Apesar da reclamação da população sobre o sentimento de falta de representatividade, a sociedade civil organizada vem há tempos trabalhando justamente para reverter esse quadro, buscando aumentar a influência de grupos excluídos pela rigidez do sistema político brasileiro. Algumas dessas organizações, historicamente, deram início ou se uniram a novos partidos, com o objetivo de fazer valer seus interesses no âmbito político. Entretanto nem sempre o formato horizontal de algumas organizações é consonante com a estrutura hierarquizada dos partidos políticos, o que gera distorções e questionamentos sobre a validade dessa entrada no “sistema”.
PÁGINA22 questionou a Rede Sustentabilidade, conjunto de diferentes coletivos e indivíduos que está buscando se formalizar como partido, a respeito dessas diferenças de estrutura e seus reflexos na capacidade de representação da sociedade civil.
Até onde eu sei, a Rede não pretendia tornar-se partido, só o fez porque o sistema político brasileiro é bem rígido nesse quesito. Como foi o processo de tomar a decisão de dar esse passo? Que tipo de escolhas tiveram de ser feitas?
A Rede vive mesmo esse dilema de origem e espera fazer dele uma experiência política criativa. A Rede se entende, fundamentalmente, como movimento, indissociável da insatisfação global contra um modelo de governança que tem se revelado não só absurdamente restritivo, mas também insano na sua incapacidade de decisão relativa a questões vitais, a exemplo do aquecimento global e do risco crescente que ele traz às populações mais vulneráveis no mundo. Portanto, se de um lado a Rede tem um forte componente socioambiental na sua origem, é inescapável ter também forte componente da luta por mudanças políticas. Hoje, a insustentabilidade política é, sem dúvida, o grande nó para mudanças de quaisquer ordens em direção a um padrão de desenvolvimento avançado sustentável. A ideia de que sustentabilidade não é um jeito de fazer, mas um jeito de ser, ilustra a dimensão e a relevância do tipo de decisão que fez nascer a Rede.
Ou seja, sem deixar a sua identidade de movimento, ela pretende se transformar em partido para agir em duas grandes direções. A primeira, de tentar colaborar para reaproximar a sociedade da política, por meio de uma alternativa de organização e militância que, mesmo sendo parte do sistema, confronta-o com propostas de mudança de caráter estrutural e inovações com o objetivo de legitimar a representação como base para uma democracia radicalizada, ao lado do crescimento da democracia direta. A segunda é o embate dentro do sistema político, contra uma cultura carcomida de uso do Estado para a autorreprodução de grupos no poder.
Andar nessas duas direções é o nosso maior desafio e o mais difícil, porque é preciso reconhecer que a cultura política vigente, de colocar o assédio ao poder antes do interesse público e de uma relação democrática com a sociedade, está entranhada de tal forma que precisamos combatê-la diariamente dentro de nós mesmos, na construção de processos e pedagogias de decisão que garantam esse núcleo vivo do partido. O que a Rede não pode esquecer jamais é do seu caráter de movimento e de sua prioridade de ser instrumento da sociedade para mudar a política. Essa é a essência; ser partido é estratégia.
Até que ponto está abalado o conceito da “representação” que sustenta a ideia da “democracia representativa” moderna? Afinal, um dos motes destas mobilizações é o “não me representa”. Trata-se de representar diferentemente ou de fazer algo que não é representar?
Na verdade, o que está abalado é o sistema político-partidário vigente de representação. A representatividade, assim como o conteúdo programático diferencial dos partidos se perdeu em meio ao modelo de financiamento de campanhas, de loteamento do Estado e de formação de coalizões de governabilidade baseadas apenas em barganhas de interesses ao largo das demandas da sociedade.
Isso não significa que a representação, inerente à democracia, seja um conceito superado. Não se pode tomar esse conceito como sinônimo do que existe na prática e é repudiado pela maioria dos cidadãos. Trata-se apenas de um modo de operação da representatividade que não expressa mais as necessidades do presente e, além do mais, sufoca o papel dos mecanismos de democracia direta. A representação é um valor; a forma de transformar esse valor numa dinâmica que permita à democracia avançar é que está em discussão. É preciso liberdade de pensamento e criatividade política para propor mudanças profundas para abrir caminho para este avanço. O que não pode ser tolerado é que as atuais estruturas de representação, esvaziadas de seu sentido, monopolizem um poder de decisão que é da sociedade.
