Por Amália Safatle
“A sociedade brasileira desconhece, até hoje, o valor de uma imprensa livre e fiscalizadora do poder”, afirma o professor Eugênio Bucci
Até ser empunhada nas bandeiras e defendida em todo o País, a noção de que educação é um serviço fundamental levou tempo para ser assimilada. O mesmo não se deu ainda com a imprensa livre: a sociedade brasileira desconhece, até hoje, o valor de um jornalismo que fiscaliza o poder – mesmo entre a maioria dos donos de empresas de comunicação. A denúncia do professor Eugênio Bucci assume tom mais dramático quando ele compara o atual momento do jornalismo a um iceberg derretendo. Amparada até então em modelo de negócios do século XIX, a profissão é chacoalhada pelos adventos tecnológicos que revolucionam o jeito de comunicar e se financiar, ao mesmo tempo em que vive um paradoxo: as matérias jornalísticas nunca foram tão lidas, seja nos veículos, seja nas redes sociais.
Nada mudou, no entanto, no conceito de notícia e no papel do jornal: cuidar do que é essencial, do que é de interesse público, dos temas relevantes, não necessariamente do que vai disputar grandes audiências. Não é o espetáculo que o salvará, mas a qualidade de sua produção – acredita o professor.
Sobre as manifestações que rechaçaram os grandes veículos de comunicação em praça pública, Bucci lembra que “a imprensa é uma referência indireta da inteligência difusa que pressentimos nos protestos todos”.
O que estamos vivendo é uma crise do jornalismo em si, ou é a crise de um modelo de negócios do jornalismo que se tornou ultrapassado nesta era pós-industrial?
Eu apontaria dois fatores a considerar e aparentemente contraditórios. O primeiro é que os modelos de financiamento do jornalismo passam pelo pior momento de sua história, não há precedentes para algo tão sério. Quase todos os dias temos notícias de demissão, enxugamento, redução. O tamanho desse mercado parece que vai encolhendo, não há superação em receitas, em faturamento publicitário. Há uma situação destoante em países como Brasil, Índia, Rússia, China – um pouco dos Brics –, porque parece que nesses lugares ainda há espaço para crescimento de circulação de veículos de papel. O mercado publicitário aumenta, mas aí já não aumenta de forma generosa para o jornalismo, e sim para o entretenimento e para a comunicação eletrônica.
Mesmo assim, estamos em um país que não sofre tanto com essa crise (internacional), embora haja uma gravíssima crise do modelo de financiamento do jornalismo. De onde virão os recursos?
Os veículos de papel que migram para a internet não conseguem ter o mesmo faturamento. É um faturamento que, quando bom, é da ordem de um décimo ou um vigésimo do que se tinha antes.
Por que isso acontece?
Porque na internet a publicidade não se comporta da mesma maneira. Basicamente porque a imprensa deixou de ser um canal obrigatório para os anunciantes encontrarem os seus potenciais consumidores. O anunciante pode se comunicar diretamente. Em termos muito apressados, os jornalistas não têm mais o que entregar.
Os anunciantes não precisam mais de intermediários?
Os anunciantes não precisam mais deste intermediário. Então, o primeiro fator é a diminuição do modelo de financiamento dos veículos e da atividade jornalística. O segundo fator que contradiz esse primeiro, aparentemente, é que nunca as matérias jornalísticas foram tão lidas, não apenas pelos leitores ligados aos veículos, mas pelos leitores que estão nas redes sociais. As reportagens, os artigos, as críticas, os editoriais circulam por todo lugar. Alguém manda para um amigo, as pessoas republicam, alguém comenta, aí a outra pessoa vai ler no jornal, que muitas vezes têm conteúdo aberto ou semiaberto. Então, nunca tivemos tanto público, e tanta dificuldade em arrecadar uma receita que sustente a atividade jornalística.
Isso, pra mim, é o que marca esse momento. O jornalismo é uma atividade essencial, encontra leitores e tem prestado serviços cada vez mais relevantes. Agora mesmo, o Guardian, por meio de um jornalista americano que mora no Brasil, acabou de revelar que os EUA estão monitorando conversas telefônicas. Essa é uma revelação de uma redação. Veja o papel do jornalista na Primavera Árabe, na Turquia, tudo isso mostra uma relevância, se não inédita, muito grande.
O consumidor dessa informação não quer pagar por ela?
Esta é uma pergunta central. Não conseguimos saber se quer ou não quer pagar. Mas esbarra na expressão “modelo de negócios”, porque é preciso ter uma proposta para esse leitor. “Olha, você quer ler isso, então funciona assim: você compra esse envelope, e aqui estão as matérias, ou paga uma mensalidade e lê quantas matérias quiser, ou paga por clique.” Não temos maneiras de possibilitar que as pessoas sustentem o jornalismo diretamente. Os modelos que existem são a assinatura, que vem da mídia impressa. Eu vou receber as notícias do dia impressas em umas folhas de papel, que posso comprar na banca ou receber em casa. Esse é um modelo que foi desenvolvido do século XIX para o XX, e que vinha servindo. Com a mudança do padrão tecnológico, a cadeia de valor do negócio da imprensa mudou também.
Antes, como este documento comenta (ele se refere a “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos novos tempos”, produzido pelo Tow Center for Digital Journalism, da Universidade Columbia, e traduzido pela Revista de Jornalismo ESPM), uma empresa jornalística concentrava a atividade de apuração e redação da notícia, a venda de publicidade e a distribuição. E a impressão. No subsolo da redação, estavam as rotativas. Tudo isso gerava uma cadeia de valor cujos recursos voltavam para a empresa jornalística. Hoje, na era digital, uma redação é apenas uma redação. A distribuição é paga para as empresas de telecomunicação, de telefonia, de tecnologia. É um dinheiro que não é pago mais para a redação. E a publicidade está dispersa nos cliques que pessoas dão, e vão remunerar outra empresa.
