Por Amália Safatle
Na parede de uma sala da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, o relógio marcava as horas atrasado. Descompassado no tempo, parecia funcionar como peça de resistência, fazendo jus às palavras rebeldes de Martí Peran, que ali se apresentava. Este crítico de arte, curador e professor da Universidade de Barcelona esteve no Brasil em setembro, aceitando o convite do Instituto de Estudos Avançados (IEA) para discorrer sobre como a fadiga que acomete a sociedade contemporânea e hiperativa pode servir de inflexão para a nossa emancipação.
Citando intelectuais como o escritor e ensaísta Eloy Fernández Porta, Peran sustenta que, mais que nunca, estamos entregues à nossa própria sorte, conta e risco. No que chamam de capitalismo after pop, cabe apenas a nós criar nossos próprios sujeitos. Impelidos a tomar diariamente dezenas de decisões profissionais, emocionais e sociais, temos de construir nossas próprias vidas e, mais que isso, nossa identidade.
“Em termos de retórica política dos países em crise, como a Espanha, de onde eu venho, isso está na ordem do dia. Traduz-se na apologia do empreendedorismo. Constrói a si mesmo, do-it-yourself. Toma iniciativa. Invente algo. Você é o responsável. Ponha a sua vida inteira a trabalhar. Nos querem vivos”, diz. Ele propõe que a fadiga seja a dor que alerta para essa autoexploração, a fim de provocar libertação, e que algumas estruturas que oferecem amparo ao cidadão sejam recuperadas.
Em sua análise, o capitalismo pós-fordista deslocou-se da produção de bens com valor de troca para a produção de subjetividade e, hoje, a mais-valia concentra-se na autoprodução de identidade. O senhor afirma que se impôs a lógica do sujeito da autoexploração. Por que isso aconteceu? Essa mudança se deve apenas à revolução tecnológica?
Não. A revolução tecnológica apenas facilitou e acelerou esse processo. Esse processo responde sensivelmente ao capital que desde sempre tem de renovar suas matérias-primas. E chegou o momento em que a matéria-prima do capital passou a ser a subjetividade. Não há novos materiais para a construção de objetos com valor de troca a não ser os que têm como matéria-prima a subjetividade. Já alcançamos a cota máxima,
que é a utilização das nossas próprias vidas como principal força produtiva. A força produtiva agora reside no processo de fazermos a nós mesmos. Estamos constantemente obrigados a gerar projetos, processos de trabalho, encontros e intersecções, garantir que a máquina não pare.
Essa lógica do faça-você-mesmo desemboca no labirinto da hiperatividade, em um estado crônico de nervos. A tecnologia, em lugar de abrir outros horizontes, como perfeitamente poderia fazer, colocou-se a serviço dessa lógica de autoexploração. Os fenômenos de utilização das redes sociais e o incremento dessa dependência de uma conexão que construa a sua visibilidade, constantemente mediante uma selfie, não vão além de se colocar a serviço dessa tecnologia, neste novo capitalismo after pop.
Qual a diferença entre o capitalismo pós-fordista e o capitalismo after pop?
O after pop difere do pós-fordismo porque a tarefa de construir identidade já não é induzida pelo sistema, e sim transferida a você mesmo: construa você a si mesmo. Essa é a diferença. Quando o Estado de Bem-Estar entra definitivamente em crise, o modelo de como você tem de ser já não se sustenta, porque não está mais ao seu alcance.
Mas isso em um cenário europeu? Nos Estados Unidos não existe um Estado de Bem-Estar Social como na Europa, e, no Brasil, muito menos.
Nos Estados Unidos não existe a seguridade social, nem determinados serviços públicos. Mas em que consiste o Estado de Bem-Estar? Isso está definido pelo american way of life do Pós-Guerra: há que clonar, reproduzir, ter as suas aspirações. Quando esse Estado de Bem-Estar se colapsa, é quando aparece uma nova força produtiva que é “você mesmo”.
E, diante dessa constatação, qual é a proposta? O que devemos fazer, partindo do pressuposto de que não queremos retroceder ao capitalismo industrial?
