Como a globalização transformou a prática esportiva em uma máquina de fazer dinheiro
Os interesses econômicos que circundam o momento idílico de um torcedor diante da performance de seu time de coração são tantos e envolvem uma gama de mercados tão extensa que algumas poucas páginas seriam insuficientes para acomodar todas as variantes. Alguns recortes possíveis são os grandes movimentos históricos do século XX, que fizeram do esporte um fenômeno socioeconômico de massa; a lógica mercantilista atrás dos grandes eventos, atraindo ao consumo bilhões de pessoas ávidas por lazer e entretenimento; e a globalização do setor.
Esse conjunto de transformações no contexto do esporte foi responsável por um impacto expressivo no Produto Interno Bruto (PIB) dos países industrializados e de média industrialização, caso dos Brics. Exemplos brasileiros dão uma ideia do potencial desse mercado: o setor esportivo cresceu na década passada incríveis 6,2% ao ano, em média [1] – isso sem Copa do Mundo e Jogos Olímpicos no calendário –, enquanto o aumento anual médio do PIB nacional no mesmo período não passou de 3,2%. [2].
Os franceses Jean-François Bourg e Jean-Jacques Gouguet [3] relatam que o esporte começou a conquistar dimensão global ainda no século XIX, com os torneios internacionais de tênis Wimbledon (Londres, Reino Unido) e o US Open (Aberto dos Estados Unidos), que tiveram início em 1877 e 1881, respectivamente, e os Jogos Olímpicos modernos, em 1896. Entretanto, a sua transformação em setor econômico com intensa movimentação de capitais ocorreu quase um século mais tarde, nos anos 1980, quando os países desenvolvidos reagiam ao fim dos trinta anos gloriosos – período do pós-guerra (de 1945 a 1975) –, caracterizados por alto crescimento econômico sustentado no modo de produção fordista, em que a base tecnológica do capitalismo eram as linhas de produção em massa concebidas por Henry Ford [4].
[1] O dado é do economista Istvan Kasznar e do advogado Ary Graça Fo, autores de “A Indústria do Esporte no Brasil – Economia, PIB, Emprego e Evolução Dinâmica” (M. Books, 2012).
[2] Dados do estudo “Brasil Sustentável: Impactos Socioeconômicos da Copa do Mundo 2014″, produzido pela Ernst & Young em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV).
[3] Autores de “Economia do Esporte”, publicado no Brasil pela Editora da Universidade Sagrado Coração (Edusc), em 2005.
[4] No início do século XX, Henry Ford fundou a Ford Motor Company. O modelo T, ou o Ford Bigode, como era chamado pelos brasileiros, foi o primeiro automóvel fabricado em linhas de montagem para produção em série
O mundo do esporte ilustra muito bem o movimento pós-fordista, que tem início em meados dos anos 1970, quando o capital começa a buscar inovações para driblar a estagnação dos Mercado de produtos padronizados. O sociólogo Wolfgang Streeck, diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, sediado em Colônia, na Alemanha, explica em artigo publicado na revista Piauí de abril que, naquele período, as empresas começaram a colocar a individualização, tanto dos consumidores quanto dos produtos, a serviço da expansão comercial. Ou seja, novas linhas de produção permitiram a customização de bens de consumo, reforçando a ideia de diferenciação.
“Sem acabar com a produção em massa, os mercados substituíram o objetivo de satisfação das necessidades pelo objetivo de atendimento dos desejos”, afirma. Os automóveis talvez representem o exemplo mais contundente. Porém, a indumentária esportiva também é um grande destaque quanto à sofisticação que se pode agregar a alguns bens de consumo.
Duas empresas alemãs simbolizam a transformação do esporte como instituição social, que, de acordo com Streeck, migrou de uma cultura de ascetismo para outra de narcisismo consumista em menos de três décadas. As alemãs Adidas e Puma, que, até o fim do fordismo, não passavam de produtoras locais de dois ou três estilos de chuteiras de futebol e tênis de corrida, transformaram-se em companhias globais multibilionárias. Passaram a ganhar dinheiro, basicamente, com produtos de moda, que vão de centenas de modelos de tênis a perfumes.
