Para quem sai da Zona Sul são dois ônibus, com risco de pegar a linha errada, já que os olhos estão acostumados àquela paisagem do cartão-postal em que vive a elite branca carioca. O Complexo da Maré impressiona, primeiro, pelo tamanho e formato – são cerca de 130 mil moradores em diversas comunidades e conjuntos habitacionais espalhados horizontalmente – e por estar às margens da Avenida Brasil e da Baía de Guanabara. O manguezal da Maré foi ocupado a partir do século XX por barracos e palafitas, depois aterrado pela população e pelo poder público. Virava notícia só quando o aglomerado inundava ou nos episódios de violência – ao menos três facções criminosas ali se alojam.
Tirando a enchente, pouco mudou com os anos, tal como as distinções periferia/centro, asfalto/favela que cuidam de perpetuar estereótipos, evitando um pensamento de transformações. A diversidade da Maré comporta, desde 2001, o Observatório de Favelas, organização social que trata de reposicionar o tema e os espaços populares na vida da cidade. “A favela e a periferia sempre estiveram presentes na agenda da cidade a partir de ‘pré-conceitos’ que se tornaram ‘conceitos’: espaços de carência, ilegalidade, informalidade e da violência. É preciso entender a favela como possibilidade de construir uma outra utopia de cidade”, afirma Jorge Luiz Barbosa, um dos fundadores do Observatório de Favelas, que falou para esta edição de PÁGINA22.
O Observatório de Favelas (OF) é uma organização social criada em 2001 com a perspectiva de construir conhecimento sobre as favelas e espaços populares. Nesses primeiros anos, o objetivo central era incentivar essa produção de informações e, ao mesmo tempo, formar pesquisadores locais, nas comunidades. Os próprios fundadores e hoje diretores vieram dessas comunidades? Podemos dizer que, no início do Observatório, a ideia era levar a favela e a periferia para a pauta de discussões da sociedade? Torná-la visível? Fale sobre esse começo e o que implica uma organização social surgir de gente de dentro da realidade vivida.
O Observatório é uma instituição que busca a produção de conhecimento. Nós somos oriundos de espaços populares e passamos pela universidade. Nunca nos afastamos das nossas relações de pertencimento aos espaços populares. A ideia de construir um observatório era ter uma instituição capaz de construir conhecimento inovador, fazer desse conhecimento uma mediação para a ação pública, sobretudo colocando a favela na agenda da cidade de uma forma positiva. A favela e a periferia sempre estiveram presentes na agenda da cidade, mas de uma forma negativa, com base em “pré-conceitos” que se tornaram “conceitos”: espaços de carência, ilegalidade, informalidade e da violência. E cujo receituário era remoção, ou seja, a favela sempre vista como problema ou distorção da urbanização acelerada do território brasileiro.
A ideia era, a partir da produção de conhecimento, colocar a periferia e a favela de uma forma propositiva e positiva. Mostrar que ela é produto das contradições da cidade e das desigualdades sociais, da distinção territorial dos direitos e, ao mesmo tempo, é uma expressão legítima do direito de habitar a cidade por parte de grupos sociais mais vulneráveis, mais desiguais. Isso gera uma inversão, uma inflexão política do lugar da favela na agenda. Em vez de ser um problema, ela se torna uma esfera da busca pelo direito de cidade. “Ah, precisa urbanizar as favelas”, dizem. Claro, é preciso ter saneamento, habitações qualificadas, equipamentos culturais e educacionais, ou seja, toda a urbanidade que uma cidade possui. Mas, mais que isso, é preciso entender a favela como possibilidade de construir uma outra utopia de cidade. Novas sociabilidades, novos encontros e experiências de estar com o outro, reconhecimento de que somos uma sociedade diferente e plural. Tentamos pautar não um projeto para a favela, mas um projeto para a cidade, um projeto novo e radical de cidade.
Quem eram vocês há 13 anos, quando da fundação do OF? Eram colegas de universidade, vizinhos de bairro?
Eu e Jailson (Jailson de Souza e Silva também é fundador e diretor do OF) estudamos juntos, na mesma universidade, no curso de Geografia. E sou do Caju (bairro da região central do Rio) e o Jailson é de Brás de Pina (bairro da Zona Norte), depois ele se mudou para a Maré. Nós viemos de bairros populares e já tínhamos alguma experiência de militância. Ele, mais na militância católica popular; eu, mais na militância estudantil. Ele já fazia um trabalho na Maré e me convidou para trabalhar no censo da Maré, na leitura dos dados. Fui ficando e resolvemos criar uma instituição, como um observatório, que não fosse da Maré, e sim para a Maré. Fizemos um projeto para a Fundação Ford e durante dois anos tivemos esse apoio, criamos um grande projeto de formação de pesquisadores populares, o que abriu o horizonte de construção da instituição que acabou ficando na Maré, nosso berço.
