SEGURANÇA ALIMENTAR
“Alimento existe, o problema é fazê-lo chegar a todos”, diz especialista ligado ao governo
Para a ONU, segurança alimentar é uma condição que pressupõe quatro dimensões no abastecimento de alimentos para uma população: disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade. Já o Conselho Nacional de Segurança Alimentar coloca em pauta os modelos de produção e consumo, defendendo que o acesso deve prezar pela qualidade com base em práticas “promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”. Com um vasto leque de definições e possibilidades de entendimento, é um desafio responder em que medida um país é seguro em termos alimentares.
“Segurança alimentar não é só reduzir a miséria no campo. É ter oferta pra alimentar a população da cidade. E o agronegócio também faz isso”, defende André Nassar, sócio-diretor da consultoria Agroicone e especialista em agronegócio. Para ele, tanto a agricultura comercial quanto a familiar estão vinculadas à cadeia de suprimentos de alimentos. A produção de grãos como milho e soja no Brasil, mesmo que tenha foco na exportação, alimenta animais que serão consumidos pela população. Nessa interpretação, a segurança estaria especialmente relacionada à quantidade de calorias consumidas. “A menos que você julgue que a segurança alimentar não seja garantida via proteína animal”, diz Nassar.
Além da quantidade, como se sabe, é preciso acesso à diversidade. Variar as refeições com legumes, verduras, frutas e cereais é essencial e reflete uma combinação importante de nutrientes para o organismo humano. Fomentar o consumo desses alimentos, produzidos localmente, reduz custos com transporte e conservação. “O consumidor que privilegiar os alimentos produzidos em sua cidade terá acesso a alimentos de melhor qualidade e a preço mais acessível”, diz Sebastião Wilson Tivelli, pesquisador da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo. Para Tivelli, a insegurança alimentar mundial não se dá por falta de comida. “Alimento existe, o problema é fazê-lo chegar a todos.” (Por Lydia Minhoto Cintra)
Leia a íntegra da entrevista com Wilson Tivelli
SEGURANÇA SANITÁRIA
Estamos mais seguros em relação à contaminação biológica, porém mais inseguros quanto à contaminação química, segundo nutricionista
O salto tecnológico propiciado pela Revolução Industrial a partir do século XVIII mudou significativamente o consumo de alimentos. O crescimento das cidades criou novas necessidades de abastecimento, o que gerou mudanças nos processos de produção e até mesmo na função das embalagens. Foi nesse período que surgiram os primeiros enlatados [1]. A indústria cumpriu sua função com processos como esterilização e irradiação: diminuiu os riscos de contaminação biológica, causada por microrganismos, para aumentar o tempo de prateleira e baixar os preços.
[1] O primeiro leite condensado em lata foi produzido em1856 pelo americano Gail Borden
[2] O processo expõe o alimento a uma carga de irradiação equivalente à necessária para realizar cerca de 30 a 150 milhões de radiografias de tórax, segundo a nutricionista
“Não podemos dizer que morando na cidade isso não seja positivo. Como a gente vai tomar leite fresco se demorar uma semana para chegar a nossa mesa?”, diz a nutricionista Elaine de Azevedo. “Eu diria que estamos mais seguros em relação à contaminação biológica, porém mais inseguros em contaminação química.”
Essa insegurança se manifesta também no intenso uso de contaminantes químicos (agrotóxicos) e aditivos sintéticos (corantes e conservantes), que muitas vezes mascaram a baixa qualidade dos alimentos. “Estamos priorizando a segurança sanitária dos alimentos em detrimento da sua qualidade e pureza.” A maior aceitação dos alimentos industrializados também varia de acordo com o país. “A gente não tem o culto ao alimento como na Itália”, exemplifica a professora da USP Valéria de Marcos. Quando, nos anos 2000, a União Europeia tentou introduzir uma série de normativas higiênicas que colocavam em risco o desaparecimento de produtos locais, os produtores se organizaram e gritaram contra. “Tem vários queijos que ficam maturando em grutas, enterrados na terra. Se isso desaparece, você perde a riqueza da culinária.” (Por Lydia Minhoto Cintra)
Leia mais:
A técnica controversa de esterilização de alimentos, em “Para entender a irradiação de alimentos“
QUALIDADE NUTRICIONAL
Alimentos processados perdem parte de seu valor. É preciso estar atento até mesmo aos vegetais frescos
Avaliar o valor nutritivo dos alimentos industrializados é difícil. Quanto mais processado, mais nutrientes são perdidos, sobretudo vitaminas e minerais. Para compensar essas perdas, a indústria trata de adicionar elementos artificialmente. São cada vez mais comuns os avisos nas embalagens: “rico em fibras”, “fontes de vitaminas”.
