Grafite e muito diálogo são as armas de um projeto no Rio de Janeiro para prevenir a violência doméstica
“O pessoal acha que violência doméstica é só porrada. Mas existem outras situações tão normalizadas que as pessoas nem identificam como agressão. E quando você não identifica, aceita.” Falando assim abertamente, a artista plástica e ativista Panmela Castro ajuda a quebrar uma das barreiras que mais dificultam o combate a abusos contra mulheres: a comunicação. Mostrar com clareza as situações cotidianas que envolvem o problema e, principalmente, mobilizar as pessoas a reverter esse quadro são alguns dos desafios superados dia a dia com o projeto Graffitti Pelo Fim da Violência Doméstica, tocado pela rede Nami. A organização fundada por Panmela é um coletivo de grafiteiras que se mobiliza pelo empoderamento feminino na sociedade.
O projeto usa a linguagem do grafite para aproximar jovens do atualíssimo debate sobre agressões a mulheres. Durante oficinas em escolas públicas do Rio de Janeiro, integrantes da rede Nami abordam com adolescentes situações cotidianas que raramente são encaradas como violência – assédio, xingamentos, repressão sexual ou brigas de casal. Aos poucos, cada participante vai contando sua história e sua experiência e as reflexões sobre machismo e direitos são ampliadas. “É uma conversa, não é uma palestra. Porque cada um tem sua história, às vezes, se não conta a sua, conta a de uma amiga”, explica Panmela.
A segunda parte das oficinas é com latas de tinta e sprays na mão: meninos e meninas expressam através do grafite o que aprenderam nos debates sobre respeito e igualdade.
Não é incomum as facilitadoras das oficinas encontrarem nas escolas discursos e posturas machistas e narrativas assustadoras de abusos contra meninas. Entretanto, a conversa é levada sem julgamentos, para que eles consigam entender sozinhos onde está a violência e como ela deve ser combatida. “Nossa militância principal é de indivíduo pra indivíduo”, argumenta Panmela.
A experiência com as oficinas mostra que os abusos são frequentemente banalizados. Um vídeo muito usado na sensibilização ilustra a situação de um jovem que repreende e ofende a sua namorada por usar uma roupa curta. Só ao assistirem à cena é que muitos dos participantes se dão conta de que esse tipo de situação, corriqueira entre casais adolescentes, representa um desrespeito cotidiano.
A mudança de percepção faz parte dos objetivos da oficina, como explica Panmela: “Perguntamos antes, durante e depois da oficina ‘você já sofreu violência doméstica?’ e percebemos um aumento gradativo das respostas positivas reportadas de um questionário para outro”.
A Lei Maria da Penha, dispositivo legal de maior importância no combate à violência de gênero, joga a favor do trabalho de sensibilização dessa geração, na opinião dela. “Esses adolescentes nasceram quando a lei já existia e sabem que bater em mulher dá cadeia.”
Repintando a história
A história de militância de Panmela se funde com sua própria biografia. Ela vivenciou a violência doméstica durante um casamento, experiência sobre a qual fala abertamente. Mesmo após se refugiar na casa dos pais, era constantemente perseguida e se sentia intimidada. Até que ela, que já pichava muros quando adolescente, foi convidada por amigos para grafitar. “Eu sabia que ali meu ex-marido não ia tentar nada, porque eu estava com várias pessoas ao meu lado.”
Com os amigos do grafite, Panmela redescobriu não só a arte, mas a coragem para retomar a vida ao ar livre. “Passei seis meses em depressão dentro de casa, sem fazer nada e essa foi a oportunidade para poder voltar a viver a minha vida. O grafite foi uma forma de eu me ressocializar.”
A partir daí, a arte de rua tomou conta da sua vida. Panmela fez faculdade e mestrado em Artes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), respectivamente. Mas a falta de espaço para mulheres no mundo artístico a incomodava: “Como em outros lugares, o ambiente do grafite é dominado por homens. Também existem poucas mulheres rappers ou b-girls (nome dado à dançarinas de break e outras danças de rua).”
Pensando em criar uma nova alternativa para as grafiteiras, aos poucos formou sua própria rede de contatos que deu origem à Nami. “A mulher não vai sair sozinha para grafitar, porque há várias barreiras”, argumenta Panmela. Uma das funções da rede, portanto, é dar suporte e chance àquelas que querem fazer sua arte na rua. Isso inclui capacitação e agenciamento de trabalhos.
Além da promoção da arte em si, a rede promove encontros e formações sobre feminismo, empreendedorismo e direitos das mulheres. No seio da arte está o questionamento sobre a posição da mulher na sociedade e as regras às quais ela está sujeita a se submeter.
Os trabalhos de mobilização da rede Nami já renderam dois prêmios internacionais de direitos humanos: o Vital Voices Global Leadership Awards, da Organização Vital Voices, fundada pela secretária de Estado dos Estados Unidos Hillary Clinton, e o DVF Awards, da Fundação Diller Von Furstenberg Family Fundation, organização da estilista Diane Von Furstenberg.
Muito além das tintas
Um dos projetos da rede realizou 30 oficinas com as “Mulheres da Paz”, senhoras idosas que atuam como conciliadoras em comunidades pobres do Rio de Janeiro. As “oficineiras” mediavam conversas entre elas e grupos de jovens sobre as questões da comunidade, inserindo também os temas da discriminação e cidadania.
A união das duas gerações se deu no momento do grafite. “Uma mulher com 70 anos me marcou muito por ter falado ‘nossa, eu nunca pensei que eu ia poder fazer um negócio bonito desses’, deslumbrada pelo próprio grafite na parede.”
O grafite é, portanto, reconhecido por Panmela como uma poderosa ferramenta de transformação social não só pela comunicação, mas pela socialização proporcionada pela atividade. “O lance do grafite é estar na rua e tirar proveito de tudo o que ela te oferece: conhecer as pessoas, comunicar-se com o outro, fazer sua arte… Você faz o grafite e no outro dia todo mundo viu e comenta. É muito mais do que só pintar, né?”
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Veja algumas fotos das obras da rede Nami na seção Retrato