Escolas e iniciativas educacionais apontam que, para ensinar o papel do cidadão e da importância da participação política, é preciso ir além de lousas e livros. Os alunos aprendem mais quando saem das salas de aula e atuam em suas comunidades
O professor Alexandre Weingrill Araújo entra na sala do 7o ano, cumprimenta os alunos e faz um pedido estranho: “Todo mundo tira o tênis”. Depois, solicita aos jovens que leiam o país de fabricação dos calçados e constata com eles que, quase sempre, são da Ásia. Desde 2010, a cena se repete no Colégio Stance Dual, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Weingrill é professor de Social Studies (em inglês mesmo, pois a escola é bilíngue) e está prestes a começar a aula sobre a relações de trabalho. Ele fala da origem da relação servil, da escravidão desde a Grécia e Roma antigas, do surgimento dos assalariados e leis trabalhistas e chega ao fato de que até hoje há muita mão de obra em situação análoga à escravidão produzindo os nossos itens de consumo de cada dia.
Tudo isso serve também no preparo dos alunos para uma atividade: escolher dez marcas com denúncias ou suspeita de envolvimento com trabalho análogo ao de escravo, escrever de próprio punho cartas para que as empresas atentem ao assunto e pedindo explicações do porquê foram (ou estão) associadas aos casos.
Metade das empresas contatadas já enviaram respostas e disseram como fazem auditorias e como tentam combater as práticas ilegais em sua cadeia de produção. Entre as respondentes, já estiveram Apple, Lindt e Gap.
Para Weingrill, essa é uma aula especial, visto que envolve os alunos de forma ativa e
desperta a consciência sobre uma questão social. Mostrar que as marcas comuns a eles estão ligadas a problemas como o da escravidão moderna e que eles têm voz ativa diante delas desperta uma consciência sobre seus papéis enquanto cidadãos.
As escolas são locais importantes para o criar a consciência de cidadania em crianças
e jovens. São um microcosmo da sociedade e, onde podem vivenciar experiências de democracia e participação. Segundo a doutora em educação Ana Karina Brenner, é lá que “a socialização ocorre por processos e mecanismos que permitem a uma pessoa desenvolver relações sociais, adaptar-se e se integrar à vida social”.
Ana Karina escreveu sua tese de doutorado sobre a militância de universitários e os
caminhos de sua aproximação com a política. E destaca que, para quase todos os entrevistados, o envolvimento começou no Ensino Fundamental ou Médio por meio da participação em grêmios, assembleias ou pela influência de professores. Entre os jovens que relataram não haver discussões ou envolvimento político dentro da família, a escola foi ainda mais importante, por servir como porta de entrada para o engajamento.
Hoje, no Brasil, disciplinas específicas para a educação política não são obrigatórias
nas escolas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, prevê que a cidadania esteja presente de forma transversal em todas as matérias.
Nem sempre foi assim. Em 1969, durante o regime militar, uma lei tornou obrigatórias as aulas de Educação Moral e Cívica no Primário (Fundamental I) e no então Ginásio (Fundamental II); as de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) no Secundário, o hoje Ensino Médio; e as de Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) no Superior.
As disciplinas exaltavam o valor à pátria e ao civismo, mas foram contaminadas pelo
discurso do governo vigente, ufanista e não democrático. Por isso, ficaram estigmatizadas e foram eliminadas da grade curricular no começo da década de 1990.
“Quando a redemocratização chegou, foi natural o fim dessas disciplinas. Elas carregavam consigo um ‘entulho autoritário’ e ninguém mais queria saber delas”, conta o cientista social João Francisco Resende. Por isso, explica, optou-se pela nomenclatura “educação para cidadania” e por fazê-la de forma transversal no currículo, mas nem todas as escolas obedecem à medida.
Resende pontua pelo menos duas linhas de ensino de política e cidadania pelo mundo. Nos Estados Unidos, as escolas oferecem a “Educação Cívica” com o objetivo de formar politicamente os alunos com base na Constituição americana. “Há muitas críticas quanto a esse modelo, porque o foco exclusivo na Constituição é um risco para que se passe a ideia de ‘fazer político’ resumido às leis”, analisa. Enquanto isso, na Europa, fala-se em “educação para cidadania”, que é a referência para a pedagogia brasileira.