E como foi a transformação do OF ao longo do tempo, quando passou a abrigar pessoas com formações e origens diversas? Isso foi guiado pelos projetos?
Nós passamos a entender que havia uma agenda de democratização da cidade a partir de políticas públicas. E passamos a entender quais os campos principais do debate para o direito à cidade, trabalhando em grandes temáticas. Direitos Humanos, por exemplo, para nós é decisivo, diante do processo brutal de repressão e violência, porque, de fato, consideramos que as favelas não são violentas. Elas são mais duramente afetadas pela violência. Isso faz uma inflexão na política de segurança pública, ou seja, a favela é um lugar de pessoas mais desprotegidas, mais frágeis e vulneráveis à violência urbana. Porque o Estado abdicou das favelas e não impediu, de uma forma segura e efetiva, que elas fossem ocupadas por grupos criminosos e armados. Criamos outra linha para se pensar os Direitos Humanos, trazendo esse debate para dentro do território.
Entramos também na educação, pois entendíamos que a política de educação no campo da universidade era um divisor de águas que não superava as desigualdades. Sobretudo as desigualdades raciais e territoriais. Queríamos que a universidade abrigasse de fato a democracia e os grupos populares e não estivesse tão distante que as pessoas não pudessem sonhar. Então criamos o projeto Conexões de Saberes, de 2005 a 2008, que depois se tornou uma política pública do MEC (Ministério da Educação) e hoje é um PET, ou Programa Especial de Treinamento do Ministério da Educação. Esse projeto que desenhamos aconteceu em 33 universidades. O MEC absorveu muita coisa do projeto. E isso deu a possibilidade de o Ministério trabalhar a política de cotas com muito mais conhecimento do que acontecia em termos de ingresso e permanência dos jovens nas universidades. Fizemos uma grande pesquisa em 33 universidades brasileiras sobre a questão do ingresso, pegando os cursos mais procurados e os menos procurados e como o jovem de origem popular ingressava em um lado ou outro.
A partir daí, vimos que estudantes de escolas privadas ou escolas públicas federais têm muito maior probabilidade de entrar nos cursos de maior concorrência do que os de origem popular. Outro dado foi a renda familiar. Filhos de determinadas classes com maior renda e propriedade também têm maior chance de entrar nas universidades. Isso já estava consagrado, mas conseguimos comprovar pelas pesquisas.
O que não estava comprovado e foi determinante para uma política pública afirmativa foi um dado que a gente descobriu: a escolaridade dos pais, o currículo implícito. Um jovem de origem popular, em média, entrava aos 24 anos na universidade, entrava quando estava na hora de sair. Já tinha um recorte aí e outras implicações: a variável fundamental era a escolaridade dos pais. Ou seja, um jovem cujo pai e mãe têm mestrado, doutorado ou graduação tem muito mais chance de entrar na universidade do que pela questão da renda ou pelo fato de ter passado por escola privada. Porque esse jovem teve acesso a um livro, ia ao teatro, ao cinema, tinha um currículo implícito que o distinguia dos demais. O capital social e cultural tornava-se fundamental para o vestibular e para entrar no curso.
Ao juntarmos um recorte racial – nós sabemos que grande parte dos negros tem mais dificuldade de acesso – e a questão social (o currículo implícito), ficou evidente que, para superar essa situação de desigualdade social que a universidade reproduzia, só com uma política de ação afirmativa, de cotas. Entre um jovem que mora na Rocinha e outro que mora em um apartamento em condomínio de São Conrado, apesar de serem vizinhos, há uma territorialidade muito diferente. Um jovem da Rocinha para alcançar um nível de escolaridade de um jovem de São Conrado levaria 100 anos sem as políticas públicas de acesso.
Passamos a pautar esse debate nas universidades, que se beneficiaram desses estudos. Eu e Jailson, por exemplo, fomos os primeiros das nossas famílias a entrar na universidade, o que mostra como ela esteve distante dos projetos e sonhos de uma grande parte da população, por muitas gerações.
Esse foi um projeto que deixou um lastro.
Também tivemos outros, como o programa para redução da violência letal. Fizemos uma pesquisa em 16 cidades brasileiras e criamos um índice de homicídios entre jovens e adolescentes, mostrando na pesquisa quem eram os jovens mais vulneráveis ao homicídio. Negros, moradores de favelas e de periferias são os mais vitimados, seja pela ação da polícia, seja em decorrência do enfrentamento entre facções criminosas. Criamos um guia de redução de violência letal que se tornou política pública federal para os municípios, com apoio do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Esse também é um legado importante que o Observatório deixou em termos de política pública.
