Na zona cinzenta entre a iniciativa privada e a esfera pública, podem sair enfraquecidas as bases da sociedade civil, das quais se espera que emerjam forças e pressões vitais para o exercício democrático
Embora o financiamento às atividades de interesse público conduzidas por organizações de natureza privada seja uma questão bastante relevante, sua presença na agenda brasileira é surpreendentemente baixa. Na grande imprensa, o assunto surge raramente e, quando aparece, vem muitas vezes associado a uma agenda negativa, de escândalos e abusos.
Pouco é lembrado que a existência de organizações da sociedade civil autônomas e qualificadas tem como objetivo não apenas suprir serviços descuidados pelos governos e pelas empresas, mas também – e principalmente – garantir que as bases da sociedade ouçam e sejam ouvidas, tanto entre si quanto pelas instituições públicas e privadas.
Sem a constante reflexão, interlocução e vigilância propiciadas por milhares de organizações criadas e operadas por cidadãos independentes, a esfera pública torna-se estéril. Sem a criatividade, a crítica e a pressão popular organizada, a agenda coletiva fica irremediavelmente refém da burocracia estatal e dos interesses dos que, detendo poder, visam antes manter sua hegemonia do que propiciar o bem comum. Mas quem banca as organizações da sociedade civil?
Não esquecendo tradicionais fontes de financiamento (como doações de pessoas físicas, fundos públicos ou privados e cooperação internacional), centro minha atenção em uma parte especialmente dinâmica e de crescente importância nesse cenário: os recursos que fluem das empresas para a sociedade civil, diretamente ou por meio de seus institutos e fundações.
Esse investimento social privado ocorre sob variadas formas e denominações, e não raro se confunde com a responsabilidade social empresarial. É inegável a importância dessa fonte de recursos, e não se trata aqui de desmerecê-la ou diminuir sua importância. Chamo atenção, porém, para um aspecto crítico e que, muitas vezes, passa despercebido.
O fato de muitas empresas terem começado a direcionar recursos para apoio a projetos sociais e ambientais fez surgir críticas no meio empresarial, embasadas no argumento de que – sendo elas criadas com o objetivo fundamental de maximizar seus resultados e remunerar o capital investido – tais contribuições voluntárias seriam incompatíveis com seu propósito original.
Nessa ótica, contribuições filantrópicas caberiam somente aos proprietários que, tendo recebido seus dividendos e pago seus impostos, são livres para decidir o que fazer com os recursos gerados por seus negócios.
Reagindo a essa crítica com uma lógica do tipo “ganha-ganha”, surge o entendimento de que a contribuição da empresa para além do legalmente exigido seria justificável na medida em que, melhorando o ambiente em que ela se insere, lhe traria ganhos tanto em termos de reputação quanto de vantagem competitiva e produtividade, entre outros aspectos.
Assim, desde que alinhada com os interesses da empresa, a contribuição voluntária seria justificável e desejável, não conflitando com seu mandato e com o compromisso perante acionistas ou investidores.
Tal lógica, conforme se aprimora, desemboca em soluções criativas e engenhosas, nas quais se obtém a otimização dos benefícios sociais e ambientais dos recursos alocados, combinada a substanciais vantagens para a empresa financiadora. No mundo das empresas, é natural que soluções assim sejam festejadas e incentivadas. Pergunta-se, porém, a partir de que ponto tais investimentos deveriam deixar de ser vistos como contribuição para a sociedade, e passar a ser encarados como uma estratégia de negócios que maximiza as vantagens para a empresa e, como subproduto, também para a sociedade. Difícil dizer onde está a linha que separa uma coisa da outra…
E para que precisamos dessa distinção? Se está bom para as empresas e gerando benefícios para a sociedade, por que não deixar simplesmente que o dinheiro flua e irrigue cada vez mais essas exemplares soluções?
Há pelo menos uma boa razão prática para vermos com cautela essa mescla entre iniciativa privada e esfera pública. Ao borrar a fronteira entre essas duas lógicas, perdemos a capacidade de discernir entre o dinheiro que por interesse financia a “prestação criativa de serviços sociais” e aquele que, com o devido respeito à autonomia das bases, pode apoiar a ação da sociedade civil na manutenção de uma esfera pública fértil e pulsante, sensível à percepção e à pressão popular.
Ao deixarmos minguar esse elemento vital da sociedade democrática, perdemos a capacidade de bem ocupar espaços públicos fundamentais, como conselhos e outras instâncias que, rapidamente, vão sendo tomados pelos mais baixos interesses.
A fraca reação popular às recentes afrontas perpetradas por certos políticos no Congresso Nacional são um eloquente exemplo disso, e um alerta de que é preciso, com urgência, irrigar as raízes de nossa democracia.
