Por Amália Safatle
“A minha esperança é de que, esgotado o capital natural, comecemos a ‘explorar’ o capital espiritual: nossa capacidade de conviver com respeito, em sintonia com os ritmos da natureza”, afirma o teólogo Leonardo Boff nesta entrevista concedida a PÁGINA22 por e-mail. Segundo ele, esse seria o legado maior da crise que estamos sofrendo. Boff evoca a necessidade de cultivar a razão sensível para conseguirmos enfrentar a crise civilizatória que ameaça a vida na Terra.
A sociedade ocidental chegou ao ponto em que as coisas mais valiosas e prazerosas da vida têm ficado escassas – ar puro, banho de rio em água limpa, gentileza, comer fruta no pé, tempo para cultivar as amizades verdadeiras, amizades verdadeiras. Em sua opinião, por que nos afastamos das nossas aspirações mais essenciais e intangíveis? Teria sido porque, em algum momento da História, deixamos de reconhecer o valor dessas coisas?
As origens de nosso alheamento dos bens naturais, no meu modo de ver, começaram há mais de 2 milhões de anos, quando no processo da evolução surgiu o Homo faber. É o primeiro a usar um instrumento rudimentar para dominar a natureza. Até aí, havia um equilíbrio entre ser humano e natureza. Depois começa um processo de intervenção que culminou na dominação. A grande revolução intelectual ocorre com os mestres fundadores do paradigma moderno no século XVII – René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, entre outros. Com os modernos, a Terra passa a ser vista como algo meramente material – res extensa –, destituída de espírito e de propósito, destinada à manipulação humana. O ser humano se faz maître et possesseur (senhor e proprietário) de tudo (Descartes). Aqui nasce a objetivação de todas as coisas, submetidas à investigação humana traduzida em linguagem matemática. Surge um radical antropocentrismo: as coisas somente possuem valor à medida que se destinam a algum uso humano. Elas não possuem um valor intrínseco. Por isso não precisam ser respeitadas nem são sujeitas de direitos. O ser humano agora está sobre as coisas, dominando-as, e não mais com as coisas, convivendo.
Esse processo se radicaliza com a civilização industrial, que explorou até o limite os bens e serviços da natureza. Lentamente, como foi denunciado ainda em 1944 pelo economista húngaro-americano Karl Polanyi (1886-1964), a sociedade com mercado se transformou em sociedade só de mercado. Ele chamou esse processo de a Grande Transformação. Cabe recordar as palavras proféticas de Karl Marx em 1847, em Miséria da Filosofia: “Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia vender-se… virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc. – em que tudo passou para o comércio. O tempo da corrupção geral e da venalidade universal”.
Martin Heidegger considera nossa situação tão degradada que disse em entrevista publicada após a sua a morte em 1967: “Nur noch ein Gott kann uns retten” (somente um Deus nos poderá salvar). Quer dizer, destruímos a naturalidade das coisas. Avançamos tanto nesse percurso que estamos destruindo as bases físico-químicas que sustentam a vida: a Terra precisa de um ano e meio para repor que consumimos em um ano. O resultado final, já previsto por (Sigmund) Freud em 1933, é “o mal-estar na civilização”. Sentimo-nos saturados de bens materiais, mas desligados dos ritmos da natureza, desenraizados e solitários. Se não houver um salto rumo a um novo paradigma de convivência, respeito e cuidado com tudo o que existe e vive, vamos ao encontro da escuridão, nas palavras de Eric Hobsbawm (historiador marxista do século XX, morto em outubro de 2012), em A Era dos Extremos – O breve século XX: 1914-1991.
A ciência foi duramente criticada pelo filósofo André Gorz, no livro O Imaterial, por ter se tornado racional e calculista ao abolir a natureza, substituindo-a por tecnologias pré-programadas e autorreguladas. Assim, segundo ele, a ciência se tornou cúmplice do “projeto do capital de substituir as riquezas primordiais, que a natureza oferece gratuitamente e que são acessíveis a todos, por riquezas artificiais”. Exemplos são o mercado de esperma, de úteros, de genes. O próximo passo seria a “mercantilização” de seres humanos “geneticamente melhorados, póshumanos, clonados ou artificiais e de nichos ecológicos artificiais”. O senhor concorda com essa visão?