Uma saída possível são as redações que vivem de doações, a exemplo da ProPublica (redação americana sem fins lucrativos, saiba mais em “Prenda-me, se for capaz”). Essas redações podem propor o seguinte pacto ao doador: você me dá um tanto de dinheiro, com essa quantia eu financio por 2 ou 10 anos a atividade jornalística investigativa e as pessoas vão acessar isso aqui de graça. Mas será que isso sustenta a imprensa?
Para esse novo padrão tecnológico, não temos ainda um modelo de negócios. Pode até ser que a pessoa queira pagar, mas não existe como pagar. Ela vai depositar um dinheiro, fazer uma doação, como vai medir isso?
Não temos porque talvez não haja ainda demanda para isso?
Sim. Provavelmente a gente não tem porque o tempo da elaboração tem sido muito mais longo que o da maturação dessas novas formas de comunicar. A institucionalização que poderia levar a um modelo de negócios demora mais. Antes que alguém tenha sido capaz de conceber, pôr em prática, institucionalizar aquele modelo, ele já vem sendo praticado de outras formas. Os jornais são pegos no contrapé. O New York Times tem sido observado como farol, todo mundo fica observando seus movimentos para ver se vão funcionar ou não. Ele já teve períodos em que fechou o conteúdo, depois percebeu que, restringindo o conteúdo e abrindo só pra quem pagasse, ficava do lado de fora de um movimento muito forte que é o da internet gratuita. E então abriu o conteúdo de novo. Aí ocorreu que deveria fazer uma cobrança parcial, e criou o paywall, por meio do qual os leitores pagam de acordo com a quantidade que usam. E ainda estão testando isso aí, mas ainda não têm uma conclusão.
Essa é uma das experiências, há várias outras. Venda de matéria a granel serve para matéria de arquivo, não serve para matéria quente. Então como é que isso vai ficar? As assinaturas nos tablets vão aos poucos se tornando mais importantes, mas isso nos grandes jornais americanos, na revista Economist. A Veja no Brasil parece que já tem uma circulação semanal da ordem de 60 mil exemplares em tablets, que pode ir até 100 mil rapidamente. Mas isso é suficiente para sustentar essa publicação? Ela cobra o mesmo preço no tablet e no papel, com a vantagem de que no tablet não tem os custos do papel.
Eu sou do palpite de que as pessoas querem pagar, mas ainda não dá para afirmar isso.
Segundo o ensaio do Tow Center, que citamos há pouco, existe uma tendência de contínuo enfraquecimento da noção daquilo que constitui notícia – e por conseguinte daquilo que constitui uma organização jornalística. Os autores mencionam o exemplo do Facebook, que, embora seja estruturado de forma muito diferente de uma organização jornalística, é um elemento crucial do novo ecossistema do jornalismo. Com isso, a discussão vai muito além do modelo de negócios e chega a “o que é notícia”?
Sem dúvida. E também a “o que é jornalismo”.
Então esta é uma crise de identidade do jornalismo?
Muitos acreditam que sim, que se trata de uma crise quase insuperável de identidade. Alguns não se veem mais na profissão, acham que vão encontrar lugar nas assessorias de imprensa, na comunicação corporativa, no marketing eleitoral.
Temos mais perguntas que respostas?
Sim, mas o bom é que estamos conseguindo fazer perguntas sistêmicas. Que não são mais de campos isolados, e conseguem iluminar questões laterais, fenômenos contíguos, dando a sensação de que começamos a tratar de um todo.O que é notícia? É uma informação que, quando revelada, altera expectativas. Muda o seu senso de futuro, a inserção no seu ambiente. Uma notícia diz que a identidade de uma pessoa não é mais aquela. Diz que onde todo mundo pensava que existia uma cabine telefônica existe um poço de petróleo, ou um centro de venda de cocaína. Uma notícia muda o selo que a linguagem atribui a cada coisa, muda o nome, o significado das coisas. Uma notícia é sempre algo que alguém quer esconder. Sempre fere algum poder. Sempre dá vantagem a um lado e leva desvantagem a outro lado. Fere suscetibilidades, interesses ou territórios. Isso mudou? Talvez menos. Mas o que mudou é: o que é relevante para as pessoas? O que é o interesse comum? Será que um assunto de interesse público é o que desperta curiosidade? A saia da Lady Gaga rouba a atenção da violação de privacidade americana.
O que a era digital trouxe muito foi uma expansão da conversa do mundo da vida. Os assuntos de interesse comum permanecem, mas a futilidade, a vaidade, o narcisismo, isso explodiu, ganhou uma dimensão que não tinha. Isso não veio com a internet, mas a internet dá muito impulso a esses traços. Parecem destroçar o próprio conceito de notícia… mas não, acho que aí tem uma pista falsa.
O jornalismo terá de cuidar do que é essencial, do que é de interesse público, terá de tratar de temas relevantes, não necessariamente do que vai disputar grandes audiências. Não é o espetáculo. Mas, tratando de temas centrais, de interesse público, terá de ser subsidiado, como sempre foi. O jornalismo de qualidade sempre foi subsidiado de alguma forma.
A crise do financiamento já está afetando a qualidade do jornalismo?
Não sei se isso já está acontecendo, mas a tendência é que aconteça. Três coisas estão certas. Uma: trocar equipes mais caras por mais baratas. Duas: “pejotização” da imprensa (o jornalista deixa de ser assalariado e se transforma em uma pessoa jurídica prestadora de serviços), com renegociação de salário para valores mais baixos. Três: a escala de circulação de certos veículos tende a mudar, o jornalista não vai trabalhar predominantemente em veículos de grande circulação, mas em núcleos de inteligência, espécies de think tanks, com remuneração menor.
Para essa atividade mais pulverizada, o crowdfunding, as estratégias colaborativas e os formatos mais orgânicos e híbridos seriam os novos caminhos? (leia mais aqui)
O crowdfunding é um esboço de um modelo de negócios. Mas funciona assim: quero fazer uma reportagem na Namíbia em outubro. Estamos em junho, e quem quiser ver isso me financia e, se eu alcançar a meta, vou lá e faço a reportagem; se não, devolvo o dinheiro para todos que me pagaram. Isso não serve para a manutenção de uma cobertura diária que fiscalize o poder. Porque este tipo de cobertura não tem como funcionar negociando pautas. Até porque as pautas são repentinas ou precisam ser trabalhadas em sigilo. O crowdfunding é uma novidade, tem sua função, mas não é e nunca será o modelo que permitirá o financiamento da imprensa independente.
