Ao longo da História, o homem urbano perdeu a ligação com a terra e o ciclo das colheitas, mas não a memória afetiva. Mais que pelo estômago, o tema “comida” nos pega pela emoção
Há sete anos, o pesquisador Nuno Madeira, da Embrapa Hortaliças (estatal ligada à pesquisa agropecuária brasileira), em Brasília, foi convocado para um trabalho pelo qual nutre um carinho particular – o de recompor o banco de germoplasma, uma espécie de acervo que garante a manutenção de plantas importantes para o País, com hortaliças à beira da extinção. Cará-moela, peixinho (conhecido também como lambarida-horta), capuchinha, taioba, vinagreira, mangarito e ora-pro-nóbis fazem parte das 40 espécies que o projeto coordenado por ele conseguiu resgatar.
Segundo o pesquisador, as plantas “não convencionais”, assim batizadas, foram trocadas por outras de alta produtividade ao longo de décadas. Ao contrário dos plantios tradicionais, com ciclo de produção e colheita bem programadas, Madeira explica que as “hortaliças antigas” são rústicas e produzem de forma quase espontânea. “Isso não faz com que sejam desimportantes”, diz. Ao contrário, ele informa que esse material é ainda essencial para agricultores familiares e comunidades do País, e por vezes encontrado em pequenas feiras livres.
Para o engenheiro agrônomo, abrir mão desse material significa enfraquecer um pouco mais a composição do cardápio alimentar. Conforme a Agência para a Agricultura e a Alimentação da ONU (FAO), houve uma redução de 10 mil para 170 do número de plantas comestíveis e usadas pelo homem nos últimos cem anos.
O interesse de Nuno Madeira pelas plantas “fora de moda” remete à época em que estudava Agronomia na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. Ele já as cultivava no sítio da família na Região Serrana do Rio de Janeiro.
Ainda hoje, planta algumas variedades no quintal de sua casa, em Brasília, que por sinal serviram para recompor o acervo da Embrapa. As mudas cultivadas pela empresa de pesquisa abastecem outros projetos similares, como o do Polo Regional da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), em Pindamonhangaba (SP), ou atendem aos pedidos dos agricultores.
A perda (ou quase) de alimentos que pertenciam ao cardápio do passado merece uma avaliação mais longa, segundo Carlos Armenio Khatounian, professor de Agroecologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, em Piracicaba (SP). Para ele, a troca por produtos de larga escala remete a dois movimentos que completam quatro décadas: o do avanço dos fertilizantes e defensivos, que proporcionam a produção de tudo e o tempo todo; e da frigorificação, que permite o acesso aos alimentos em qualquer época do ano. “Não sabemos mais o que é sazonalidade de um produto”, comenta.
O professor explica que toda essa fartura de colheita passou a ser disposta por meio dos supermercados, a partir dos anos 1950, quando a população começou a trocar o campo pelas ofertas de emprego das cidades. Apesar da reconhecida vocação agrícola do Brasil, apenas 20% da população mora nas áreas rurais nos dias de hoje. “A grande escala gerou uma deseducação coletiva”, afirma.
No entanto, o imaginário rural do homem urbano, que sonha com a casa no campo, o fogão a lenha, a galinha caipira e os alimentos frescos da horta, ainda é muito forte na sociedade. A avaliação é de Gislene Silva, professora de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que defendeu a teoria em sua tese de doutorado. “Perdemos a ligação com a terra, com o ciclo das colheitas, mas não a memória afetiva”, diz. Segundo ela, um dos indícios desse vínculo passa pelos alimentos – relatados como sempre frescos e saborosos –, mesmo que, no dia a dia das cidades, os consumidores se rendam aos deliveries e congelados.
Esse sentimento foi traduzido pela culinarista e colunista gastronômica, Nina Horta, como comfort food, ou comida da alma, que ultrapassa essa relação entre campo e cidade. “É uma vontade de voltar às origens, de comer comida de mãe e não de bula, de uma época em que tudo fazia bem, do fígado ao torresmo, da sopa ao pastel”, analisa. Para Nina, a falta de tempo cria uma barreira para o ritual necessário entre a compra e o preparo dos alimentos. “Antigamente, um picadinho era comida de todo dia, mas suja uma porção de louça com seus acompanhamentos. Então deixamos de lado e comemos um sanduíche de atum”, exemplifica.
Mesmo assim, nunca se falou tanto em comida. Em uma década, chefs viraram estrelas de televisão, gourmets se transformaram em blogueiros e fotografar o prato antes de comer virou mania. Exageros e modismo à parte, Khatounian percebe um movimento de consumidores que buscam resgatar uma ligação com os alimentos. Ele cita como exemplo as feiras de orgânicos que tinham pouca importância quando surgiram em meados da década de 1990. Agora, o setor se prepara para movimentar R$ 2 bilhões no próximo ano, segundo dados do Ministério da Agricultura. “É um sinal de que nem todos encaram comida apenas como commodity”, acredita.
Para o sociólogo e estudioso da alimentação Carlos Alberto Dória [1], o consumidor faz suas escolhas conforme a variação de seus desejos. Nos últimos tempos, segundo ele, estão em foco a discussão sobre ingredientes e a recuperação de alimentos tradicionais. “É um sinal positivo para a descoberta de novos valores gastronômicos, mesmo que, por vezes, venha acompanhado de um marketing demasiado”, diz. Dória, no entanto, acredita que essas produções serão sempre direcionadas a determinados nichos, como a agricultura orgânica. “Acreditar em um sistema intensivo desse cultivo é uma utopia em larga escala”, declara.