Anos depois do fim da obrigatoriedade das disciplinas específicas sobre política, já existem alguns projetos de lei que pretendem reintroduzir o tema nos currículos, por meio de matérias, como uma forma mais eficaz de formar cidadãos.
O ex-jogador de futebol e hoje deputado Romário (PSB-RJ) é o autor do Projeto de Lei nº 6.954/2013, que inclui o estudo da Constituição Federal nos ensinos Fundamental e Médio a fim de formar pessoas conscientes de seus direitos individuais e deveres sociais.
Já o Projeto de Lei do Senado nº 2/2012, do senador Sérgio Souza (PMDB-PR), pretende incluir Cidadania Moral e Ética no currículo do 1o ao 9o ano. Em 2012, a medida foi aprovada pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte da casa, mas sua tramitação encontra-se paralisada. Na época, gerou polêmica porque educadores temiam o retorno das disciplinas do período da ditadura militar, e também porque alguns especialistas não acreditavam que a medida resolveria o problema da falta de discussão do assunto nas salas de aula.
Segundo André Gravatá, líder do Movimento Entusiasmo (mais em “A educação que vira cultura“), as escolas já são fragmentadas demais com disciplinas, “desconectadas para o aluno”. “Se criamos uma aula só sobre cidadania ou Constituição, vamos deixá-la sem sentido para os estudantes – como é a Matemática quando ele não entende por que deve saber todas as funções.”
Há cinco anos, mais duas disciplinas foram reincorporadas a esse currículo escolar já extenso: Sociologia e Filosofia – que haviam sido removidas na primeira metade do período ditatorial. E algumas instituições criaram matérias denominadas como “Ação e Cidadania”, que une as duas.
Para o cientista social Rafael Araújo, coordenador da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e professor da PUC-SP, essa é uma chance para que professores também abordem a democracia, que faz parte da discussão política.
Ele ressalta, no entanto, que a lei pegou os docentes despreparados e muitos não possuem formação específica em Ciências Sociais. “Ainda há muito professor ‘protocolar’, dando informações sem considerar o mundo fora da escola e sem mostrar aos alunos a finalidade da Filosofia e da Sociologia na vida deles. Quando é assim, a aula não cumpre sua função.”
Essa foi uma das razões para que a FESPSP criasse um curso voltado para a atualização de professores. Em maio, a primeira oficina teve como temas “As relações internacionais e a Nova Ordem Mundial” e “A conjuntura política no Brasil e as Eleições de 2014”.
ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO
Criar interesse em crianças e jovens para a cidadania e política pode ser um desafio. Diante de uma geração conectada às tecnologias de informação, o modelo “professor expositor/aluno espectador” não funciona como atrativo. Por isso, os especialistas ouvidos pela reportagem defendem os processos e espaços de participação ativos, como fez o professor Weingrill.
Rafael Araújo já ensinou educação política para crianças entre 8 e 11 anos em uma disciplina nomeada “Projeto de Convivência”, para explicitar o teor dos direitos e deveres em uma sociedade. Recorrendo à imagem de uma engrenagem, mostrava como um sistema funciona de forma conjunta e dependendo de espaços e peças diferentes. Só depois explicou como aquilo se aplicava à sala de aula, que é um microcosmo, e, depois, à sociedade.
“Mostrei às crianças as vantagens de viver em comunidade e que, se a coletividade funciona, todos vivem melhor. Para tudo isso, o diálogo é imprescindível – daí o nome da disciplina ser ‘convivência’. Muita gente acha que civismo é comparecer às urnas, mas, quando ensino o valor da vida em sociedade, o ato de votar se torna importante para eles”, explica. Um dos modelos mais tradicionais de política na prática para os alunos é a formação de grêmios estudantis, assembleias e conselhos com representantes discentes. São como laboratórios políticos para que entendam os processos democráticos.
Para Resende, é importante que jovens tenham a oportunidade de vivenciar esses espaços de discussão como possibilidade de despertar o interesse pela política. E ele fala por experiência própria.