Centro/periferia ou asfalto/favela são palavras e distinções ainda usadas correntemente. Como as entende? O que elas compreendem (território, condição financeira, diferença) e o que suscitam?
Quando se colocam essas palavras, o que querem dizer? Sempre tem uma conotação de valorização.
Só existe centro se houver periferia, asfalto se tiver favela. Ideias de superiorização e de que o mundo pode ser partido em coisas binárias, de que o centro não seria o centro sem a periferia. Existem conflitos e tensões que precisamos trabalhar, mas não de uma forma distintiva, que tem consequências sérias em relação à própria vida de quem habita cada espaço. Essas palavras trazem a ideia de que vivemos em cidades partidas, metrópoles partidas, e isso acaba ocultando a questão da desigualdade socioeconômica que se expressa territorialmente e que nós chamamos de distinção territorial de direitos. Algumas pessoas na cidade têm mais direitos que as outras. Por isso a vida de algumas pessoas é mais valorizada que a de outras.
Ou seja, essas construções binárias ocultam contradições e conflitos e perpetuam e naturalizam as desigualdades. Nosso exercício é “desnaturalizar” a desigualdade. A diferença no Brasil acaba servindo de legitimidade para a desigualdade. “Ah, você é assim porque é mulher, porque é negro, é favelado.” Ou seja, nós temos de ser bastante efetivos na valorização da diferença e na superação da desigualdade. Como se faz isso? A política pública no âmbito da cultura, da urbanidade, dos direitos à vida, da comunicação e educação tem de se pautar por uma inflexão territorial dos direitos públicos. Tem de tratar de modo desigual os desiguais.
Se não tiver uma inflexão territorial, vamos ter uma concentração de investimentos públicos em determinados espaços da cidade que só reproduzem a desigualdade. As favelas e periferias têm de ser reconhecidas como espaços de produção de arte, de sociabilidade que podem construir um novo projeto de cidade. Você supera a ideia de periferia e aponta a periferia como centro difusor de cultura, de arte, experiências de solidariedade, de invenção de possibilidades. Hoje a periferia é essa centralidade importante.
Há alguns anos a periferia e a favela chegavam à mídia quando se tratava de violência, exclusão social, pobreza, mundo informal. Vimos o rolezinho, a veiculação da imagem das favelas nas novelas e na publicidade, em reportagens que traçam o perfil das classes C, D e E. Até que ponto não se trata de meras substituições de temas para manutenção dos estereótipos? O que mudou?
Existe um foco em cima de estereótipos e que tende a ser romantizado. Quando se fala do fenômeno do rolezinho, vemos que ele acontece nos shoppings de periferia da cidade. Por quê? O shopping de periferia é para o menino frequentar se ele não tem um museu, uma praça, um parque, uma biblioteca, onde ele vai fazer o seu encontro? Ele tem suas tramas virtuais, mas chega um momento em que os caras querem dar beijo na boca, se abraçar, tirar fotografia, conversar, se tocar. Pra onde eles vão? Os shoppings das periferias precisam reconhecer que devem se tornar espaços públicos. E abrigar a diferença. Ou a propriedade privada acha que não tem nada a ver com a sociedade? É uma ilha fechada em si mesmo que só vai tratar as pessoas como consumidores?
Por outro lado, nessas imagens que estamos vendo na mídia, seja na TV, seja no cinema, a favela virou um espetáculo. O espetáculo da violência. As cenas de um filme que espetaculariza a violência acontecem onde? Na favela. Então tem também uma espetacularização da pobreza, da cultura e, na verdade, o que isso contribui para que a favela entre na cena política? Muito pouco, porque em tudo se mantêm os estereótipos. Então como ela deve entrar na mídia? Como ela é.
A favela e a periferia são legítimos espaços de luta para habitar a cidade, pelo direito à cidade, mas existem conflitos, contradições, desemprego, violência doméstica, tem a presença do narcotráfico, tem a ação violenta da polícia, tem habitações e situação de risco. Então, não dá pra glamourizar a favela. Ela precisa ser vista como esforços de gerações e gerações pelo legítimo direito de morar. Reconhecer não significa achar que está tudo legal. Eu conheço a periferia de São Paulo, falta saneamento, há problemas ambientais sérios, desemprego, violação de direitos, ou seja, quando passa na novela Salve Jorge, as pessoas estão desfilando, dançando, sambando no bar. Existe isso, mas tem contradições e conflitos também que precisam ser compreendidos e considerados.