*COORDENADOR DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL / ARTICULAÇÃO E PARCERIAS DO GVces[:en]Na zona cinzenta entre a iniciativa privada e a esfera pública, podem sair enfraquecidas as bases da sociedade civil, das quais se espera que emerjam forças e pressões vitais para o exercício democrático
Embora o financiamento às atividades de interesse público conduzidas por organizações de natureza privada seja uma questão bastante relevante, sua presença na agenda brasileira é surpreendentemente baixa. Na grande imprensa, o assunto surge raramente e, quando aparece, vem muitas vezes associado a uma agenda negativa, de escândalos e abusos.
Pouco é lembrado que a existência de organizações da sociedade civil autônomas e qualificadas tem como objetivo não apenas suprir serviços descuidados pelos governos e pelas empresas, mas também – e principalmente – garantir que as bases da sociedade ouçam e sejam ouvidas, tanto entre si quanto pelas instituições públicas e privadas.
Sem a constante reflexão, interlocução e vigilância propiciadas por milhares de organizações criadas e operadas por cidadãos independentes, a esfera pública torna-se estéril. Sem a criatividade, a crítica e a pressão popular organizada, a agenda coletiva fica irremediavelmente refém da burocracia estatal e dos interesses dos que, detendo poder, visam antes manter sua hegemonia do que propiciar o bem comum. Mas quem banca as organizações da sociedade civil?
Não esquecendo tradicionais fontes de financiamento (como doações de pessoas físicas, fundos públicos ou privados e cooperação internacional), centro minha atenção em uma parte especialmente dinâmica e de crescente importância nesse cenário: os recursos que fluem das empresas para a sociedade civil, diretamente ou por meio de seus institutos e fundações.
Esse investimento social privado ocorre sob variadas formas e denominações, e não raro se confunde com a responsabilidade social empresarial. É inegável a importância dessa fonte de recursos, e não se trata aqui de desmerecê-la ou diminuir sua importância. Chamo atenção, porém, para um aspecto crítico e que, muitas vezes, passa despercebido.
O fato de muitas empresas terem começado a direcionar recursos para apoio a projetos sociais e ambientais fez surgir críticas no meio empresarial, embasadas no argumento de que – sendo elas criadas com o objetivo fundamental de maximizar seus resultados e remunerar o capital investido – tais contribuições voluntárias seriam incompatíveis com seu propósito original.
Nessa ótica, contribuições filantrópicas caberiam somente aos proprietários que, tendo recebido seus dividendos e pago seus impostos, são livres para decidir o que fazer com os recursos gerados por seus negócios.
Reagindo a essa crítica com uma lógica do tipo “ganha-ganha”, surge o entendimento de que a contribuição da empresa para além do legalmente exigido seria justificável na medida em que, melhorando o ambiente em que ela se insere, lhe traria ganhos tanto em termos de reputação quanto de vantagem competitiva e produtividade, entre outros aspectos.
Assim, desde que alinhada com os interesses da empresa, a contribuição voluntária seria justificável e desejável, não conflitando com seu mandato e com o compromisso perante acionistas ou investidores.
Tal lógica, conforme se aprimora, desemboca em soluções criativas e engenhosas, nas quais se obtém a otimização dos benefícios sociais e ambientais dos recursos alocados, combinada a substanciais vantagens para a empresa financiadora. No mundo das empresas, é natural que soluções assim sejam festejadas e incentivadas. Pergunta-se, porém, a partir de que ponto tais investimentos deveriam deixar de ser vistos como contribuição para a sociedade, e passar a ser encarados como uma estratégia de negócios que maximiza as vantagens para a empresa e, como subproduto, também para a sociedade. Difícil dizer onde está a linha que separa uma coisa da outra…
E para que precisamos dessa distinção? Se está bom para as empresas e gerando benefícios para a sociedade, por que não deixar simplesmente que o dinheiro flua e irrigue cada vez mais essas exemplares soluções?
Há pelo menos uma boa razão prática para vermos com cautela essa mescla entre iniciativa privada e esfera pública. Ao borrar a fronteira entre essas duas lógicas, perdemos a capacidade de discernir entre o dinheiro que por interesse financia a “prestação criativa de serviços sociais” e aquele que, com o devido respeito à autonomia das bases, pode apoiar a ação da sociedade civil na manutenção de uma esfera pública fértil e pulsante, sensível à percepção e à pressão popular.
Ao deixarmos minguar esse elemento vital da sociedade democrática, perdemos a capacidade de bem ocupar espaços públicos fundamentais, como conselhos e outras instâncias que, rapidamente, vão sendo tomados pelos mais baixos interesses.
A fraca reação popular às recentes afrontas perpetradas por certos políticos no Congresso Nacional são um eloquente exemplo disso, e um alerta de que é preciso, com urgência, irrigar as raízes de nossa democracia.
*COORDENADOR DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL / ARTICULAÇÃO E PARCERIAS DO GVces