A pergunta ainda a ser respondida é: como vamos financiar a manutenção de redações independentes, compostas de jornalistas críticos, bem preparados, caros, ou relativamente caros? Uma maneira é um conjunto de leitores pagar uma espécie de assinatura: eu pago para você existir. Porque com você existindo eu tenho a garantia de que certas coisas serão fiscalizadas e vão circular, assim como eu pago o serviço de iluminação, pago o imposto para ter escolas, vou pagar para a imprensa livre existir. Isso precisa ser inventado e talvez esteja a caminho. Há outros modelos. A doação, como já falei, deixa uma pergunta. Arranjo dez milionários que concordam em se cotizar e sustentar uma redação independente. Mas e quando houver uma investigação sobre um desses milionários? E se for um doador só? Esse cara vira o dono da verdade?
Isso mostra que um pouco de publicidade pode ser bom, ao criar um certo distanciamento crítico entre essa redação e os doadores. Os doadores não precisam desaparecer do mapa, mas devem ficar um pouco mais distantes, por meio da publicidade. Só a publicidade, porém, não é uma boa receita. Isso funciona na televisão, no rádio aberto, quando o sistema da imprensa envolve veículos que são diretamente sustentados pelos leitores, pela sociedade, que dão um componente crítico ao sistema como um todo. Mas um sistema que seja unicamente financiado pela publicidade será de potencial crítico muito aquém do desejado. Tende a ser subserviente não ao anunciante, mas à lógica do mercado, à sua mentalidade.
(Jürgen) Habermas (filósofo e sociólogo alemão ligado à Escola de Frankfurt) já falou disso: dinheiro público para financiar jornais, subsidiando leitores. O dinheiro público passa a comprar um percentual significativo de assinaturas e as distribui para as pessoas.
Seria uma espécie de Bolsa Jornal?
Sim. Mas se isso for além de um limite, e ficar na mão do poder político, como este será fiscalizado? Então, nada disso é satisfatório. Eu acredito mais no modelo pelo qual o público paga caro e financia, dando sustentação política traduzida em sustentação financeira, assim como as pessoas podem dar dinheiro para o Greenpeace ou para um partido político. O PT, quando apareceu, era financiado por contribuições de gente comum. A sociedade se mobiliza em torno dessas coisas. Essa carga de sustentação política poderia ajudar muito a imprensa nesse momento. Isso traz outro risco também, aí a imprensa pode ser partidária, representativa desse recorte da sociedade. Por exemplo, os professores financiam a sua imprensa, logo será uma imprensa com uma fisionomia sindical, de defesa corporativa da categoria.
Não será plural.
Tende a não ser. Todos os modelos que estou listando aqui têm prós e contras e precisam ser contrabalançados por outras formas. Isso é que ainda está por ser inventado.
O senhor percebe alguma angústia de outros setores da sociedade que não seja o jornalístico com o efeito disso tudo para a sociedade democrática? Não se veem os empresários nem o governo preocupados com essa crise. Não conseguimos levar essa pauta para fora do nosso círculo?
Os jornalistas estão vendo a coisa acabar. É como se nós, jornalistas, estivéssemos em cima de um iceberg, no qual sempre fizemos a nossa festa… tinha um bar nesse iceberg, tinha guarda-sol, hotel, mas o planeta começou esquentar e o gelo, a derreter. Uma parte separou-se do bloco de gelo e começou a diminuir. Se cava muita gente em cima, o pedaço iria afundar, então pessoas foram expulsam, jogadas no mar, morreram afogadas. Os jornalistas estão em cima de um iceberg que está derretendo, estão desnorteados. Estou generalizando, mas é uma generalização muito próxima do real. Na segunda-feira, o diretor de redação vai embora. Na outra segunda, o diretor-comercial vai embora. E na outra segunda, começa a ouvir o boato de qual revista vai fechar, tal empresa vai falir. Enquanto isso, o resto da sociedade não está se dando conta como deveria.
Até porque os jornais não falam da própria crise.
Cobrem pouco a própria crise. Temos um exemplo: o recrudescimento da violência contra jornalistas no Brasil. Jornalistas são ameaçados, alguns tiveram de se exilar, outros foram assassinados e os jornais não cobrem isso, com medo de criar mais encrenca além do que têm, chamar muita atenção para si ou dispor outros jornalistas a ameaças iguais. Há uma discussão contida, intimidada, reprimida. A imprensa não tem sabido falar de si mesma. De outra parte, as empresas podem transformar essa crise em uma agenda de discussão comercial, empresarial. “O jornalismo é importante, logo a minha empresa precisa existir. Então me ajudem a garantir a sobrevivência da minha empresa.” Mas isso também tem sido malfeito. Por fim, falta uma consciência cívica sobre a importância da imprensa livre.
Nos EUA, esse debate está um pouco melhor, tanto que houve muita articulação para criar as redações sem fins lucrativos. São várias e estão fazendo um ótimo trabalho. O ProPublica já ganhou um ou dois prêmios Pulitzer, em associação com outros jornais. Mas, no Brasil, estamos muito aquém disso. Tem uma redação independente, por exemplo, que é o Observatório da Imprensa, sou do conselho fiscal. Deveria haver fila de gente querendo doar dinheiro para isso, mas não há. Ninguém vivenciou a importância da imprensa livre.
Nós não assimilamos como sociedade a vantagem vital que é ter uma imprensa fiscalizando o poder. Não sabemos que isso é um serviço de primeira necessidade. É algo que não é óbvio ainda, como é óbvio que a escola precisa ser boa. Isso aos poucos foi se tornando claro no Brasil: a escola precisa ser boa. Houve um trabalho muito intenso de debate público para que nós chegássemos em um ponto ainda precário de discussão sobre educação. Mas clareza de que a imprensa é essencial nós não temos. Nós não temos nem mesmo entre a maioria dos empresários de comunicação no Brasil.