E o fato de a periferia ser vista hoje como um grande mercado de consumo? O rolezinho, nesse caso, seria apenas a exposição desses sinais? A periferia, assim como toda a sociedade, está ditada por aspirações que emergem de um modelo de consumo capitalista? Como isso se liga com questões ambientais, climáticas, por exemplo?
O Brasil é um dos principais mercados de carros do mundo. A ideia consolidada pelas próprias classes dominantes é que a cidadania está ligada a consumo. Ou seja, sou mais cidadão quanto mais eu consumo. É a partir da aquisição de bens distintivos que as pessoas se afirmam, se valorizam. Então, de certo modo, a política econômica traz essa subjetividade. Pensamos que a política econômica é objetiva, dinheiro aqui, mercadoria ali, mas ela tem uma forte subjetividade. Eu sou melhor do que você em função do objeto que eu compro. Então você está diante de um dilema entre o consumidor e cidadão. Vamos voltar às pessoas. As pessoas que moram nas favelas e periferias não estão em uma ilha, elas participam da vida urbana, vivem em uma cultura urbana, com valores, juízos e distinções que são hegemônicos na sociedade.
Então você quer que o cara da favela seja ecologicamente correto? Não dá, né? Ele não tem saneamento, não tem coleta de lixo regular, a beira do rio enche sempre, mas, sim, ele precisa ser ecologicamente correto. A sociedade pode ser incorreta. Eles estão inseridos numa sociedade de consumo onde o consumidor vale mais que o cidadão. Como você muda isso? Com política pública. Por exemplo, as pessoas da periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro gastam quantas horas para chegar ao trabalho e voltar? Duas, três horas? Num ônibus apertado ou no trem lotado. Duas horas pra ir, duas pra voltar. A que horas essa pessoa dorme, lê, se diverte, encontra os amigos? Ora, se é possível ter a oportunidade de comprar um carro e se livrar daquele negócio apertado que não obedece a horário e te maltrata, a pessoa vai comprar um carro, uma moto. Ela está tentando solucionar individualmente algo que devia ser solucionado do ponto de vista coletivo.
Uma das nossas grandes linhas de intervenção é a mobilidade, não só a circulação. Ou seja, nós precisamos ter uma política hoje de transporte coletivo humanamente responsável e de qualidade. Eu não posso gastar quatro, seis horas, isso é um processo de dilapidação de corpos no trabalho. Porque o patrão quer que ele chegue na hora e saia na hora. O que ele faz fora desse período e como faz, pouco importa. Portanto, uma política ambiental hoje importante – relacionada à favela e à periferia – precisa valorizar a dimensão humana da nossa existência, independente da raça, gênero, orientação sexual. Uma política de direitos que valorize nossa vida, a dimensão humana como dimensão ecológica, pois não somos humanos plenos se não tivermos a natureza. Nós, em essência, somos a natureza.
Como se combina isso, uma política ambiental e uma política cidadã, de direitos?
Não é dizer para as pessoas não consumirem. Qual a possibilidade de a gente fazer uma política de direitos que garanta toda uma mudança no nosso modo de vida? Há tantas tradições culinárias, medicinais nas favelas, mas absolutamente subalternizadas, subterrâneas, despidas de valor. Como se retomam outras culturas de vida? Como criar uma política de habitação que dê conta da mobilidade e que não seja essa, por exemplo, do “Minha Casa Minha Vida”? Aqui no Rio de Janeiro o programa coloca todo mundo na Zona Oeste, com um processo brutal de desmatamento dessas áreas, que eram rurais, com sítios, desprovidas de equipamentos culturais, educacionais, de transporte público. Nós estamos vendo um processo de “reperiferização” da pobreza, de distanciamento dos pobres das áreas centrais da cidade. Por outro lado, temos de observar que o discurso ambiental do poder público, de enchentes e áreas de risco, tem se prestado a políticas de remoção.
Quando caracterizamos o debate ambiental, temos de ter uma leitura muito crítica. Assim como se fala centro/periferia, favela/asfalto, os termos ambientais também são apropriados para políticas arbitrárias e autoritárias que legitimam as diferenças e desigualdades. É preciso entender que o risco de desabamento é em ponto, não em área. Se há uma pessoa em risco, uma casa em risco, é preciso atenção a ela. Inclusive fazer de tudo para que ela permaneça na própria comunidade, porque ali ela tem relações de parentesco, de amizade, de confiança. Isso é fundamental. Para a classe média a unidade básica de proteção é a família. Para o pobre, é o território.
Esta entrevista é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.