Por que não? Agora mesmo estão sendo habilitadas teorias do decrescimento que, em termos ecológicos, políticos, societários, têm importantes lacunas, mas sustentam um interessante grau de credibilidade e que consistem em retroceder…
…retroceder depois de toda a evolução observada e acumulada na sociedade do conhecimento? Como isso seria possível?
Entre progresso e civilização não existe correspondência. O progresso pode ser não civilizatório, pode ser bárbaro. Pode haver um progresso que não concebe maiores doses de civilização. Portanto, quanto maior conhecimento que temos em termos históricos, acumulativos, pode ser que seja a hora de retroceder em muitos âmbitos, não necessariamente em termos de crescimento, mas em diminuição de ritmo, em revisão da globalização, recuperando a ideia de localidade, em termos de revisão de expectativas, avaliando o que é necessário e o que não é mais necessário. Retroceder, em um grau ou outro, pode ser a solução.
Devemos combater a cultura do empreendedorismo e da cultura maker?
Temos de ser conscientes do que isso comporta e representa. Ser conscientes de onde isso procede, o que alimenta isso. O que estou reclamando é apenas sermos conscientes desse mecanismo de autoexploração e, a partir disso, reagir como achar conveniente. O que pode acelerar essa tomada de consciência é a fadiga. A evidência de fadiga, se examinada minimamente, põe a descoberto essa distorção: o que supostamente é um processo de emancipação e de construção de identidade é, na verdade, um processo de autoexploração.
O senhor acredita que esse movimento da cultura maker e do empreendedorismo tenha também um lado benéfico, o de descentralizar as forças de produção e, assim, descentralizar o poder?
Não há melhor modo de garantir as estruturas de poder do que as disseminando, e não há mecanismo de disseminação dessas próprias lógicas de poder mais eficaz que mediante processos de interiorização. A autogovernação que (o filósofo Michel) Foucault descreve tão detalhadamente acabou se convertendo em autoexploração.
Não se deve, então, buscar uma cura para a fadiga contemporânea, e sim usá-la como uma forma de resistência?
O relato convencional diz que a fadiga deve ser reparada. Se está cansado, dá um break e poderá regressar à produção em condições ótimas. Aí está uma gestão terapêutica da fadiga, que consiste em saná-la para poder regressar à espiral incessante. Não digo que não tenha de ser reparada. Digo que ao menos há de ser utilizada como possibilidade de um despertar para a consciência. Se estamos fatigados, não é porque a vida estruturalmente fatigue, e sim porque convertemos a vida nesse processo de autoexploração que nos obriga a uma hiperatividade e inevitavelmente nos leva ao cansaço.
Despertar a consciência para obter exatamente o quê?
Para reconhecer essa modalidade de exploração e, se quiser se emancipar, emancipa-se, liberando-se dessa rotina do faça-você-mesmo.
Ou seja, o objetivo desse despertar é a busca da verdadeira liberdade, em vez daquela liberdade que acreditamos ter, mas que é ilusória?
Se a lógica de exploração implica essa construção de auto identidade, para libertar-se, será preciso escapar de si mesmo. Este é o paradoxo em que nos encontramos.
Como isso se traduz na prática? Com um Estado mais presente, por exemplo? Com alguma política de segurança maior no trabalho?
Essa é uma resposta possível. Tony Judt, historiador britânico que faleceu recentemente (em 2010), recorda que a primeira geração que se rebelou contra as estruturas de Bem-Estar do Estado no Pós-Guerra, em maio de 1968, era a primeira geração que não tinha memória do mundo da pré-guerra e que, portanto, entendia que a liberdade passava por exigir menos intervencionismo do Estado. Isso é exatamente a mesma literatura, a mesma retórica de que se utilizou o liberalismo dos anos 1980, (Ronald) Reagan, (Margaret) Thatcher, quando pediam, em benefício de uma suposta maior liberdade pessoal, uma desestatização de muitos comportamentos derivados da sociedade de Bem-Estar. Portanto, não descarto que, em termos pragmáticos, uma das respostas implique recuperar uma estrutura de Estado com alguma solidez que nos libere de determinadas tarefas. Foi proclamado – por estudiosos do thatcherismo e do reaganismo, como (o sociólogo britânico) Anthony Giddens – o fim da política, a pós-política. A política é a gestão do próprio mundo. A pós-política é quando não resta mais nada a gerir, então gere a si mesmo. É o desaparecimento da política. Uma das possíveis respostas a essa situação talvez seja recuperar a política nesses termos: recuperar estruturas de Estado.