As escolas de jornalismo estão colocando os alunos no mercado dizendo o que para eles?
Eu gosto muito de ser professor, mas sou da opinião de que o ensino do jornalismo no Brasil é muito fraco. Esse ensino ficou ruim porque se acomodou a uma situação em que o diploma era obrigatório para o exercício da profissão. Então, bom ou mau, o sujeito vai precisar de um título para trabalhar. Hoje, o diploma não é mais obrigatório, mas vai voltar a ser, porque a emenda constitucional que acrescenta um parágrafo no artigo 220 da Constituição (sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação) está quase aprovado. Isso será discutido no Supremo, para então essa obrigatoriedade finalmente cair, como em todas as democracias que a gente respeita. Mas as escolas ficaram paradas nesse negócio da exigência do diploma. Elas despertaram pouco para a necessidade de formar um profissional para competir com qualquer outro que queira produzir conteúdo.
É a exigência do diploma que levou a essa acomodação? Em outras profissões, é exigido diploma mas não necessariamente o ensino é ruim.
Sim. Esse raciocínio só serve como hipótese para o caso do jornalismo. Pode ser que não se comprove, a causa pode ser outra.
A causa poderia ser o que o senhor falou antes: não se tem plena clareza de que o jornalismo presta um serviço importante?
Isso também. No Brasil, nós achamos que jornalista e assessor de imprensa são a mesma coisa. Isso é um problema para o ensino. Porque, achando que são a mesma coisa, você não ensina o jornalista a ser fiscal, a ser vigilante, a ser crítico, e a ser independente. Pois tudo isso o assessor de imprensa não pode ser. E se os dois fazem a mesma coisa, teremos jornalistas encarregados de cobrir o poder com a mentalidade de difusores de informação e não com uma postura de oposição. O jornalismo é de oposição, no sentido institucional. Ele não é confiável como um correligionário para o governante. O governante olha o jornalista com cautela, e tem de ser assim. Mas, para isso, o jornalista tem que ser treinado. Treinado para encontrar problemas onde o governo vê solução. Já o assessor de imprensa é treinado para vender soluções que seu cliente gostaria de vender. Claro que um jornalista tem muito preparo para ser um assessor de imprensa, e não há nada de errado nisso. O problema é uma escola não entender que jornalistas e assessores estão em campos antagônicos. Aí temos um ensino alquebrado, de espinha dobrada, de cabeça baixa, subserviente.
Não estou dizendo se pessoalmente sou a favor ou contra a exigência de diploma, apenas polemizando: esse treino para ser o jornalista que o senhor descreveu (fiscal do poder, crítico) pode se dar fora da escola de jornalismo? O ambiente para esse treino não deveria ser a escola de jornalismo?
Claro que deveria.
Então o diploma não deveria ser obrigatório por essa razão?
É uma ótima pergunta. Há bons argumentos dos dois lados. Mas por que nos países onde não há obrigatoriedade do diploma o bom mercado dá preferência para os que estudaram jornalismo? Exatamente porque estão mais preparados para essa função. O principal argumento contra a obrigatoriedade não está exatamente na qualidade do ensino, embora seja muito provável que a faculdade melhora quando não tem obrigatoriedade. Mas não está aí o ponto principal. O ponto é impedir um limite para quem quer que seja editar um jornal. Porque isso seria uma restrição à própria liberdade de imprensa. A pessoa semianalfabeta que queira editar um jornal precisa ter o direito de fazê-lo, sem restrição. Provavelmente será um jornal ruim, mas não poderia haver da parte da legislação um obstáculo para que essa pessoa se manifeste.
O diploma obrigatório não produz escolas melhores, mas evidências na Espanha, França, EUA e tantos outros lugares mostram que, sem o diploma, criam-se escolas de referência.
Esse momento de crise de financiamento e de incertezas de modelo tem sido discutido nas principais escolas de jornalismo? Os alunos estão sendo preparados para atuar em que cenário? Industrial, pós-industrial?
Eu tenho insistido muito para que os cursos ensinem a montar negócios, que ensinem empreendedorismo. Os cursos precisam assimilar a noção de que estão formando quadros não para ser empregados, mas muitas vezes para criar negócios e inventar formas de trabalhar. Não podem se resignar com o destino de formar desempregados. O jornalista precisa ter capacitação para ser um empresário se quiser, ou um empreendedor público, ou seja, criar veículos públicos. Ele precisa entender disso.
[Como esta entrevista foi feita antes de eclodirem com força os protestos Brasil afora, enviamos posteriormente por email a seguinte pergunta, respondida por escrito:]
Os protestos espalhados pelo Brasil evidenciaram um claro descontentamento com os veículos jornalísticos tradicionais. Houve carros de grandes emissoras de TV queimados, jornalistas agredidos, cartazes contra a mídia. Como esses fatos devem ser interpretados? Sinalizam a insatisfação com as instituições de forma geral (partidos, governos, empresas de comunicação)? Se sim, como isso se relaciona com a crise do jornalismo? O público de hoje não quer mais consumir o tipo de produto desses veículos?
As pautas mais comuns das manifestações – por mais diversas que sejam essas pautas –, por incrível que pareça, vêm em grande medida de reportagens de diversos órgãos de imprensa, que também abastecem as redes sociais. A corrupção, entre outros temas, vem sendo retratada em incontáveis reportagens, com as mais diferentes orientações editoriais. A imprensa, desse modo, é uma referência indireta da inteligência difusa que pressentimos nos protestos todos.
Estes tendem a repelir partidos e autoridades e, por certo, repelem também os símbolos da mídia (na exata medida que a mídia é um dos poderes vistos como establishment), mas também se alimentam da imprensa. Paradoxalmente, manifestam-se preferencialmente para as câmeras de TV. Ao ir às ruas, as massas também querem ir para o Jornal Nacional.