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Para quem sai da Zona Sul são dois ônibus, com risco de pegar a linha errada, já que os olhos estão acostumados àquela paisagem do cartão-postal em que vive a elite branca carioca. O Complexo da Maré impressiona, primeiro, pelo tamanho e formato – são cerca de 130 mil moradores em diversas comunidades e conjuntos habitacionais espalhados horizontalmente – e por estar às margens da Avenida Brasil e da Baía de Guanabara. O manguezal da Maré foi ocupado a partir do século XX por barracos e palafitas, depois aterrado pela população e pelo poder público. Virava notícia só quando o aglomerado inundava ou nos episódios de violência – ao menos três facções criminosas ali se alojam.
Tirando a enchente, pouco mudou com os anos, tal como as distinções periferia/centro, asfalto/favela que cuidam de perpetuar estereótipos, evitando um pensamento de transformações. A diversidade da Maré comporta, desde 2001, o Observatório de Favelas, organização social que trata de reposicionar o tema e os espaços populares na vida da cidade. “A favela e a periferia sempre estiveram presentes na agenda da cidade a partir de ‘pré-conceitos’ que se tornaram ‘conceitos’: espaços de carência, ilegalidade, informalidade e da violência. É preciso entender a favela como possibilidade de construir uma outra utopia de cidade”, afirma Jorge Luiz Barbosa, um dos fundadores do Observatório de Favelas, que falou para esta edição de PÁGINA22.
O Observatório de Favelas (OF) é uma organização social criada em 2001 com a perspectiva de construir conhecimento sobre as favelas e espaços populares. Nesses primeiros anos, o objetivo central era incentivar essa produção de informações e, ao mesmo tempo, formar pesquisadores locais, nas comunidades. Os próprios fundadores e hoje diretores vieram dessas comunidades? Podemos dizer que, no início do Observatório, a ideia era levar a favela e a periferia para a pauta de discussões da sociedade? Torná-la visível? Fale sobre esse começo e o que implica uma organização social surgir de gente de dentro da realidade vivida.
O Observatório é uma instituição que busca a produção de conhecimento. Nós somos oriundos de espaços populares e passamos pela universidade. Nunca nos afastamos das nossas relações de pertencimento aos espaços populares. A ideia de construir um observatório era ter uma instituição capaz de construir conhecimento inovador, fazer desse conhecimento uma mediação para a ação pública, sobretudo colocando a favela na agenda da cidade de uma forma positiva. A favela e a periferia sempre estiveram presentes na agenda da cidade, mas de uma forma negativa, com base em “pré-conceitos” que se tornaram “conceitos”: espaços de carência, ilegalidade, informalidade e da violência. E cujo receituário era remoção, ou seja, a favela sempre vista como problema ou distorção da urbanização acelerada do território brasileiro.
A ideia era, a partir da produção de conhecimento, colocar a periferia e a favela de uma forma propositiva e positiva. Mostrar que ela é produto das contradições da cidade e das desigualdades sociais, da distinção territorial dos direitos e, ao mesmo tempo, é uma expressão legítima do direito de habitar a cidade por parte de grupos sociais mais vulneráveis, mais desiguais. Isso gera uma inversão, uma inflexão política do lugar da favela na agenda. Em vez de ser um problema, ela se torna uma esfera da busca pelo direito de cidade. “Ah, precisa urbanizar as favelas”, dizem. Claro, é preciso ter saneamento, habitações qualificadas, equipamentos culturais e educacionais, ou seja, toda a urbanidade que uma cidade possui. Mas, mais que isso, é preciso entender a favela como possibilidade de construir uma outra utopia de cidade. Novas sociabilidades, novos encontros e experiências de estar com o outro, reconhecimento de que somos uma sociedade diferente e plural. Tentamos pautar não um projeto para a favela, mas um projeto para a cidade, um projeto novo e radical de cidade.
Quem eram vocês há 13 anos, quando da fundação do OF? Eram colegas de universidade, vizinhos de bairro?
Eu e Jailson (Jailson de Souza e Silva também é fundador e diretor do OF) estudamos juntos, na mesma universidade, no curso de Geografia. E sou do Caju (bairro da região central do Rio) e o Jailson é de Brás de Pina (bairro da Zona Norte), depois ele se mudou para a Maré. Nós viemos de bairros populares e já tínhamos alguma experiência de militância. Ele, mais na militância católica popular; eu, mais na militância estudantil. Ele já fazia um trabalho na Maré e me convidou para trabalhar no censo da Maré, na leitura dos dados. Fui ficando e resolvemos criar uma instituição, como um observatório, que não fosse da Maré, e sim para a Maré. Fizemos um projeto para a Fundação Ford e durante dois anos tivemos esse apoio, criamos um grande projeto de formação de pesquisadores populares, o que abriu o horizonte de construção da instituição que acabou ficando na Maré, nosso berço.