Aos 12 anos, tornou-se representante de alunos em um Conselho de Escola [1], que se reunia para tratar de mudanças necessárias e temas possíveis para as aulas. O jovem só se deu conta da relevância de seu papel quando os assuntos das reuniões foram encaminhados para o Conselho de Representantes de Conselhos de Escola (Crece). “Foi uma experiência que abriu meu horizonte sobre participação e cidadania, porque vi de perto a estrutura das discussões e os encaminhamentos. Levo o aprendizado comigo até hoje.”
[1] Em São Paulo, foi criado na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1992) no contexto de redemocratização do País. Envolve representantes de educadores, alunos e pais para levar propostas de melhorias às escolas
Há, no entanto, um certo limite para o espaço de atuação. Alguns educadores consideram grêmios uma ameaça ao poder do professor. Weingrill vivenciou isso.
Em 2011, levou a um asilo os alunos da Escola Estadual Professora Luiza Hidaka, em Suzano, município da Grande São Paulo, onde também leciona. “Na volta, os estudantes estavam tão sensibilizados e ao mesmo tempo empolgados em atuar mais próximos da comunidade que decidiram montar um grêmio para criar outras iniciativas. A coordenação jogou um balde de água fria nos alunos e foi deixando o tempo passar para que a ideia esfriasse. Até que esfriou”, conta.
Algumas escolas promovem projetos na comunidade externa a seus muros, o que funciona bem para criar vínculos de dentro para fora e vice-versa. Para André Gravatá, a principal função dos espaços de participação é desenvolver a autonomia dos alunos.
“Quando ele aprende que tem voz, potencial de mudar uma realidade, torna-se um cidadão político, porque vai desenvolver suas ideias e seus posicionamentos”, diz Gravatá. A autonomia é uma das características mais importantes quando se fala em formar um cidadão consciente de seu papel.
ATIVAR A PARTICIPAÇÃO
Há algumas escolas que trabalham fortemente com a questão da autonomia dos estudantes, como as chamadas “escolas democráticas”, que valorizam a capacidade de escolha tanto para construir o caminho curricular das aulas quanto para elaborar e repensar as diretrizes de ensino.
Uma delas é a Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, no Butantã, na Zona Sudoeste da cidade de São Paulo. Desde 2003, a direção mudou completamente seu sistema pedagógico por acreditar, assim, formar melhor os jovens cidadãos.
Ao basear-se na Escola da Ponte [2], de Portugal, eliminou a divisão de alunos por séries e as provas. Cada estudante tem uma lista de assuntos que precisa aprender por períodos determinados, mas são eles que escolhem a ordem em que farão os estudos. Outro ponto interessante é a alta participação de pais e responsáveis. Há comissões de voluntários que cuidam, por exemplo, do lanche servido no recreio.
[2] Uma das maiores referências mundiais em escola democrática, a Escola da Ponte foi criada nos anos 1970. As aulas são dadas em grandes salões, e os professores têm papel similar ao de consultores, ajudando os alunos quando solicitados
As escolas democráticas também são conhecidas por abrir suas portas e ficar lado a lado com a comunidade. Para Gravatá, isso é um dos atos mais políticos que podem ter. “Elas precisam se apropriar dos espaços onde estão. Quando abrimos seus portões, ocupamos a cidade”, diz.
“A escola tem responsabilidades com a comunidade e a comunidade com a escola. Quando um aluno se dá conta de que está inserido em um bairro e não em um lugar fechado com grades e muros, interessa-se mais por esse espaço. Isso é ser atuante”, diz Débora Moreira, coordenadora do projeto de sustentabilidade do Colégio Stance Dual.
Em 2013, a escola proporcionou aos alunos do 3º ano do Fundamental uma experiência direta com a comunidade. Além de aprender a história do bairro, a turma foi às ruas observar o que havia de bom e ruim nelas. Notaram que um parquinho de crianças estava muito mal cuidado e mandaram uma carta à subprefeitura. Meses depois, o espaço foi reformado.
Gravatá define o que, para ele, é educação: “O aluno não é um balde vazio esperando ser preenchido. E educação não é ter um balde cheio. É acender fogueiras”.