Em sua apresentação, o senhor falou em destituição, em resistir às instituições. Não há uma contradição aí?
Não, não há contradição. Apelar para que haja uma estrutura de Estado que procede do comum para abrigar os interesses do comum, isso é legítimo. As estruturas de Estado existem de forma secular, mas, nessa história secular, se perverteram, não funcionam como devem funcionar – mas isso não impede que eu possa defender a necessidade de que existam. A questão é que devem ser refundadas.
O senhor afirmou que vivemos uma “pobreza de experiência”, pois o indivíduo tem muitas experiências, mas quase todas são banais. A solução estaria em reduzir a hiperatividade e concentrar apenas no que é realmente valioso?
Desde a modernidade, a natureza humana tem se identificado com um Homo faber, em que se coloca como construtor de seu próprio destino, construído em liberdade (mais em Entrevista). Portanto não necessariamente se trata de parar a hiperatividade, em termos literais, mas ao menos corrigir a hiperatividade que só conduz a essa pobreza de experiência. Cada um sabe que situação, que experiência, que circunstância, que acontecimento para ele têm sentido. O sentido não está no movimento em si mesmo.
O que o senhor chama de experiência real?
Experiência de sentido, que dá noções, ferramentas, dados para pensar o valor da política, da ética, da estética. Já a banal é a que não aporta valor.
O senhor afirma que o presente tomou o espaço do futuro. Como isso afeta a noção de sustentabilidade que sobretudo é uma noção de futuro? Ao mesmo tempo em que se vive sob a cultura do efêmero, a sustentabilidade ganha espaço. Como isso se explica?
Explica-se porque o presente não é sustentável, a sustentabilidade é uma necessidade, é uma expectativa, é abrir um território de possibilidades. A sustentabilidade não é uma mudança de modelo, e sim dar oportunidade para que possa haver outros modelos que substituam o atual e que possam ser modelos plurais.
[:en]
Na parede de uma sala da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, o relógio marcava as horas atrasado. Descompassado no tempo, parecia funcionar como peça de resistência, fazendo jus às palavras rebeldes de Martí Peran, que ali se apresentava. Este crítico de arte, curador e professor da Universidade de Barcelona esteve no Brasil em setembro, aceitando o convite do Instituto de Estudos Avançados (IEA) para discorrer sobre como a fadiga que acomete a sociedade contemporânea e hiperativa pode servir de inflexão para a nossa emancipação.
Citando intelectuais como o escritor e ensaísta Eloy Fernández Porta, Peran sustenta que, mais que nunca, estamos entregues à nossa própria sorte, conta e risco. No que chamam de capitalismo after pop, cabe apenas a nós criar nossos próprios sujeitos. Impelidos a tomar diariamente dezenas de decisões profissionais, emocionais e sociais, temos de construir nossas próprias vidas e, mais que isso, nossa identidade.
“Em termos de retórica política dos países em crise, como a Espanha, de onde eu venho, isso está na ordem do dia. Traduz-se na apologia do empreendedorismo. Constrói a si mesmo, do-it-yourself. Toma iniciativa. Invente algo. Você é o responsável. Ponha a sua vida inteira a trabalhar. Nos querem vivos”, diz. Ele propõe que a fadiga seja a dor que alerta para essa autoexploração, a fim de provocar libertação, e que algumas estruturas que oferecem amparo ao cidadão sejam recuperadas.
Em sua análise, o capitalismo pós-fordista deslocou-se da produção de bens com valor de troca para a produção de subjetividade e, hoje, a mais-valia concentra-se na autoprodução de identidade. O senhor afirma que se impôs a lógica do sujeito da autoexploração. Por que isso aconteceu? Essa mudança se deve apenas à revolução tecnológica?