Creio que essa trajetória é coerente com as opções que nossa civilização já tomou no século XVII: a dominação da Terra e de todos os seus bens e serviços. O problema reside no fato de que ficou claro para a ciência que a Terra é um ente vivo, chamado Gaia, que não resistirá a este tipo de manipulação. A Terra não precisa de nós. Pode bem ser que ela não nos queira mais sobre sua face e nos elimine como eliminamos uma célula cancerígena. Essa possibilidade pode provir dos próprios seres humanos que criaram uma máquina de morte com armas químicas, biológicas e nucleares que podem destruir toda vida por 25 formas diferentes. E ainda temos a arma ecológica: a degradação das bases de sustentação dos bens naturais. A minha esperança é a de que, esgotado o capital natural, comecemos a “explorar” o capital espiritual: nossa capacidade de conviver com respeito, em sintonia com os ritmos da natureza, sendo mais com menos e dentro de uma sobriedade compartida para que toda a comunidade de vida e nós, seres humanos, possamos continuar a nossa trajetória neste planeta. Esse seria o legado maior da crise que estamos sofrendo.
A ambição humana é que teria levado a essa apropriação do intangível, por meio de ferramentas capitalistas, provocando uma distorção de valores ao valorizar o que é supérfluo e desvalorizar o que é essencial?
Tudo tem de ser pensado sistemicamente. Tais processos de radicalização no uso das energias e bens naturais obedecem à lógica antropocêntrica que provocou a nossa ruptura com a natureza. Perdemos o sentimento de pertença com o todo. Precisamos introduzir uma nova mente (nova visão do mundo) e um novo coração (reanimar a razão sensível e cordial para equilibrar a razão intelectual enlouquecida). Se não conseguirmos essa aliança entre a cabeça e o coração, não teremos motivações para amar e cuidar da natureza, de cada ser que conosco convive. No dia em que o ser humano aprender a respeitar cada mínimo ser, seja vivo, seja inerte, não precisará que ninguém lhe ensine a respeitar o outro ser humano e seus direitos. A ética do respeito, do cuidado e da responsabilidade coletiva nos poderá salvar. O verdadeiro Gênesis, dizia Ernst Bloch (filósofo marxista do século XX), não está no começo, mas no fim.
Quando o senhor afirma que é preciso introduzir uma nova mente e um novo coração, a pergunta é: Como? E em que velocidade? Pois a evolução civilizatória parece lenta em comparação à urgência ambiental. Como promover tamanha transformação de forma célere?
A razão sensível é inerente ao ser humano. Está ligada à emergência do cérebro límbico que surgiu há cerca de 210 milhões de anos quando apareceram os mamíferos. Com esse tipo de cérebro irrompeu o que não havia ainda no Universo conhecido: o amor, o cuidado, o afeto e a sensibilidade protetora para com a cria. A nossa dimensão mais profunda é feita de afeto, sensibilidade e cuidado. A razão surgiu bem mais tarde com o neocórtex, perto de 5 milhões a 7 milhões de anos atrás. Portanto, há um descompasso enorme entre um tipo de razão, a cordial, e a intelectual. Ocorre que a modernidade inflacionou a razão intelectual.
Chegamos quase à ditadura da razão, como se fosse a única instância a dar conta da condição humana. Mais: a sensibilidade foi recalcada, pois atrapalharia o olhar frio da razão. Hoje sabemos que todo saber está impregnado de afeto e por detrás de todo saber há interesses – basta lembrar o clássico de Jürgen Habermas, Conhecimento e Interesse – e o que a física quântica trouxe ao afirmar que tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e em todos os pontos em que o sujeito entra na determinação do objeto. Não precisamos inventar nada. Basta fazer um exercício socrático, desentranhar a razão sensível e torná-la um valor civilizatório consciente. Se repararmos bem, somos feitos de paixões, emoções, simpatias e antipatias. Os psicanalistas nos convenceram empiricamente dessa realidade.
Essa razão cordial deve ser evocada na escola, nas relações humanas, nas políticas públicas, em cada palavra e gesto das pessoas. (Blaise) Pascal dizia bem nos Pensées: “É o coração que sente Deus e não a razão”. Isso se aplica em todos os campos. Somos humanos na medida em que sentirmos o pulsar do coração do outro, da natureza, da Terra e do Infinito. Hoje o maior crime reside em não nos comovermos com nada, nem com os milhões de famintos, com a devastação do planeta, com guerras de alta destruição. Como disse o papa Francisco, ficamos cínicos, insensíveis e incapazes de chorar diante da desgraça alheia. Essa situação é própria de tempos de barbárie e de desumanização generalizada. Temos de reinventar o ser humano para que aprenda a conviver no planeta com todos os seres que com ele formam a comunidade de vida. Caso contrário selaremos tragicamente nosso destino.