E como foi a transformação do OF ao longo do tempo, quando passou a abrigar pessoas com formações e origens diversas? Isso foi guiado pelos projetos?
Nós passamos a entender que havia uma agenda de democratização da cidade a partir de políticas públicas. E passamos a entender quais os campos principais do debate para o direito à cidade, trabalhando em grandes temáticas. Direitos Humanos, por exemplo, para nós é decisivo, diante do processo brutal de repressão e violência, porque, de fato, consideramos que as favelas não são violentas. Elas são mais duramente afetadas pela violência. Isso faz uma inflexão na política de segurança pública, ou seja, a favela é um lugar de pessoas mais desprotegidas, mais frágeis e vulneráveis à violência urbana. Porque o Estado abdicou das favelas e não impediu, de uma forma segura e efetiva, que elas fossem ocupadas por grupos criminosos e armados. Criamos outra linha para se pensar os Direitos Humanos, trazendo esse debate para dentro do território.
Entramos também na educação, pois entendíamos que a política de educação no campo da universidade era um divisor de águas que não superava as desigualdades. Sobretudo as desigualdades raciais e territoriais. Queríamos que a universidade abrigasse de fato a democracia e os grupos populares e não estivesse tão distante que as pessoas não pudessem sonhar. Então criamos o projeto Conexões de Saberes, de 2005 a 2008, que depois se tornou uma política pública do MEC (Ministério da Educação) e hoje é um PET, ou Programa Especial de Treinamento do Ministério da Educação. Esse projeto que desenhamos aconteceu em 33 universidades. O MEC absorveu muita coisa do projeto. E isso deu a possibilidade de o Ministério trabalhar a política de cotas com muito mais conhecimento do que acontecia em termos de ingresso e permanência dos jovens nas universidades. Fizemos uma grande pesquisa em 33 universidades brasileiras sobre a questão do ingresso, pegando os cursos mais procurados e os menos procurados e como o jovem de origem popular ingressava em um lado ou outro.
A partir daí, vimos que estudantes de escolas privadas ou escolas públicas federais têm muito maior probabilidade de entrar nos cursos de maior concorrência do que os de origem popular. Outro dado foi a renda familiar. Filhos de determinadas classes com maior renda e propriedade também têm maior chance de entrar nas universidades. Isso já estava consagrado, mas conseguimos comprovar pelas pesquisas.
O que não estava comprovado e foi determinante para uma política pública afirmativa foi um dado que a gente descobriu: a escolaridade dos pais, o currículo implícito. Um jovem de origem popular, em média, entrava aos 24 anos na universidade, entrava quando estava na hora de sair. Já tinha um recorte aí e outras implicações: a variável fundamental era a escolaridade dos pais. Ou seja, um jovem cujo pai e mãe têm mestrado, doutorado ou graduação tem muito mais chance de entrar na universidade do que pela questão da renda ou pelo fato de ter passado por escola privada. Porque esse jovem teve acesso a um livro, ia ao teatro, ao cinema, tinha um currículo implícito que o distinguia dos demais. O capital social e cultural tornava-se fundamental para o vestibular e para entrar no curso.
Ao juntarmos um recorte racial – nós sabemos que grande parte dos negros tem mais dificuldade de acesso – e a questão social (o currículo implícito), ficou evidente que, para superar essa situação de desigualdade social que a universidade reproduzia, só com uma política de ação afirmativa, de cotas. Entre um jovem que mora na Rocinha e outro que mora em um apartamento em condomínio de São Conrado, apesar de serem vizinhos, há uma territorialidade muito diferente. Um jovem da Rocinha para alcançar um nível de escolaridade de um jovem de São Conrado levaria 100 anos sem as políticas públicas de acesso.
Passamos a pautar esse debate nas universidades, que se beneficiaram desses estudos. Eu e Jailson, por exemplo, fomos os primeiros das nossas famílias a entrar na universidade, o que mostra como ela esteve distante dos projetos e sonhos de uma grande parte da população, por muitas gerações.
Esse foi um projeto que deixou um lastro.
Também tivemos outros, como o programa para redução da violência letal. Fizemos uma pesquisa em 16 cidades brasileiras e criamos um índice de homicídios entre jovens e adolescentes, mostrando na pesquisa quem eram os jovens mais vulneráveis ao homicídio. Negros, moradores de favelas e de periferias são os mais vitimados, seja pela ação da polícia, seja em decorrência do enfrentamento entre facções criminosas. Criamos um guia de redução de violência letal que se tornou política pública federal para os municípios, com apoio do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Esse também é um legado importante que o Observatório deixou em termos de política pública.