Não. A revolução tecnológica apenas facilitou e acelerou esse processo. Esse processo responde sensivelmente ao capital que desde sempre tem de renovar suas matérias-primas. E chegou o momento em que a matéria-prima do capital passou a ser a subjetividade. Não há novos materiais para a construção de objetos com valor de troca a não ser os que têm como matéria-prima a subjetividade. Já alcançamos a cota máxima,
que é a utilização das nossas próprias vidas como principal força produtiva. A força produtiva agora reside no processo de fazermos a nós mesmos. Estamos constantemente obrigados a gerar projetos, processos de trabalho, encontros e intersecções, garantir que a máquina não pare.
Essa lógica do faça-você-mesmo desemboca no labirinto da hiperatividade, em um estado crônico de nervos. A tecnologia, em lugar de abrir outros horizontes, como perfeitamente poderia fazer, colocou-se a serviço dessa lógica de autoexploração. Os fenômenos de utilização das redes sociais e o incremento dessa dependência de uma conexão que construa a sua visibilidade, constantemente mediante uma selfie, não vão além de se colocar a serviço dessa tecnologia, neste novo capitalismo after pop.
Qual a diferença entre o capitalismo pós-fordista e o capitalismo after pop?
O after pop difere do pós-fordismo porque a tarefa de construir identidade já não é induzida pelo sistema, e sim transferida a você mesmo: construa você a si mesmo. Essa é a diferença. Quando o Estado de Bem-Estar entra definitivamente em crise, o modelo de como você tem de ser já não se sustenta, porque não está mais ao seu alcance.
Mas isso em um cenário europeu? Nos Estados Unidos não existe um Estado de Bem-Estar Social como na Europa, e, no Brasil, muito menos.
Nos Estados Unidos não existe a seguridade social, nem determinados serviços públicos. Mas em que consiste o Estado de Bem-Estar? Isso está definido pelo american way of life do Pós-Guerra: há que clonar, reproduzir, ter as suas aspirações. Quando esse Estado de Bem-Estar se colapsa, é quando aparece uma nova força produtiva que é “você mesmo”.
E, diante dessa constatação, qual é a proposta? O que devemos fazer, partindo do pressuposto de que não queremos retroceder ao capitalismo industrial?
Por que não? Agora mesmo estão sendo habilitadas teorias do decrescimento que, em termos ecológicos, políticos, societários, têm importantes lacunas, mas sustentam um interessante grau de credibilidade e que consistem em retroceder…
…retroceder depois de toda a evolução observada e acumulada na sociedade do conhecimento? Como isso seria possível?
Entre progresso e civilização não existe correspondência. O progresso pode ser não civilizatório, pode ser bárbaro. Pode haver um progresso que não concebe maiores doses de civilização. Portanto, quanto maior conhecimento que temos em termos históricos, acumulativos, pode ser que seja a hora de retroceder em muitos âmbitos, não necessariamente em termos de crescimento, mas em diminuição de ritmo, em revisão da globalização, recuperando a ideia de localidade, em termos de revisão de expectativas, avaliando o que é necessário e o que não é mais necessário. Retroceder, em um grau ou outro, pode ser a solução.
Devemos combater a cultura do empreendedorismo e da cultura maker?
Temos de ser conscientes do que isso comporta e representa. Ser conscientes de onde isso procede, o que alimenta isso. O que estou reclamando é apenas sermos conscientes desse mecanismo de autoexploração e, a partir disso, reagir como achar conveniente. O que pode acelerar essa tomada de consciência é a fadiga. A evidência de fadiga, se examinada minimamente, põe a descoberto essa distorção: o que supostamente é um processo de emancipação e de construção de identidade é, na verdade, um processo de autoexploração.
O senhor acredita que esse movimento da cultura maker e do empreendedorismo tenha também um lado benéfico, o de descentralizar as forças de produção e, assim, descentralizar o poder?
Não há melhor modo de garantir as estruturas de poder do que as disseminando, e não há mecanismo de disseminação dessas próprias lógicas de poder mais eficaz que mediante processos de interiorização. A autogovernação que (o filósofo Michel) Foucault descreve tão detalhadamente acabou se convertendo em autoexploração.
Não se deve, então, buscar uma cura para a fadiga contemporânea, e sim usá-la como uma forma de resistência?