No tempo antigo, a visão integrada do mundo era representada por um Deus uno, que a ciência iluminista, cartesiana e analítica veio combater e assim poder florescer. Existiria hoje um desejo de resgate e uma revalorização da visão holística, integrada, que não necessariamente é religiosa, mas sim entendida como condição fundamental para enfrentar os problemas ambientais globais, com bem-estar e justiça social?
Por todas as partes se nota um cansaço em relação ao consumo e à acumulação de bens materiais. Emerge uma espiritualidade, não como expressão de uma religião, mas como um dado antropológico de base. Temos, além da exterioridade corporal, a interioridade psíquica e também a profundidade, aquela dimensão de nosso profundo de onde emergem as questões radicais: Quem somos? Para onde vamos? Que podemos esperar depois de nossa morte? Quem se esconde atrás do curso das estrelas? Quem sustenta a totalidade do universo? Ao responder a essas questões que estão sempre na agenda de cada ser humano irrompe a dimensão espiritual.
A moderna neurociência identificou o “ponto Deus” no cérebro. Sempre que se abordam temas que têm a ver com a totalidade, com o sentido da vida e com os sagrado, no lobo frontal, há uma excitação anormal e poderosa dos neurônios. É uma espécie de órgão interno pelo qual captamos aquela Realidade frontal que tudo liga e religa e que dá sentido à totalidade. Ela foi chamada por mil nomes: Tao, Shiva, Javé, Alá, Olorum, Deus. Não importam os nomes. Importa que o ser humano possui uma vantagem evolutiva que lhe abre uma janela para o infinito e para uma energia poderosa e amorosa que o cerca por todos os lados, com a qual pode dialogar, entrar em comunhão e se unir a ela. Ocorre que nossa cultura materialista cobriu este “ponto Deus” com camadas poderosas de indiferença. Mas, ao serem removidas, nos humanizamos mais e mais. E aí descobrimos que somos um projeto infinito, sempre buscando o objeto adequado ao nosso impulso infinito. Quando o encontramos, repousamos e ficamos em paz. A religação com todas as coisas se refaz e nos sentimos realmente parte de um Todo maior.
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“A minha esperança é de que, esgotado o capital natural, comecemos a ‘explorar’ o capital espiritual: nossa capacidade de conviver com respeito, em sintonia com os ritmos da natureza”, afirma o teólogo Leonardo Boff nesta entrevista concedida a PÁGINA22 por e-mail. Segundo ele, esse seria o legado maior da crise que estamos sofrendo. Boff evoca a necessidade de cultivar a razão sensível para conseguirmos enfrentar a crise civilizatória que ameaça a vida na Terra.
A sociedade ocidental chegou ao ponto em que as coisas mais valiosas e prazerosas da vida têm ficado escassas – ar puro, banho de rio em água limpa, gentileza, comer fruta no pé, tempo para cultivar as amizades verdadeiras, amizades verdadeiras. Em sua opinião, por que nos afastamos das nossas aspirações mais essenciais e intangíveis? Teria sido porque, em algum momento da História, deixamos de reconhecer o valor dessas coisas?
As origens de nosso alheamento dos bens naturais, no meu modo de ver, começaram há mais de 2 milhões de anos, quando no processo da evolução surgiu o Homo faber. É o primeiro a usar um instrumento rudimentar para dominar a natureza. Até aí, havia um equilíbrio entre ser humano e natureza. Depois começa um processo de intervenção que culminou na dominação. A grande revolução intelectual ocorre com os mestres fundadores do paradigma moderno no século XVII – René Descartes, Galileu Galilei e Francis Bacon, entre outros. Com os modernos, a Terra passa a ser vista como algo meramente material – res extensa –, destituída de espírito e de propósito, destinada à manipulação humana. O ser humano se faz maître et possesseur (senhor e proprietário) de tudo (Descartes). Aqui nasce a objetivação de todas as coisas, submetidas à investigação humana traduzida em linguagem matemática. Surge um radical antropocentrismo: as coisas somente possuem valor à medida que se destinam a algum uso humano. Elas não possuem um valor intrínseco. Por isso não precisam ser respeitadas nem são sujeitas de direitos. O ser humano agora está sobre as coisas, dominando-as, e não mais com as coisas, convivendo.