Aqui eu gostaria de frisar a questão da horizontalidade, que a história já tentou diversas vezes, mas sempre foi “tratorada” diante do poder de estruturas hierarquizadas, burocratizadas etc. Como garantir que grupos horizontais e temáticos consigam ter uma força constante de fazer valer seus esforços?
Esses esforços se apoiam na convicção de valores. Não há certezas, apenas a de que deve haver uma postura alerta de aprendizado e persistência em experimentos orientados por essa visão. É preciso lembrar que a necessidade da horizontalidade não surgiu como teoria. Ela foi se impondo ao longo das últimas décadas, pelo menos desde meados do século passado, como reação às barreiras percebidas para a resolução de questões que entraram no cotidiano da humanidade e se tornaram turning points decisivos, a exemplo do papel do ambiente natural e as consequências sociais e econômicas de sua degradação. Logo ficou claro que pensar o mundo com perspectivas mais complexas e integradas seria incompatível com um sistema de poder hierarquizado, restritivo e excludente. Questões como essa só têm perspectivas de soluções consistentes se forem tratadas num contexto de tomada de decisões de grande visibilidade e que leve em conta inúmeros e diversos interesses, com igual direito de se manifestar. Sustentabilidade requer por princípio visão do todo, e isso só é possível a partir de relações equalizadas, com base no respeito à diversidade. A horizontalidade é consequência natural disso e deve estar expressa nas instituições e nas relações humanas em geral. A superação da política institucional vigente significa, ao mesmo tempo, a emergência de estruturas horizontais. Pensar numa sem a outra é uma absoluta impossibilidade.
Que tipos de mecanismos são imaginados para fazer essa atualização da intermediação / interlocução nas discussões internas da Rede? Fala-se muito em instrumentos digitais de participação, mas como são esses instrumentos?
Hoje a internet e os meios digitais permitem uma ampla gama de instrumentos para reduzir a distância entre as pessoas e as instituições e permitem o aperfeiçoamento da democracia e a participação nas decisões. A isso, vamos precisar mesclar instrumentos de participação presencial, pois nem todos tem acesso à internet, mas também porque a relação que se estabelece a partir de debates e discussões presenciais não pode ser substituída integralmente. Eles são essenciais para a construção de debates, consensos e relações políticas mais sólidas.
É possível reforçar instrumentos já existentes, como os conselhos nacionais e locais, os projetos de iniciativa popular, os orçamentos participativos e assim por diante?
É possível e extremamente necessário. Houve um avanço importante quando esses espaços foram criados, mas hoje notamos certa acomodação dos governos e das entidades que participam desses fóruns. É fundamental que sejam revigorados e a participação dos cidadãos seja intensificada.
Com o marco civil de 1999, o terceiro setor começou a contar com entidades novas para atuação social, as OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), que se espalharam pelo país atuando em diversos setores. Hoje, discute-se uma nova reformulação do marco civil do terceiro setor. O que, nessa reformulação, pode contribuir para uma maior participação da sociedade civil nas políticas públicas?
O grande avanço da Lei das OSCIPs foi a criação dos termos de parceria, que substituiriam os convênios para o estabelecimento de contratos entre o poder público e o terceiro setor. Os convênios são instrumentos criados para contratação entre entes da federação, e sua utilização como mecanismo de contratualização com o terceiro setor cria uma série de problemas, entre eles a impossibilidade de pagamento de pessoal, o que limita muito a possibilidade de parceria com as organizações da sociedade civil.
Embora a lei tenha estimulado muitas organizações a buscarem o reconhecimento como OSCIPs, o termo de parceria não foi adotado na prática pelo governo federal nos últimos anos (mais um prejuízo da polarização PT versus PSDB)
A nova legislação é uma demanda das organizações da sociedade civil, que querem novas formas de contratualização e regras mais claras, para que possam atuar de forma mais eficiente no apoio à implementação das políticas públicas e no desenvolvimento de seus projetos autônomos. A nova legislação deve trazer mecanismos de monitoramento que vão além das prestações de contas, colocando foco na realização das atividades e no alcance de seus resultados; que reconheçam os custos de funcionamento das organizações, incluindo a possibilidade de pagamento de pessoal da própria organização; e que preveja diferentes modalidades de relação entre governo e sociedade. Além da cooperação na implementação, a nova legislação deve reconhecer o papel que a sociedade civil tem nos mecanismos de participação e democracia direta, e assegurar as condições para que as organizações possam cumprir esse papel da melhor forma possível, prevendo fundos públicos para este fim.
Leia mais sobre as dificuldades de intermediação e representação da sociedade civil em “Que Intermediários Queremos?“