*FOTO ARTHUR FUJII[:en]“A sociedade brasileira desconhece, até hoje, o valor de uma imprensa livre e fiscalizadora do poder”, afirma o professor Eugênio Bucci
Até ser empunhada nas bandeiras e defendida em todo o País, a noção de que educação é um serviço fundamental levou tempo para ser assimilada. O mesmo não se deu ainda com a imprensa livre: a sociedade brasileira desconhece, até hoje, o valor de um jornalismo que fiscaliza o poder – mesmo entre a maioria dos donos de empresas de comunicação. A denúncia do professor Eugênio Bucci assume tom mais dramático quando ele compara o atual momento do jornalismo a um iceberg derretendo. Amparada até então em modelo de negócios do século XIX, a profissão é chacoalhada pelos adventos tecnológicos que revolucionam o jeito de comunicar e se financiar, ao mesmo tempo em que vive um paradoxo: as matérias jornalísticas nunca foram tão lidas, seja nos veículos, seja nas redes sociais.
Nada mudou, no entanto, no conceito de notícia e no papel do jornal: cuidar do que é essencial, do que é de interesse público, dos temas relevantes, não necessariamente do que vai disputar grandes audiências. Não é o espetáculo que o salvará, mas a qualidade de sua produção – acredita o professor.
Sobre as manifestações que rechaçaram os grandes veículos de comunicação em praça pública, Bucci lembra que “a imprensa é uma referência indireta da inteligência difusa que pressentimos nos protestos todos”.
O que estamos vivendo é uma crise do jornalismo em si, ou é a crise de um modelo de negócios do jornalismo que se tornou ultrapassado nesta era pós-industrial?
Eu apontaria dois fatores a considerar e aparentemente contraditórios. O primeiro é que os modelos de financiamento do jornalismo passam pelo pior momento de sua história, não há precedentes para algo tão sério. Quase todos os dias temos notícias de demissão, enxugamento, redução. O tamanho desse mercado parece que vai encolhendo, não há superação em receitas, em faturamento publicitário. Há uma situação destoante em países como Brasil, Índia, Rússia, China – um pouco dos Brics –, porque parece que nesses lugares ainda há espaço para crescimento de circulação de veículos de papel. O mercado publicitário aumenta, mas aí já não aumenta de forma generosa para o jornalismo, e sim para o entretenimento e para a comunicação eletrônica.
Mesmo assim, estamos em um país que não sofre tanto com essa crise (internacional), embora haja uma gravíssima crise do modelo de financiamento do jornalismo. De onde virão os recursos?
Os veículos de papel que migram para a internet não conseguem ter o mesmo faturamento. É um faturamento que, quando bom, é da ordem de um décimo ou um vigésimo do que se tinha antes.
Por que isso acontece?
Porque na internet a publicidade não se comporta da mesma maneira. Basicamente porque a imprensa deixou de ser um canal obrigatório para os anunciantes encontrarem os seus potenciais consumidores. O anunciante pode se comunicar diretamente. Em termos muito apressados, os jornalistas não têm mais o que entregar.
Os anunciantes não precisam mais de intermediários?
Os anunciantes não precisam mais deste intermediário. Então, o primeiro fator é a diminuição do modelo de financiamento dos veículos e da atividade jornalística. O segundo fator que contradiz esse primeiro, aparentemente, é que nunca as matérias jornalísticas foram tão lidas, não apenas pelos leitores ligados aos veículos, mas pelos leitores que estão nas redes sociais. As reportagens, os artigos, as críticas, os editoriais circulam por todo lugar. Alguém manda para um amigo, as pessoas republicam, alguém comenta, aí a outra pessoa vai ler no jornal, que muitas vezes têm conteúdo aberto ou semiaberto. Então, nunca tivemos tanto público, e tanta dificuldade em arrecadar uma receita que sustente a atividade jornalística.
Isso, pra mim, é o que marca esse momento. O jornalismo é uma atividade essencial, encontra leitores e tem prestado serviços cada vez mais relevantes. Agora mesmo, o Guardian, por meio de um jornalista americano que mora no Brasil, acabou de revelar que os EUA estão monitorando conversas telefônicas. Essa é uma revelação de uma redação. Veja o papel do jornalista na Primavera Árabe, na Turquia, tudo isso mostra uma relevância, se não inédita, muito grande.
O consumidor dessa informação não quer pagar por ela?
Esta é uma pergunta central. Não conseguimos saber se quer ou não quer pagar. Mas esbarra na expressão “modelo de negócios”, porque é preciso ter uma proposta para esse leitor. “Olha, você quer ler isso, então funciona assim: você compra esse envelope, e aqui estão as matérias, ou paga uma mensalidade e lê quantas matérias quiser, ou paga por clique.” Não temos maneiras de possibilitar que as pessoas sustentem o jornalismo diretamente. Os modelos que existem são a assinatura, que vem da mídia impressa. Eu vou receber as notícias do dia impressas em umas folhas de papel, que posso comprar na banca ou receber em casa. Esse é um modelo que foi desenvolvido do século XIX para o XX, e que vinha servindo. Com a mudança do padrão tecnológico, a cadeia de valor do negócio da imprensa mudou também.
Antes, como este documento comenta (ele se refere a “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos novos tempos”, produzido pelo Tow Center for Digital Journalism, da Universidade Columbia, e traduzido pela Revista de Jornalismo ESPM), uma empresa jornalística concentrava a atividade de apuração e redação da notícia, a venda de publicidade e a distribuição. E a impressão. No subsolo da redação, estavam as rotativas. Tudo isso gerava uma cadeia de valor cujos recursos voltavam para a empresa jornalística. Hoje, na era digital, uma redação é apenas uma redação. A distribuição é paga para as empresas de telecomunicação, de telefonia, de tecnologia. É um dinheiro que não é pago mais para a redação. E a publicidade está dispersa nos cliques que pessoas dão, e vão remunerar outra empresa.