Até o início dessa transformação, os Jogos Olímpicos, segundo o sociólogo alemão, “eram um domínio dos ‘amadores’, de quem se esperava que não ganhassem dinheiro nenhum naquela atividade, considerada oficialmente como não mais que uma obsessão pessoal ou, conforme o caso, um dever patriótico”.
É a partir da metade da década de 1970 que se estabelece uma mudança de grandes proporções, na qual a lógica do amadorismo, ou “espírito esportivo”, transforma-se em uma gigantesca máquina de fazer dinheiro, tanto para os atletas profissionais como para os patrocinadores, a publicidade, a mídia e um complexo de outras empresas produtoras de bens de consumo relacionados ao exercício físico ou ao corpo.
Paralelamente a todo esse movimento de reorganização da gestão administrativa dos grandes clubes nos Estados Unidos e na Europa, observa-se um uso do esporte pelo poder no cenário da Guerra Fria. “A contagem de medalhas e de vitórias tinha um valor político de grande importância”, lembram Bourg e Gouguet. Também se aproveitam desse filão as ditaduras sul-americanas.
Na Copa do Mundo de 1970, com vitória da Seleção Brasileira, o governo do general Emílio Garrastazu Médici investe alto em uma campanha promocional (“Pra frente Brasil”) com o propósito de despertar o nacionalismo e com isso disfarçar a natureza ditatorial do regime de poder militar. (mais em linha do tempo do futebol)
Nos últimos 40 anos, a globalização passou, então, a funcionar como um catalisador de transformações em todos os setores do complexo industrial esportivo. Na opinião dos autores franceses, a permeabilidade do esporte profissional à economia de mercado imposta pela globalização põe em xeque os valores éticos tradicionais que constituem a própria essência da atividade esportiva, como o fair play, o respeito a si e aos adversários.
“Os meios (econômicos) suplantam a finalidade (esportiva), o conjunto do sistema inverte-se e chega à sua própria negação: carreirismo, doping, corrupção, trapaças…”, criticam Bourg e Gouguet. Embora essa análise crítica refira-se ao esporte profissional, estruturado em torno de competições, recordes e muito dinheiro, os autores reforçam que o esporte amador, com suas múltiplas externalidades positivas (inserção social, educação, saúde etc.), igualmente se insere nessa dinâmica de mercado.
A forte mercantilização torna cada vez mais difusos os limites da cadeia produtiva do esporte. E a escassez de estudos acadêmicos com uma abordagem socioeconômica do esporte também contribui na formação dessa zona cinzenta. Segundo dados da Comissão Europeia, a atividade esportiva em geral impacta diretamente o seguinte conjunto de setores: artigos esportivos (roupas, calçados e equipamentos), espetáculos (ingressos), programas (TV por assinatura), transmissões (direitos de transmissão), trabalho (renda dos atletas profissionais), publicidade e patrocínio, ensino, imprensa, construção, obras públicas (equipamentos), medicina, alimentação suplementar, seguros e produtos farmacêuticos. No início dos anos 2000, o fluxo monetário nessa cadeia já correspondia a cerca de 3% de todo o comércio mundial.
MEGACIFRAS
Levantamentos e previsões mais recentes dão conta de que a crise econômico-financeira global perpassa o universo esportivo sem deixar sequelas aparentes. A segunda edição do relatório Perspectiva para o Mercado Global do Esporte para 2015 [5], da consultoria multinacional PwC, alerta que a indústria esportiva global tem enfrentado desafios financeiros e comerciais, boa parte relacionados ao comportamento cauteloso dos consumidores diante das incertezas quanto aos rumos da economia. Mesmo assim, as previsões mostram um crescimento da receita no mercado global de esportes de 3,7% ao ano entre 2010 e 2015, partindo de US$ 121,4 bilhões e fechando em US$ 145 bilhões [6].
[5] Originalmente, Outlook for the Global Sports Market to 2015.
[6] As cifras englobam tão somente as atividades relacionadas às competições esportivas: receita com ingressos, direitos de transmissão, patrocínios e merchandising.