Centro/periferia ou asfalto/favela são palavras e distinções ainda usadas correntemente. Como as entende? O que elas compreendem (território, condição financeira, diferença) e o que suscitam?
Quando se colocam essas palavras, o que querem dizer? Sempre tem uma conotação de valorização.
Só existe centro se houver periferia, asfalto se tiver favela. Ideias de superiorização e de que o mundo pode ser partido em coisas binárias, de que o centro não seria o centro sem a periferia. Existem conflitos e tensões que precisamos trabalhar, mas não de uma forma distintiva, que tem consequências sérias em relação à própria vida de quem habita cada espaço. Essas palavras trazem a ideia de que vivemos em cidades partidas, metrópoles partidas, e isso acaba ocultando a questão da desigualdade socioeconômica que se expressa territorialmente e que nós chamamos de distinção territorial de direitos. Algumas pessoas na cidade têm mais direitos que as outras. Por isso a vida de algumas pessoas é mais valorizada que a de outras.
Ou seja, essas construções binárias ocultam contradições e conflitos e perpetuam e naturalizam as desigualdades. Nosso exercício é “desnaturalizar” a desigualdade. A diferença no Brasil acaba servindo de legitimidade para a desigualdade. “Ah, você é assim porque é mulher, porque é negro, é favelado.” Ou seja, nós temos de ser bastante efetivos na valorização da diferença e na superação da desigualdade. Como se faz isso? A política pública no âmbito da cultura, da urbanidade, dos direitos à vida, da comunicação e educação tem de se pautar por uma inflexão territorial dos direitos públicos. Tem de tratar de modo desigual os desiguais.
Se não tiver uma inflexão territorial, vamos ter uma concentração de investimentos públicos em determinados espaços da cidade que só reproduzem a desigualdade. As favelas e periferias têm de ser reconhecidas como espaços de produção de arte, de sociabilidade que podem construir um novo projeto de cidade. Você supera a ideia de periferia e aponta a periferia como centro difusor de cultura, de arte, experiências de solidariedade, de invenção de possibilidades. Hoje a periferia é essa centralidade importante.
Há alguns anos a periferia e a favela chegavam à mídia quando se tratava de violência, exclusão social, pobreza, mundo informal. Vimos o rolezinho, a veiculação da imagem das favelas nas novelas e na publicidade, em reportagens que traçam o perfil das classes C, D e E. Até que ponto não se trata de meras substituições de temas para manutenção dos estereótipos? O que mudou?
Existe um foco em cima de estereótipos e que tende a ser romantizado. Quando se fala do fenômeno do rolezinho, vemos que ele acontece nos shoppings de periferia da cidade. Por quê? O shopping de periferia é para o menino frequentar se ele não tem um museu, uma praça, um parque, uma biblioteca, onde ele vai fazer o seu encontro? Ele tem suas tramas virtuais, mas chega um momento em que os caras querem dar beijo na boca, se abraçar, tirar fotografia, conversar, se tocar. Pra onde eles vão? Os shoppings das periferias precisam reconhecer que devem se tornar espaços públicos. E abrigar a diferença. Ou a propriedade privada acha que não tem nada a ver com a sociedade? É uma ilha fechada em si mesmo que só vai tratar as pessoas como consumidores?
Por outro lado, nessas imagens que estamos vendo na mídia, seja na TV, seja no cinema, a favela virou um espetáculo. O espetáculo da violência. As cenas de um filme que espetaculariza a violência acontecem onde? Na favela. Então tem também uma espetacularização da pobreza, da cultura e, na verdade, o que isso contribui para que a favela entre na cena política? Muito pouco, porque em tudo se mantêm os estereótipos. Então como ela deve entrar na mídia? Como ela é.
A favela e a periferia são legítimos espaços de luta para habitar a cidade, pelo direito à cidade, mas existem conflitos, contradições, desemprego, violência doméstica, tem a presença do narcotráfico, tem a ação violenta da polícia, tem habitações e situação de risco. Então, não dá pra glamourizar a favela. Ela precisa ser vista como esforços de gerações e gerações pelo legítimo direito de morar. Reconhecer não significa achar que está tudo legal. Eu conheço a periferia de São Paulo, falta saneamento, há problemas ambientais sérios, desemprego, violação de direitos, ou seja, quando passa na novela Salve Jorge, as pessoas estão desfilando, dançando, sambando no bar. Existe isso, mas tem contradições e conflitos também que precisam ser compreendidos e considerados.