Uma saída possível são as redações que vivem de doações, a exemplo da ProPublica (redação americana sem fins lucrativos, saiba mais em “Prenda-me, se for capaz”). Essas redações podem propor o seguinte pacto ao doador: você me dá um tanto de dinheiro, com essa quantia eu financio por 2 ou 10 anos a atividade jornalística investigativa e as pessoas vão acessar isso aqui de graça. Mas será que isso sustenta a imprensa?
Para esse novo padrão tecnológico, não temos ainda um modelo de negócios. Pode até ser que a pessoa queira pagar, mas não existe como pagar. Ela vai depositar um dinheiro, fazer uma doação, como vai medir isso?
Não temos porque talvez não haja ainda demanda para isso?
Sim. Provavelmente a gente não tem porque o tempo da elaboração tem sido muito mais longo que o da maturação dessas novas formas de comunicar. A institucionalização que poderia levar a um modelo de negócios demora mais. Antes que alguém tenha sido capaz de conceber, pôr em prática, institucionalizar aquele modelo, ele já vem sendo praticado de outras formas. Os jornais são pegos no contrapé. O New York Times tem sido observado como farol, todo mundo fica observando seus movimentos para ver se vão funcionar ou não. Ele já teve períodos em que fechou o conteúdo, depois percebeu que, restringindo o conteúdo e abrindo só pra quem pagasse, ficava do lado de fora de um movimento muito forte que é o da internet gratuita. E então abriu o conteúdo de novo. Aí ocorreu que deveria fazer uma cobrança parcial, e criou o paywall, por meio do qual os leitores pagam de acordo com a quantidade que usam. E ainda estão testando isso aí, mas ainda não têm uma conclusão.
Essa é uma das experiências, há várias outras. Venda de matéria a granel serve para matéria de arquivo, não serve para matéria quente. Então como é que isso vai ficar? As assinaturas nos tablets vão aos poucos se tornando mais importantes, mas isso nos grandes jornais americanos, na revista Economist. A Veja no Brasil parece que já tem uma circulação semanal da ordem de 60 mil exemplares em tablets, que pode ir até 100 mil rapidamente. Mas isso é suficiente para sustentar essa publicação? Ela cobra o mesmo preço no tablet e no papel, com a vantagem de que no tablet não tem os custos do papel.
Eu sou do palpite de que as pessoas querem pagar, mas ainda não dá para afirmar isso.
Segundo o ensaio do Tow Center, que citamos há pouco, existe uma tendência de contínuo enfraquecimento da noção daquilo que constitui notícia – e por conseguinte daquilo que constitui uma organização jornalística. Os autores mencionam o exemplo do Facebook, que, embora seja estruturado de forma muito diferente de uma organização jornalística, é um elemento crucial do novo ecossistema do jornalismo. Com isso, a discussão vai muito além do modelo de negócios e chega a “o que é notícia”?
Sem dúvida. E também a “o que é jornalismo”.
Então esta é uma crise de identidade do jornalismo?
Muitos acreditam que sim, que se trata de uma crise quase insuperável de identidade. Alguns não se veem mais na profissão, acham que vão encontrar lugar nas assessorias de imprensa, na comunicação corporativa, no marketing eleitoral.
Temos mais perguntas que respostas?
Sim, mas o bom é que estamos conseguindo fazer perguntas sistêmicas. Que não são mais de campos isolados, e conseguem iluminar questões laterais, fenômenos contíguos, dando a sensação de que começamos a tratar de um todo.O que é notícia? É uma informação que, quando revelada, altera expectativas. Muda o seu senso de futuro, a inserção no seu ambiente. Uma notícia diz que a identidade de uma pessoa não é mais aquela. Diz que onde todo mundo pensava que existia uma cabine telefônica existe um poço de petróleo, ou um centro de venda de cocaína. Uma notícia muda o selo que a linguagem atribui a cada coisa, muda o nome, o significado das coisas. Uma notícia é sempre algo que alguém quer esconder. Sempre fere algum poder. Sempre dá vantagem a um lado e leva desvantagem a outro lado. Fere suscetibilidades, interesses ou territórios. Isso mudou? Talvez menos. Mas o que mudou é: o que é relevante para as pessoas? O que é o interesse comum? Será que um assunto de interesse público é o que desperta curiosidade? A saia da Lady Gaga rouba a atenção da violação de privacidade americana.
O que a era digital trouxe muito foi uma expansão da conversa do mundo da vida. Os assuntos de interesse comum permanecem, mas a futilidade, a vaidade, o narcisismo, isso explodiu, ganhou uma dimensão que não tinha. Isso não veio com a internet, mas a internet dá muito impulso a esses traços. Parecem destroçar o próprio conceito de notícia… mas não, acho que aí tem uma pista falsa.
O jornalismo terá de cuidar do que é essencial, do que é de interesse público, terá de tratar de temas relevantes, não necessariamente do que vai disputar grandes audiências. Não é o espetáculo. Mas, tratando de temas centrais, de interesse público, terá de ser subsidiado, como sempre foi. O jornalismo de qualidade sempre foi subsidiado de alguma forma.
A crise do financiamento já está afetando a qualidade do jornalismo?
Não sei se isso já está acontecendo, mas a tendência é que aconteça. Três coisas estão certas. Uma: trocar equipes mais caras por mais baratas. Duas: “pejotização” da imprensa (o jornalista deixa de ser assalariado e se transforma em uma pessoa jurídica prestadora de serviços), com renegociação de salário para valores mais baixos. Três: a escala de circulação de certos veículos tende a mudar, o jornalista não vai trabalhar predominantemente em veículos de grande circulação, mas em núcleos de inteligência, espécies de think tanks, com remuneração menor.
Para essa atividade mais pulverizada, o crowdfunding, as estratégias colaborativas e os formatos mais orgânicos e híbridos seriam os novos caminhos? (leia mais aqui)
O crowdfunding é um esboço de um modelo de negócios. Mas funciona assim: quero fazer uma reportagem na Namíbia em outubro. Estamos em junho, e quem quiser ver isso me financia e, se eu alcançar a meta, vou lá e faço a reportagem; se não, devolvo o dinheiro para todos que me pagaram. Isso não serve para a manutenção de uma cobertura diária que fiscalize o poder. Porque este tipo de cobertura não tem como funcionar negociando pautas. Até porque as pautas são repentinas ou precisam ser trabalhadas em sigilo. O crowdfunding é uma novidade, tem sua função, mas não é e nunca será o modelo que permitirá o financiamento da imprensa independente.