Parte significativa desse crescimento os analistas atribuem à recuperação da propaganda na TV, à constante migração das transmissões de jogos para a TV fechada, ao retorno dos patrocínios por parte da indústria de automóveis, que aos poucos dá sinais de recuperação da crise econômica global, além de à série de megaeventos esportivos – em 2014, Olimpíadas de Inverno em Sóchi, na Rússia, e Copa do Mundo no Brasil. Esses recursos distribuem-se pelo globo do seguinte modo: 41% circulam na América do Norte, 35% no bloco chamado Emea (que inclui os países da Europa, Oriente Médio e África), 19% na Ásia (Pacífico) e 5% na América Latina.
A previsão de crescimento do setor nos países que compõem os Brics (a projeção não inclui a África do Sul), que nos últimos anos têm sediado os megaeventos esportivos, supera a marca global, chegando a 4,5% ao ano, em média, no mesmo período.
RITMO CHINÊS
O estudo produzido pela FGV e Ernst & Young calcula que a Copa do Mundo de 2014 produzirá um efeito cascata na economia brasileira, com chance de quintuplicar o total de aportes aplicados diretamente no evento, além de impactar diversos setores.
As obras de infraestrutura e a organização da Copa estão custando R$ 22,46 bilhões e a competição deverá injetar, adicionalmente, R$ 112,79 bilhões na economia brasileira. Fora do calendário de efemérides, o setor de esportes no Brasil responde por 1,6% do PIB, o que equivale a cerca de R$ 67 bilhões, incluídas as receitas de uma ampla gama de itens, como clubes e entidades, marketing, mídia, comércio, vestuário, artigos e equipamentos, eventos, serviços em geral etc.
As contas são da Pluri Consultoria, do Paraná, especializada em negócios na área do esporte, que prevê ainda um crescimento entre 2011 e 2016 de 22% da participação do setor esportivo na economia, aproximando-se dos 2% do PIB. Na visão do diretor da Pluri, Fernando Ferreira, “a economia brasileira anda em ritmo europeu, enquanto o esporte dispara em ritmo chinês”.
No entanto, para crescer em ritmo chinês, o esporte precisa submeter-se fortemente à lógica mercantil e permanecer sob o domínio do fator econômico-financeiro. O filósofo Michael Sandel, conhecido pelo curso Justice, que ministra em Harvard, e que virou série de televisão, perguntaria: e os limites morais desse crescimento, onde ficam?
Em sua obra O Que o Dinheiro Não Compra, Sandel discorre sobre a transformação dos jogos nacionais em mercadoria no país onde tudo parece estar à venda. Nos Estados Unidos, jogadores estelares vendem souvenirs, como bastões e bolas de beisebol autografados, por até US$ 1.000. Camarotes de luxo nos estádios chegam a custar US$ 350 mil por temporada, mas, enquanto aumentam o faturamento da bilheteria, rompem com a interação que havia entre os torcedores de todas as faixas de renda. E uma das mais novas modalidades de fazer caixa: clubes, estádios e equipamentos, inclusive públicos, vendem às grandes empresas o direito de nome.
Sandel conta que, em 1998, apenas três estádios americanos tinham acordo de direito de nome nos Estados Unidos, o que envolvia quantia irrisória para os padrões atuais: US$ 25 milhões. Em 2004, havia 66 desses contratos – mais da metade de todos os estádios de beisebol, futebol americano, basquete e hóquei –, totalizando US$ 3,6 bilhões. Em 2010, mais de 100 empresas desembolsavam dinheiro para dar nomes aos estádios de equipes da primeira divisão.
Essa sequência de aquisições de direito de nome foi coroada em 2011 com a compra dos direitos de nome do estádio de basquete das Olimpíadas de Pequim pela MasterCard. Naturalmente, o direito adquirido de nome não se limita a um letreiro no portão do estádio, como observa Sandel, mas estende-se à locução dos narradores de jogos nas transmissões de rádio e televisão. E nessa hora o mercado se mistura ao momento lúdico e apaixonado do torcedor, um momento que não tem preço.