O relato convencional diz que a fadiga deve ser reparada. Se está cansado, dá um break e poderá regressar à produção em condições ótimas. Aí está uma gestão terapêutica da fadiga, que consiste em saná-la para poder regressar à espiral incessante. Não digo que não tenha de ser reparada. Digo que ao menos há de ser utilizada como possibilidade de um despertar para a consciência. Se estamos fatigados, não é porque a vida estruturalmente fatigue, e sim porque convertemos a vida nesse processo de autoexploração que nos obriga a uma hiperatividade e inevitavelmente nos leva ao cansaço.
Despertar a consciência para obter exatamente o quê?
Para reconhecer essa modalidade de exploração e, se quiser se emancipar, emancipa-se, liberando-se dessa rotina do faça-você-mesmo.
Ou seja, o objetivo desse despertar é a busca da verdadeira liberdade, em vez daquela liberdade que acreditamos ter, mas que é ilusória?
Se a lógica de exploração implica essa construção de auto identidade, para libertar-se, será preciso escapar de si mesmo. Este é o paradoxo em que nos encontramos.
Como isso se traduz na prática? Com um Estado mais presente, por exemplo? Com alguma política de segurança maior no trabalho?
Essa é uma resposta possível. Tony Judt, historiador britânico que faleceu recentemente (em 2010), recorda que a primeira geração que se rebelou contra as estruturas de Bem-Estar do Estado no Pós-Guerra, em maio de 1968, era a primeira geração que não tinha memória do mundo da pré-guerra e que, portanto, entendia que a liberdade passava por exigir menos intervencionismo do Estado. Isso é exatamente a mesma literatura, a mesma retórica de que se utilizou o liberalismo dos anos 1980, (Ronald) Reagan, (Margaret) Thatcher, quando pediam, em benefício de uma suposta maior liberdade pessoal, uma desestatização de muitos comportamentos derivados da sociedade de Bem-Estar. Portanto, não descarto que, em termos pragmáticos, uma das respostas implique recuperar uma estrutura de Estado com alguma solidez que nos libere de determinadas tarefas. Foi proclamado – por estudiosos do thatcherismo e do reaganismo, como (o sociólogo britânico) Anthony Giddens – o fim da política, a pós-política. A política é a gestão do próprio mundo. A pós-política é quando não resta mais nada a gerir, então gere a si mesmo. É o desaparecimento da política. Uma das possíveis respostas a essa situação talvez seja recuperar a política nesses termos: recuperar estruturas de Estado.
Em sua apresentação, o senhor falou em destituição, em resistir às instituições. Não há uma contradição aí?
Não, não há contradição. Apelar para que haja uma estrutura de Estado que procede do comum para abrigar os interesses do comum, isso é legítimo. As estruturas de Estado existem de forma secular, mas, nessa história secular, se perverteram, não funcionam como devem funcionar – mas isso não impede que eu possa defender a necessidade de que existam. A questão é que devem ser refundadas.
O senhor afirmou que vivemos uma “pobreza de experiência”, pois o indivíduo tem muitas experiências, mas quase todas são banais. A solução estaria em reduzir a hiperatividade e concentrar apenas no que é realmente valioso?
Desde a modernidade, a natureza humana tem se identificado com um Homo faber, em que se coloca como construtor de seu próprio destino, construído em liberdade (mais em Entrevista). Portanto não necessariamente se trata de parar a hiperatividade, em termos literais, mas ao menos corrigir a hiperatividade que só conduz a essa pobreza de experiência. Cada um sabe que situação, que experiência, que circunstância, que acontecimento para ele têm sentido. O sentido não está no movimento em si mesmo.
O que o senhor chama de experiência real?
Experiência de sentido, que dá noções, ferramentas, dados para pensar o valor da política, da ética, da estética. Já a banal é a que não aporta valor.
O senhor afirma que o presente tomou o espaço do futuro. Como isso afeta a noção de sustentabilidade que sobretudo é uma noção de futuro? Ao mesmo tempo em que se vive sob a cultura do efêmero, a sustentabilidade ganha espaço. Como isso se explica?
Explica-se porque o presente não é sustentável, a sustentabilidade é uma necessidade, é uma expectativa, é abrir um território de possibilidades. A sustentabilidade não é uma mudança de modelo, e sim dar oportunidade para que possa haver outros modelos que substituam o atual e que possam ser modelos plurais.