte das razões de sua existência e pode ser contestado legalmente. (Mais em Procura-se a empresa do futuro e na entrevista concedida por Sukhdev a Página22 na edição 69)
O ano de 2020, utilizado no título de seu livro, ecoa um conjunto de publicações originárias do meio empresarial mostrando a incompatibilidade entre o modo de funcionamento da empresa atual e a urgência de que surja uma vida social orientada pela redução das desigualdades e pela preservação dos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas.
Seu foco é a organização empresarial e as possibilidades de que esta se transforme para fazer dos mercados um meio de promover bem-estar, equidade e regeneração, ao menos parcial, do que já foi destruído até aqui. Esta abordagem é partilhada por trabalhos recentes da PricewaterhouseCoopers sobre mudanças climáticas, pelos da KPMG, calculando os custos ambientais de funcionamento das companhias e pelos da Deloitte (cuja expressão mais completa é o último livro de John Elkington, Os Zeronautas).
Mas serão as corporações (mesmo que impulsionadas pelas mudanças radicais que muitas consultorias globais preconizam em seus objetivos e em seus métodos) as organizações estratégicas da vida econômica das próximas décadas? Serão elas os vetores fundamentais da mutação para uma economia sustentável? Gerald Davis, da Universidade de Michigan, traz evidências de peso para responder a esta questão pela negativa.
Na verdade, a marca decisiva do capitalismo americano dos dias de hoje é o declínio e não o fortalecimento das corporações. Nos últimos 15 anos, a quantidade de empresas com ações em bolsa nos Estados caiu pela metade. As corporações respondem por parcela cada vez menor da produção material e do emprego. Mais que isso: suas funções históricas de promover coesão social por meio do acesso amplo a serviços de saúde e de aposentadoria deixaram de existir.
A proposta de fazer de cada cidadão o gestor de uma carteira de investimentos que lhe permitisse, por sua própria iniciativa, administrar sua previdência social e sua aposentadoria teve como resultado principal um aumento espantoso da pobreza e, sobretudo, das desigualdades na sociedade americana.
Um novo tipo de organização econômica emerge dos escombros do capitalismo corporativo que marcou a vida de quase todo o século XX, como mostra Gerald Davis em um texto recente. Sua base material e tecnológica está no extraordinário potencial das mídias digitais em democratizar não só o mundo da cultura, mas, de forma crescente, a própria produção material e de energia. “Soluções locais para produzir, distribuir e partilhar podem oferecer alternativas funcionais às corporações tanto para a produção como para o emprego”, diz Davis.
A ideia de que a organização empresarial é capaz de reduzir drasticamente os custos de transação e, em virtude disso, de que as formas hierarquizadas de gerir recursos materiais, energéticos e bióticos são sistematicamente superiores às descentralizadas encontra-se hoje sob franca contestação. Tecnologias digitais como a impressora em três dimensões e as máquinas de corte a laser levam ao mundo da matéria aquilo que a internet propiciou, nos últimos 20 anos, ao mundo da cultura.
Quando se juntam a essas novas técnicas o movimento em direção à oferta descentralizada de energia, o resultado é o desenho de uma vida econômica bem diferente daquela que marcou a era das corporações.
A grande virtude econômica da sociedade da informação em rede não reside tanto no aumento das capacidades produtivas, mas numa dupla contestação daquilo que marca a civilização industrial. Em primeiro lugar, ela abre caminho para que a iniciativa individual e as formas localizadas de produção ganhem eficiência econômica e disputem o coração da vida econômica em vários setores. Em segundo lugar, são formas de conceber, produzir e distribuir bens e serviços que se apoiam, cada vez mais, na cooperação social direta, na partilha.
Transformar as corporações em direção aos métodos e aos objetivos apontados nas sugestões recentes de várias consultorias globais é essencial. Mas tudo indica que o desenvolvimento sustentável vai apoiar-se cada vez mais na iniciativa econômica de indivíduos e comunidades locais com base em meios técnicos à disposição de sua criatividade e de seus talentos.
*Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, é autor de Muito além da Economia Verde. Twitter: @abramovay[:en]Quem terá o domínio das atividades econômicas do século XXI? A literatura mais recente traz duas respostas polares a esta questão crucial
Pavan Sukhdev, em Corporation 2020, enfatiza o papel cada vez mais importante das corporações na vida contemporânea.