E o fato de a periferia ser vista hoje como um grande mercado de consumo? O rolezinho, nesse caso, seria apenas a exposição desses sinais? A periferia, assim como toda a sociedade, está ditada por aspirações que emergem de um modelo de consumo capitalista? Como isso se liga com questões ambientais, climáticas, por exemplo?
O Brasil é um dos principais mercados de carros do mundo. A ideia consolidada pelas próprias classes dominantes é que a cidadania está ligada a consumo. Ou seja, sou mais cidadão quanto mais eu consumo. É a partir da aquisição de bens distintivos que as pessoas se afirmam, se valorizam. Então, de certo modo, a política econômica traz essa subjetividade. Pensamos que a política econômica é objetiva, dinheiro aqui, mercadoria ali, mas ela tem uma forte subjetividade. Eu sou melhor do que você em função do objeto que eu compro. Então você está diante de um dilema entre o consumidor e cidadão. Vamos voltar às pessoas. As pessoas que moram nas favelas e periferias não estão em uma ilha, elas participam da vida urbana, vivem em uma cultura urbana, com valores, juízos e distinções que são hegemônicos na sociedade.
Então você quer que o cara da favela seja ecologicamente correto? Não dá, né? Ele não tem saneamento, não tem coleta de lixo regular, a beira do rio enche sempre, mas, sim, ele precisa ser ecologicamente correto. A sociedade pode ser incorreta. Eles estão inseridos numa sociedade de consumo onde o consumidor vale mais que o cidadão. Como você muda isso? Com política pública. Por exemplo, as pessoas da periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro gastam quantas horas para chegar ao trabalho e voltar? Duas, três horas? Num ônibus apertado ou no trem lotado. Duas horas pra ir, duas pra voltar. A que horas essa pessoa dorme, lê, se diverte, encontra os amigos? Ora, se é possível ter a oportunidade de comprar um carro e se livrar daquele negócio apertado que não obedece a horário e te maltrata, a pessoa vai comprar um carro, uma moto. Ela está tentando solucionar individualmente algo que devia ser solucionado do ponto de vista coletivo.
Uma das nossas grandes linhas de intervenção é a mobilidade, não só a circulação. Ou seja, nós precisamos ter uma política hoje de transporte coletivo humanamente responsável e de qualidade. Eu não posso gastar quatro, seis horas, isso é um processo de dilapidação de corpos no trabalho. Porque o patrão quer que ele chegue na hora e saia na hora. O que ele faz fora desse período e como faz, pouco importa. Portanto, uma política ambiental hoje importante – relacionada à favela e à periferia – precisa valorizar a dimensão humana da nossa existência, independente da raça, gênero, orientação sexual. Uma política de direitos que valorize nossa vida, a dimensão humana como dimensão ecológica, pois não somos humanos plenos se não tivermos a natureza. Nós, em essência, somos a natureza.
Como se combina isso, uma política ambiental e uma política cidadã, de direitos?
Não é dizer para as pessoas não consumirem. Qual a possibilidade de a gente fazer uma política de direitos que garanta toda uma mudança no nosso modo de vida? Há tantas tradições culinárias, medicinais nas favelas, mas absolutamente subalternizadas, subterrâneas, despidas de valor. Como se retomam outras culturas de vida? Como criar uma política de habitação que dê conta da mobilidade e que não seja essa, por exemplo, do “Minha Casa Minha Vida”? Aqui no Rio de Janeiro o programa coloca todo mundo na Zona Oeste, com um processo brutal de desmatamento dessas áreas, que eram rurais, com sítios, desprovidas de equipamentos culturais, educacionais, de transporte público. Nós estamos vendo um processo de “reperiferização” da pobreza, de distanciamento dos pobres das áreas centrais da cidade. Por outro lado, temos de observar que o discurso ambiental do poder público, de enchentes e áreas de risco, tem se prestado a políticas de remoção.
Quando caracterizamos o debate ambiental, temos de ter uma leitura muito crítica. Assim como se fala centro/periferia, favela/asfalto, os termos ambientais também são apropriados para políticas arbitrárias e autoritárias que legitimam as diferenças e desigualdades. É preciso entender que o risco de desabamento é em ponto, não em área. Se há uma pessoa em risco, uma casa em risco, é preciso atenção a ela. Inclusive fazer de tudo para que ela permaneça na própria comunidade, porque ali ela tem relações de parentesco, de amizade, de confiança. Isso é fundamental. Para a classe média a unidade básica de proteção é a família. Para o pobre, é o território.
Esta entrevista é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.