A pergunta ainda a ser respondida é: como vamos financiar a manutenção de redações independentes, compostas de jornalistas críticos, bem preparados, caros, ou relativamente caros? Uma maneira é um conjunto de leitores pagar uma espécie de assinatura: eu pago para você existir. Porque com você existindo eu tenho a garantia de que certas coisas serão fiscalizadas e vão circular, assim como eu pago o serviço de iluminação, pago o imposto para ter escolas, vou pagar para a imprensa livre existir. Isso precisa ser inventado e talvez esteja a caminho. Há outros modelos. A doação, como já falei, deixa uma pergunta. Arranjo dez milionários que concordam em se cotizar e sustentar uma redação independente. Mas e quando houver uma investigação sobre um desses milionários? E se for um doador só? Esse cara vira o dono da verdade?
Isso mostra que um pouco de publicidade pode ser bom, ao criar um certo distanciamento crítico entre essa redação e os doadores. Os doadores não precisam desaparecer do mapa, mas devem ficar um pouco mais distantes, por meio da publicidade. Só a publicidade, porém, não é uma boa receita. Isso funciona na televisão, no rádio aberto, quando o sistema da imprensa envolve veículos que são diretamente sustentados pelos leitores, pela sociedade, que dão um componente crítico ao sistema como um todo. Mas um sistema que seja unicamente financiado pela publicidade será de potencial crítico muito aquém do desejado. Tende a ser subserviente não ao anunciante, mas à lógica do mercado, à sua mentalidade.
(Jürgen) Habermas (filósofo e sociólogo alemão ligado à Escola de Frankfurt) já falou disso: dinheiro público para financiar jornais, subsidiando leitores. O dinheiro público passa a comprar um percentual significativo de assinaturas e as distribui para as pessoas.
Seria uma espécie de Bolsa Jornal?
Sim. Mas se isso for além de um limite, e ficar na mão do poder político, como este será fiscalizado? Então, nada disso é satisfatório. Eu acredito mais no modelo pelo qual o público paga caro e financia, dando sustentação política traduzida em sustentação financeira, assim como as pessoas podem dar dinheiro para o Greenpeace ou para um partido político. O PT, quando apareceu, era financiado por contribuições de gente comum. A sociedade se mobiliza em torno dessas coisas. Essa carga de sustentação política poderia ajudar muito a imprensa nesse momento. Isso traz outro risco também, aí a imprensa pode ser partidária, representativa desse recorte da sociedade. Por exemplo, os professores financiam a sua imprensa, logo será uma imprensa com uma fisionomia sindical, de defesa corporativa da categoria.
Não será plural.
Tende a não ser. Todos os modelos que estou listando aqui têm prós e contras e precisam ser contrabalançados por outras formas. Isso é que ainda está por ser inventado.
O senhor percebe alguma angústia de outros setores da sociedade que não seja o jornalístico com o efeito disso tudo para a sociedade democrática? Não se veem os empresários nem o governo preocupados com essa crise. Não conseguimos levar essa pauta para fora do nosso círculo?
Os jornalistas estão vendo a coisa acabar. É como se nós, jornalistas, estivéssemos em cima de um iceberg, no qual sempre fizemos a nossa festa… tinha um bar nesse iceberg, tinha guarda-sol, hotel, mas o planeta começou esquentar e o gelo, a derreter. Uma parte separou-se do bloco de gelo e começou a diminuir. Se cava muita gente em cima, o pedaço iria afundar, então pessoas foram expulsam, jogadas no mar, morreram afogadas. Os jornalistas estão em cima de um iceberg que está derretendo, estão desnorteados. Estou generalizando, mas é uma generalização muito próxima do real. Na segunda-feira, o diretor de redação vai embora. Na outra segunda, o diretor-comercial vai embora. E na outra segunda, começa a ouvir o boato de qual revista vai fechar, tal empresa vai falir. Enquanto isso, o resto da sociedade não está se dando conta como deveria.
Até porque os jornais não falam da própria crise.
Cobrem pouco a própria crise. Temos um exemplo: o recrudescimento da violência contra jornalistas no Brasil. Jornalistas são ameaçados, alguns tiveram de se exilar, outros foram assassinados e os jornais não cobrem isso, com medo de criar mais encrenca além do que têm, chamar muita atenção para si ou dispor outros jornalistas a ameaças iguais. Há uma discussão contida, intimidada, reprimida. A imprensa não tem sabido falar de si mesma. De outra parte, as empresas podem transformar essa crise em uma agenda de discussão comercial, empresarial. “O jornalismo é importante, logo a minha empresa precisa existir. Então me ajudem a garantir a sobrevivência da minha empresa.” Mas isso também tem sido malfeito. Por fim, falta uma consciência cívica sobre a importância da imprensa livre.
Nos EUA, esse debate está um pouco melhor, tanto que houve muita articulação para criar as redações sem fins lucrativos. São várias e estão fazendo um ótimo trabalho. O ProPublica já ganhou um ou dois prêmios Pulitzer, em associação com outros jornais. Mas, no Brasil, estamos muito aquém disso. Tem uma redação independente, por exemplo, que é o Observatório da Imprensa, sou do conselho fiscal. Deveria haver fila de gente querendo doar dinheiro para isso, mas não há. Ninguém vivenciou a importância da imprensa livre.
Nós não assimilamos como sociedade a vantagem vital que é ter uma imprensa fiscalizando o poder. Não sabemos que isso é um serviço de primeira necessidade. É algo que não é óbvio ainda, como é óbvio que a escola precisa ser boa. Isso aos poucos foi se tornando claro no Brasil: a escola precisa ser boa. Houve um trabalho muito intenso de debate público para que nós chegássemos em um ponto ainda precário de discussão sobre educação. Mas clareza de que a imprensa é essencial nós não temos. Nós não temos nem mesmo entre a maioria dos empresários de comunicação no Brasil.