Esse processo se radicaliza com a civilização industrial, que explorou até o limite os bens e serviços da natureza. Lentamente, como foi denunciado ainda em 1944 pelo economista húngaro-americano Karl Polanyi (1886-1964), a sociedade com mercado se transformou em sociedade só de mercado. Ele chamou esse processo de a Grande Transformação. Cabe recordar as palavras proféticas de Karl Marx em 1847, em Miséria da Filosofia: “Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia vender-se… virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc. – em que tudo passou para o comércio. O tempo da corrupção geral e da venalidade universal”.
Martin Heidegger considera nossa situação tão degradada que disse em entrevista publicada após a sua a morte em 1967: “Nur noch ein Gott kann uns retten” (somente um Deus nos poderá salvar). Quer dizer, destruímos a naturalidade das coisas. Avançamos tanto nesse percurso que estamos destruindo as bases físico-químicas que sustentam a vida: a Terra precisa de um ano e meio para repor que consumimos em um ano. O resultado final, já previsto por (Sigmund) Freud em 1933, é “o mal-estar na civilização”. Sentimo-nos saturados de bens materiais, mas desligados dos ritmos da natureza, desenraizados e solitários. Se não houver um salto rumo a um novo paradigma de convivência, respeito e cuidado com tudo o que existe e vive, vamos ao encontro da escuridão, nas palavras de Eric Hobsbawm (historiador marxista do século XX, morto em outubro de 2012), em A Era dos Extremos – O breve século XX: 1914-1991.
A ciência foi duramente criticada pelo filósofo André Gorz, no livro O Imaterial, por ter se tornado racional e calculista ao abolir a natureza, substituindo-a por tecnologias pré-programadas e autorreguladas. Assim, segundo ele, a ciência se tornou cúmplice do “projeto do capital de substituir as riquezas primordiais, que a natureza oferece gratuitamente e que são acessíveis a todos, por riquezas artificiais”. Exemplos são o mercado de esperma, de úteros, de genes. O próximo passo seria a “mercantilização” de seres humanos “geneticamente melhorados, póshumanos, clonados ou artificiais e de nichos ecológicos artificiais”. O senhor concorda com essa visão?
Creio que essa trajetória é coerente com as opções que nossa civilização já tomou no século XVII: a dominação da Terra e de todos os seus bens e serviços. O problema reside no fato de que ficou claro para a ciência que a Terra é um ente vivo, chamado Gaia, que não resistirá a este tipo de manipulação. A Terra não precisa de nós. Pode bem ser que ela não nos queira mais sobre sua face e nos elimine como eliminamos uma célula cancerígena. Essa possibilidade pode provir dos próprios seres humanos que criaram uma máquina de morte com armas químicas, biológicas e nucleares que podem destruir toda vida por 25 formas diferentes. E ainda temos a arma ecológica: a degradação das bases de sustentação dos bens naturais. A minha esperança é a de que, esgotado o capital natural, comecemos a “explorar” o capital espiritual: nossa capacidade de conviver com respeito, em sintonia com os ritmos da natureza, sendo mais com menos e dentro de uma sobriedade compartida para que toda a comunidade de vida e nós, seres humanos, possamos continuar a nossa trajetória neste planeta. Esse seria o legado maior da crise que estamos sofrendo.
A ambição humana é que teria levado a essa apropriação do intangível, por meio de ferramentas capitalistas, provocando uma distorção de valores ao valorizar o que é supérfluo e desvalorizar o que é essencial?
Tudo tem de ser pensado sistemicamente. Tais processos de radicalização no uso das energias e bens naturais obedecem à lógica antropocêntrica que provocou a nossa ruptura com a natureza. Perdemos o sentimento de pertença com o todo. Precisamos introduzir uma nova mente (nova visão do mundo) e um novo coração (reanimar a razão sensível e cordial para equilibrar a razão intelectual enlouquecida). Se não conseguirmos essa aliança entre a cabeça e o coração, não teremos motivações para amar e cuidar da natureza, de cada ser que conosco convive. No dia em que o ser humano aprender a respeitar cada mínimo ser, seja vivo, seja inerte, não precisará que ninguém lhe ensine a respeitar o outro ser humano e seus direitos. A ética do respeito, do cuidado e da responsabilidade coletiva nos poderá salvar. O verdadeiro Gênesis, dizia Ernst Bloch (filósofo marxista do século XX), não está no começo, mas no fim.
Quando o senhor afirma que é preciso introduzir uma nova mente e um novo coração, a pergunta é: Como? E em que velocidade? Pois a evolução civilizatória parece lenta em comparação à urgência ambiental. Como promover tamanha transformação de forma célere?