[1] Publicou livros sobre o tema e comanda a ONG C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, voltada para a difusão de conhecimento sobre a culinária brasileira
Mudar os hábitos é uma tarefa árdua que requer tempo, mas Guta Chaves, professora e escritora de gastronomia, acredita ser possível. “O processo histórico e econômico do século XX foi marcado pela monocultura, pela industrialização das cidades e por alimentos padronizados ao alcance das mãos nos supermercados”, diz. Diante disso, segundo ela, é preciso ter paciência para qualquer tipo de mudança. Guta concorda com o professor da Esalq sobre uma parcela de consumidores interessados em um outro jeito de se alimentar. “Às vezes, restringe-se a um pequeno grupo das classes A e B, mas isso pode apontar uma tendência”, diz. A professora cita como exemplo o livro recém-lançado e escrito em parceria – Expedição Brasil Gastronômico – que retrata as particularidades dos ingredientes e da cozinha de seis estados do País. Segundo ela, há 15 anos, quando começou a trabalhar na área, o tema da publicação levaria o rótulo de regional.
Resgatar ingredientes regionais ou esquecidos é uma empreitada que a chef de cozinha Mara Salles se dispôs a enfrentar há 24 anos. Proprietária do restaurante Tordesilhas, especializado em culinária brasileira, em São Paulo, ela já foi atrás de raízes quase em extinção (como o mangarito, uma espécie de batatinha miúda considerada a trufa brasileira), dos queijos artesanais de Minas Gerais e da cozinheira indígena Dona Brazi, no Amazonas, que mostrou um cardápio recheado de formigas içás. “Sempre tive apreço por alimentos e seu componente histórico”, diz.
Para Mara, a avalanche de produtos em grande escala e sem qualidade penaliza o pequeno produtor. “Se o consumidor tivesse conhecimento da perda da diversidade botânica com a padronização alimentar, tudo seria diferente”, acredita. Por essa razão, ela avalia que o papel do chef, que faz uma cozinha pensada, é o de manter o compromisso com a biodiversidade.
Mara Salles cerca-se de uma rede de pequenos agricultores espalhados pelo País para abastecer o restaurante com produtos locais. Mas não raro se depara com clientes que não entendem a falta de ingredientes em certas épocas para pratos já sacramentados. “Quem nasce na roça compreende melhor a sazonalidade e a dificuldade de fazer uma semente vingar; e sabe que nem sempre o fruto mais belo é o mais gostoso”, compara.
Mas acredita que consegue transmitir essas nuances por meio de sua cozinha, que remete a sua própria comfort food, com memórias da colheita de flores de abóbora para a sopa, a secagem do café no terreiro de chão socado e a nata do leite batida para a manteiga durante a infância em uma fazenda no interior paulista.
Como a oferta cria a demanda
Com acesso aos meios de comunicação e aumento de renda, a população no campo passou a desejar os itens de consumo tipicamente urbanosValéria de Marcos é doutora em Geografia Agrária pela Universidade de Gênova, na Itália, e já estudou diversas comunidades pelo Brasil, da Paraíba ao interior de São Paulo. Nos trabalhos de campo que faz com seus alunos da USP, onde é professora titular, analisa e discute os modos de vida e a produção camponesa. Aqui, escreve sobre como os padrões urbanos de consumo são perceptíveis no campo:
“A chegada da televisão ao campo colocou para as pessoas necessidades que antes elas não tinham. Quando estudei a comunidade Sensei, em Guaraçaí, no interior de São Paulo, foi apontado como ponto de ruptura na comunidade justamente a chegada da televisão – mas não só isso. Durante muito tempo, não havia renda suficiente para que tivessem acesso aos produtos apresentados na tevê. Com o gradativo aumento da renda, quem está no campo passou a desejar os mesmos itens consumidos por quem está na cidade, seja no vestuário, seja em um padrão de comportamento.
“Esse fenômeno se dá também na alimentação: bebida gaseificada, suco em pó, salgadinhos de ‘isopor’. Uma das cenas que mais me chocaram se deu nas comunidades quilombolas do Pará. Uma mulher que visitei fazia aqueles saquinhos congelados de sucos naturais de frutas, ‘geladinhos’ de abacate e cupuaçu, maravilhosos. Mas a netinha comia salgadinho – e das marcas mais baratas.
“A partir do momento em que troco um alimento saudável por um industrializado, sem as mesmas características nutricionais, estou realmente colocando em risco a qualidade da alimentação que nós, habitantes da cidade, já perdemos. “Quando vamos ao campo e vemos pé de fruta com fruta caindo no chão, nos perguntamos: ‘Por que eles não fazem suco disso?’ Mas nós pouco vamos à feira comprar fruta, compramos o suco pronto, o pozinho – o que, no fundo, é uma repetição desse padrão. O ideário desse comportamento está se difundindo, uma lógica de pensar. Os desejos de consumo, que até pouco tempo eram típicos do urbano, agora não são mais.” (por Lydia Minhoto Cintra)