Até o leite, que naturalmente é pobre em ferro, ganhou versões turbinadas do elemento. Segundo especialistas, é uma alteração desnecessária, já que, entre os mamíferos, apenas os humanos continuam a tomar leite após o desmame, quando já podemos encontrar o ferro em outras fontes.
Alimentos “turbinados” não substituem os frescos porque carregam elementos extras: aditivos e corantes que visam padronizar cores, texturas e conservá-los por mais tempo. Segundo Carlos Armenio Khatounian, professor de agroecologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, há uma regrinha sobre qualidade nutricional de alimentos: tudo o que é bom estraga, é atacado por insetos, fungos etc. “Desconfie de qualquer alimento que possa ser guardado indefinidamente”, aconselha.
Os aditivos são componentes relativamente recentes na indústria alimentícia e cada vez mais usados. Mas não há estudos conclusivos sobre os efeitos de sua ingestão. “Há estudos de curto prazo e em animais que indicam efeitos colaterais para a saúde. Para saber o impacto em pessoas, no entanto, precisa-se de mais tempo e análises”, diz a nutricionista Valdirene Neves dos Santos, professora da Unip.
Mesmo os alimentos in natura devem receber atenção para que não percam seus nutrientes quando armazenados e preparados. A feira na “hora da xepa” é mais barata, mas é menos rica para o corpo. Frutas, legumes e hortaliças, expostos muitas horas ao sol e ao calor, perdem nutrientes, mesmo dentro da casca. Isso acontece com pimentões, folhas verdes e frutas com têm vitamina C – que é fotossensível e se perde em contato com a luz. (Por Thaís Herrero)
CADEIA DE VALOR
Cada vez mais, o consumidor quer saber a origem do alimento e a forma como foi produzido
A curiosidade e a exigência do consumidor chegaram às gôndolas dos supermercados: é cada vez mais comum que indústrias e redes varejistas se movimentem para conhecer e apresentar aos clientes as origens de suas matérias-primas e produtos agrícolas. “As pessoas buscam mais ética e estão exigindo mais das empresas”, afirma Carolina Galvani, gerente de Campanhas de Animais de Produção da Humane Society Internacional (HSI) no Brasil, organização mundial de bem-estar animal.
“O varejo usa o bem-estar animal como nicho de mercado. Eles já oferecem produtos com melhores padrões, mas, no Brasil, nenhum deles adotou ainda um comprometimento rígido, como a eliminação das celas de gestação e gaiolas em bateria (para criação de porcas e galinhas poedeiras)”, diz Carolina [1].
Uma pesquisa [2] feita em 2012 pelo Instituto Akatu revelou os cinco aspectos que mais se destacam como motivadores da preferência do consumidor: ter boas relações com a comunidade, possuir selos de proteção ambiental, manter boas relações de trabalho, ajudar na redução do consumo de energia e não haver maus-tratos de animais.
Por isso, programas que atestam o controle na cadeia de fornecimento tornaram-se fonte de valor para os supermercados. O programa “Qualidade desde a Origem”, do Grupo Pão de Açúcar, por exemplo, trabalha com auditoria de fornecedores, análise de resíduos de agrotóxicos, análise microbiológica, inspeção de qualidade e rastreamento.
O grupo pretende estender seu programa à produção de frangos e suínos. Hoje, só as carnes bovinas são rastreadas – há um compromisso de não comprar carne de gado criado em Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal. Além do mais, os fornecedores são fiscalizados pelo Serviço de Inspeção Federal (SIF), o que inibe negócios com abatedouros clandestinos. (Por Lydia Minhoto Cintra)
[1] Para saber o que são celas de gestação e gaiolas em bateria, acesse aqui e aqui
[2] Acesse a pesquisa Rumo à Sociedade do Bem-Estar
Leia as entrevistas com dois porta-vozes do Grupo Pão de Açúcar sobre o programa Qualidade Desde a Origem