A razão sensível é inerente ao ser humano. Está ligada à emergência do cérebro límbico que surgiu há cerca de 210 milhões de anos quando apareceram os mamíferos. Com esse tipo de cérebro irrompeu o que não havia ainda no Universo conhecido: o amor, o cuidado, o afeto e a sensibilidade protetora para com a cria. A nossa dimensão mais profunda é feita de afeto, sensibilidade e cuidado. A razão surgiu bem mais tarde com o neocórtex, perto de 5 milhões a 7 milhões de anos atrás. Portanto, há um descompasso enorme entre um tipo de razão, a cordial, e a intelectual. Ocorre que a modernidade inflacionou a razão intelectual.
Chegamos quase à ditadura da razão, como se fosse a única instância a dar conta da condição humana. Mais: a sensibilidade foi recalcada, pois atrapalharia o olhar frio da razão. Hoje sabemos que todo saber está impregnado de afeto e por detrás de todo saber há interesses – basta lembrar o clássico de Jürgen Habermas, Conhecimento e Interesse – e o que a física quântica trouxe ao afirmar que tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e em todos os pontos em que o sujeito entra na determinação do objeto. Não precisamos inventar nada. Basta fazer um exercício socrático, desentranhar a razão sensível e torná-la um valor civilizatório consciente. Se repararmos bem, somos feitos de paixões, emoções, simpatias e antipatias. Os psicanalistas nos convenceram empiricamente dessa realidade.
Essa razão cordial deve ser evocada na escola, nas relações humanas, nas políticas públicas, em cada palavra e gesto das pessoas. (Blaise) Pascal dizia bem nos Pensées: “É o coração que sente Deus e não a razão”. Isso se aplica em todos os campos. Somos humanos na medida em que sentirmos o pulsar do coração do outro, da natureza, da Terra e do Infinito. Hoje o maior crime reside em não nos comovermos com nada, nem com os milhões de famintos, com a devastação do planeta, com guerras de alta destruição. Como disse o papa Francisco, ficamos cínicos, insensíveis e incapazes de chorar diante da desgraça alheia. Essa situação é própria de tempos de barbárie e de desumanização generalizada. Temos de reinventar o ser humano para que aprenda a conviver no planeta com todos os seres que com ele formam a comunidade de vida. Caso contrário selaremos tragicamente nosso destino.
No tempo antigo, a visão integrada do mundo era representada por um Deus uno, que a ciência iluminista, cartesiana e analítica veio combater e assim poder florescer. Existiria hoje um desejo de resgate e uma revalorização da visão holística, integrada, que não necessariamente é religiosa, mas sim entendida como condição fundamental para enfrentar os problemas ambientais globais, com bem-estar e justiça social?
Por todas as partes se nota um cansaço em relação ao consumo e à acumulação de bens materiais. Emerge uma espiritualidade, não como expressão de uma religião, mas como um dado antropológico de base. Temos, além da exterioridade corporal, a interioridade psíquica e também a profundidade, aquela dimensão de nosso profundo de onde emergem as questões radicais: Quem somos? Para onde vamos? Que podemos esperar depois de nossa morte? Quem se esconde atrás do curso das estrelas? Quem sustenta a totalidade do universo? Ao responder a essas questões que estão sempre na agenda de cada ser humano irrompe a dimensão espiritual.
A moderna neurociência identificou o “ponto Deus” no cérebro. Sempre que se abordam temas que têm a ver com a totalidade, com o sentido da vida e com os sagrado, no lobo frontal, há uma excitação anormal e poderosa dos neurônios. É uma espécie de órgão interno pelo qual captamos aquela Realidade frontal que tudo liga e religa e que dá sentido à totalidade. Ela foi chamada por mil nomes: Tao, Shiva, Javé, Alá, Olorum, Deus. Não importam os nomes. Importa que o ser humano possui uma vantagem evolutiva que lhe abre uma janela para o infinito e para uma energia poderosa e amorosa que o cerca por todos os lados, com a qual pode dialogar, entrar em comunhão e se unir a ela. Ocorre que nossa cultura materialista cobriu este “ponto Deus” com camadas poderosas de indiferença. Mas, ao serem removidas, nos humanizamos mais e mais. E aí descobrimos que somos um projeto infinito, sempre buscando o objeto adequado ao nosso impulso infinito. Quando o encontramos, repousamos e ficamos em paz. A religação com todas as coisas se refaz e nos sentimos realmente parte de um Todo maior.