Seu diagnóstico a respeito das grandes empresas é implacável: até aqui, sua marca emblemática é o ano de 1920, quando foi juridicamente consolidada nos Estados Unidos a ideia de que a firma existe exclusivamente para atender aos acionistas: utilizá-la para cumprir obrigações socioambientais não faz parte das razões de sua existência e pode ser contestado legalmente. (Mais em Procura-se a empresa do futuro e na entrevista concedida por Sukhdev a Página22 na edição 69)
O ano de 2020, utilizado no título de seu livro, ecoa um conjunto de publicações originárias do meio empresarial mostrando a incompatibilidade entre o modo de funcionamento da empresa atual e a urgência de que surja uma vida social orientada pela redução das desigualdades e pela preservação dos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas.
Seu foco é a organização empresarial e as possibilidades de que esta se transforme para fazer dos mercados um meio de promover bem-estar, equidade e regeneração, ao menos parcial, do que já foi destruído até aqui. Esta abordagem é partilhada por trabalhos recentes da PricewaterhouseCoopers sobre mudanças climáticas, pelos da KPMG, calculando os custos ambientais de funcionamento das companhias e pelos da Deloitte (cuja expressão mais completa é o último livro de John Elkington, Os Zeronautas).
Mas serão as corporações (mesmo que impulsionadas pelas mudanças radicais que muitas consultorias globais preconizam em seus objetivos e em seus métodos) as organizações estratégicas da vida econômica das próximas décadas? Serão elas os vetores fundamentais da mutação para uma economia sustentável? Gerald Davis, da Universidade de Michigan, traz evidências de peso para responder a esta questão pela negativa.
Na verdade, a marca decisiva do capitalismo americano dos dias de hoje é o declínio e não o fortalecimento das corporações. Nos últimos 15 anos, a quantidade de empresas com ações em bolsa nos Estados caiu pela metade. As corporações respondem por parcela cada vez menor da produção material e do emprego. Mais que isso: suas funções históricas de promover coesão social por meio do acesso amplo a serviços de saúde e de aposentadoria deixaram de existir.
A proposta de fazer de cada cidadão o gestor de uma carteira de investimentos que lhe permitisse, por sua própria iniciativa, administrar sua previdência social e sua aposentadoria teve como resultado principal um aumento espantoso da pobreza e, sobretudo, das desigualdades na sociedade americana.
Um novo tipo de organização econômica emerge dos escombros do capitalismo corporativo que marcou a vida de quase todo o século XX, como mostra Gerald Davis em um texto recente. Sua base material e tecnológica está no extraordinário potencial das mídias digitais em democratizar não só o mundo da cultura, mas, de forma crescente, a própria produção material e de energia. “Soluções locais para produzir, distribuir e partilhar podem oferecer alternativas funcionais às corporações tanto para a produção como para o emprego”, diz Davis.
A ideia de que a organização empresarial é capaz de reduzir drasticamente os custos de transação e, em virtude disso, de que as formas hierarquizadas de gerir recursos materiais, energéticos e bióticos são sistematicamente superiores às descentralizadas encontra-se hoje sob franca contestação. Tecnologias digitais como a impressora em três dimensões e as máquinas de corte a laser levam ao mundo da matéria aquilo que a internet propiciou, nos últimos 20 anos, ao mundo da cultura.
Quando se juntam a essas novas técnicas o movimento em direção à oferta descentralizada de energia, o resultado é o desenho de uma vida econômica bem diferente daquela que marcou a era das corporações.
A grande virtude econômica da sociedade da informação em rede não reside tanto no aumento das capacidades produtivas, mas numa dupla contestação daquilo que marca a civilização industrial. Em primeiro lugar, ela abre caminho para que a iniciativa individual e as formas localizadas de produção ganhem eficiência econômica e disputem o coração da vida econômica em vários setores. Em segundo lugar, são formas de conceber, produzir e distribuir bens e serviços que se apoiam, cada vez mais, na cooperação social direta, na partilha.
Transformar as corporações em direção aos métodos e aos objetivos apontados nas sugestões recentes de várias consultorias globais é essencial. Mas tudo indica que o desenvolvimento sustentável vai apoiar-se cada vez mais na iniciativa econômica de indivíduos e comunidades locais com base em meios técnicos à disposição de sua criatividade e de seus talentos.
*Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, é autor de Muito além da Economia Verde. Twitter: @abramovay