As escolas de jornalismo estão colocando os alunos no mercado dizendo o que para eles?
Eu gosto muito de ser professor, mas sou da opinião de que o ensino do jornalismo no Brasil é muito fraco. Esse ensino ficou ruim porque se acomodou a uma situação em que o diploma era obrigatório para o exercício da profissão. Então, bom ou mau, o sujeito vai precisar de um título para trabalhar. Hoje, o diploma não é mais obrigatório, mas vai voltar a ser, porque a emenda constitucional que acrescenta um parágrafo no artigo 220 da Constituição (sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação) está quase aprovado. Isso será discutido no Supremo, para então essa obrigatoriedade finalmente cair, como em todas as democracias que a gente respeita. Mas as escolas ficaram paradas nesse negócio da exigência do diploma. Elas despertaram pouco para a necessidade de formar um profissional para competir com qualquer outro que queira produzir conteúdo.
É a exigência do diploma que levou a essa acomodação? Em outras profissões, é exigido diploma mas não necessariamente o ensino é ruim.
Sim. Esse raciocínio só serve como hipótese para o caso do jornalismo. Pode ser que não se comprove, a causa pode ser outra.
A causa poderia ser o que o senhor falou antes: não se tem plena clareza de que o jornalismo presta um serviço importante?
Isso também. No Brasil, nós achamos que jornalista e assessor de imprensa são a mesma coisa. Isso é um problema para o ensino. Porque, achando que são a mesma coisa, você não ensina o jornalista a ser fiscal, a ser vigilante, a ser crítico, e a ser independente. Pois tudo isso o assessor de imprensa não pode ser. E se os dois fazem a mesma coisa, teremos jornalistas encarregados de cobrir o poder com a mentalidade de difusores de informação e não com uma postura de oposição. O jornalismo é de oposição, no sentido institucional. Ele não é confiável como um correligionário para o governante. O governante olha o jornalista com cautela, e tem de ser assim. Mas, para isso, o jornalista tem que ser treinado. Treinado para encontrar problemas onde o governo vê solução. Já o assessor de imprensa é treinado para vender soluções que seu cliente gostaria de vender. Claro que um jornalista tem muito preparo para ser um assessor de imprensa, e não há nada de errado nisso. O problema é uma escola não entender que jornalistas e assessores estão em campos antagônicos. Aí temos um ensino alquebrado, de espinha dobrada, de cabeça baixa, subserviente.
Não estou dizendo se pessoalmente sou a favor ou contra a exigência de diploma, apenas polemizando: esse treino para ser o jornalista que o senhor descreveu (fiscal do poder, crítico) pode se dar fora da escola de jornalismo? O ambiente para esse treino não deveria ser a escola de jornalismo?
Claro que deveria.
Então o diploma não deveria ser obrigatório por essa razão?
É uma ótima pergunta. Há bons argumentos dos dois lados. Mas por que nos países onde não há obrigatoriedade do diploma o bom mercado dá preferência para os que estudaram jornalismo? Exatamente porque estão mais preparados para essa função. O principal argumento contra a obrigatoriedade não está exatamente na qualidade do ensino, embora seja muito provável que a faculdade melhora quando não tem obrigatoriedade. Mas não está aí o ponto principal. O ponto é impedir um limite para quem quer que seja editar um jornal. Porque isso seria uma restrição à própria liberdade de imprensa. A pessoa semianalfabeta que queira editar um jornal precisa ter o direito de fazê-lo, sem restrição. Provavelmente será um jornal ruim, mas não poderia haver da parte da legislação um obstáculo para que essa pessoa se manifeste.
O diploma obrigatório não produz escolas melhores, mas evidências na Espanha, França, EUA e tantos outros lugares mostram que, sem o diploma, criam-se escolas de referência.
Esse momento de crise de financiamento e de incertezas de modelo tem sido discutido nas principais escolas de jornalismo? Os alunos estão sendo preparados para atuar em que cenário? Industrial, pós-industrial?
Eu tenho insistido muito para que os cursos ensinem a montar negócios, que ensinem empreendedorismo. Os cursos precisam assimilar a noção de que estão formando quadros não para ser empregados, mas muitas vezes para criar negócios e inventar formas de trabalhar. Não podem se resignar com o destino de formar desempregados. O jornalista precisa ter capacitação para ser um empresário se quiser, ou um empreendedor público, ou seja, criar veículos públicos. Ele precisa entender disso.
[Como esta entrevista foi feita antes de eclodirem com força os protestos Brasil afora, enviamos posteriormente por email a seguinte pergunta, respondida por escrito:]
Os protestos espalhados pelo Brasil evidenciaram um claro descontentamento com os veículos jornalísticos tradicionais. Houve carros de grandes emissoras de TV queimados, jornalistas agredidos, cartazes contra a mídia. Como esses fatos devem ser interpretados? Sinalizam a insatisfação com as instituições de forma geral (partidos, governos, empresas de comunicação)? Se sim, como isso se relaciona com a crise do jornalismo? O público de hoje não quer mais consumir o tipo de produto desses veículos?
As pautas mais comuns das manifestações – por mais diversas que sejam essas pautas –, por incrível que pareça, vêm em grande medida de reportagens de diversos órgãos de imprensa, que também abastecem as redes sociais. A corrupção, entre outros temas, vem sendo retratada em incontáveis reportagens, com as mais diferentes orientações editoriais. A imprensa, desse modo, é uma referência indireta da inteligência difusa que pressentimos nos protestos todos.
Estes tendem a repelir partidos e autoridades e, por certo, repelem também os símbolos da mídia (na exata medida que a mídia é um dos poderes vistos como establishment), mas também se alimentam da imprensa. Paradoxalmente, manifestam-se preferencialmente para as câmeras de TV. Ao ir às ruas, as massas também querem ir para o Jornal Nacional.