A redistribuição de renda na América Latina se dá em bases frágeis, ao estimular um modelo econômico de extração de recursos finitos com imensos custos ambientais e humanos
A expressão que dá título a este artigo é usada por Naomi Klein em seu recente e indispensável livro [1]. Tomada de empréstimo a pesquisadores latino-americanos [2], ela contém o maior paradoxo vivido pelo continente e, particularmente, por sua esquerda. Por um lado, a América Latina, nos últimos dez anos, passou por um processo impressionante não apenas de redução da pobreza, mas também de desconcentração da renda. A permanência no poder dos blocos governistas da Venezuela, da Argentina, da Bolívia, do Equador e do Brasil apoia-se, em grande parte, nessas conquistas, como ficou claro na reeleição de Dilma Rousseff.
[1] This Changes Everything. Capitalism vs. Climate. New York. Simon&Schuster.
[2] Ver, entre outros, Eduardo Gudynas
As bases desse processo redistributivo não poderiam, entretanto, ser mais frágeis. Cada um desses governos estimula um modelo econômico de extração de recursos finitos com imensos custos ambientais e humanos.
O equatoriano rasgou sua Constituição e desencadeou perseguição a jornalistas que denunciaram a transformação da reserva de biosfera de Yasuni em campo aberto para exploração de petróleo. A Bolívia aprofundou sua dependência com relação ao gás e, mais que isso, violentou a integridade dos territórios de populações indígenas, onde construtoras brasileiras se empenham em fazer rodovias e gigantescas hidrelétricas. A Argentina está na fronteira das formas não convencionais de exploração de fósseis (com suas imensas reservas de shale gas), da mesma forma que o Brasil com o pré-sal (mais sobre o pré-sal em “Mão e Contramão”, edição 90).
Cada um desses países vai-se tornando cada vez mais dependente da exploração de recursos materiais, energéticos e bióticos com baixo valor agregado e alto impacto sobre sistemas naturais valiosos e, muitas vezes, populações tradicionais.
Pela amplitude e profundidade de seu trabalho, Naomi Klein é hoje certamente o nome mais respeitado do pensamento global de esquerda. Seu livro mostra de maneira persuasiva que a destruição do sistema climático não é apenas produto de uma “externalidade”, uma falha de mercado ou uma anomalia.
É a consequência de uma organização econômica que privatizou a esfera pública da vida social, afrouxou a regulamentação das corporações, reduziu seus impostos e não lhes cobra os danos que provocam. Mais que isso, perdeu-se, globalmente, o horizonte estratégico do planejamento que deveria fazer das infraestruturas atuais a base para uma economia regenerativa dos ecossistemas de cujos serviços dependemos todos.
O importante, porém, é que Naomi Klein coloca em questão o preceito de que mais Estado é a quintessência política das aspirações de esquerda. Na verdade, na América Latina (mas ela cita também o exemplo do Syriza, partido grego de esquerda que apoia a exploração petróleo e gás como meio de sair da crise), formou-se uma lógica de extração-e-redistribuição cujos efeitos imediatos benéficos não têm como escamotear suas consequências nefastas na maneira como se organiza a própria relação entre economia e sociedade.
O extrativismo progressista que domina hoje os governos considerados de esquerda da América Latina representa uma tríplice ameaça ao processo de desenvolvimento.
Em primeiro lugar, está sendo fortalecida a infraestrutura típica do século XX, com predomínio de formas centralizadas e predatórias de exploração de energia. São infraestruturas que colocam o continente numa trajetória da qual será cada vez mais difícil sair, uma vez que elas precisam ser usadas, rentabilizadas e pagas. Como consequência, em segundo lugar, a inserção da América Latina nas cadeias globais de valor se faz por baixo, a partir do que elas têm de menos valioso.
O resultado disso é que estamos na retaguarda e operando puramente como consumidores dos frutos mais importantes da inovação contemporânea. Por isso, a discussão sobre a desindustrialização brasileira vai muito além do interesse dos industriais. O que está em jogo é o papel decrescente que a informação e a inteligência desempenham no sistema econômico, em benefício das formas imediatamente extrativas de riqueza.
Para Naomi Klein, a liberalização econômica generalizada não é e não pode ser resposta a esses problemas. Mas o culto tóxico aos bilhetes premiadosdos combustíveis fósseis não faz jus ao que de mais inteligente e generoso a esquerda, desde Marx, tem trazido para a cultura humana
*Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP – Blog: ricardoabramovay.com – Twitter: @abramovay
[:en]A redistribuição de renda na América Latina se dá em bases frágeis, ao estimular um modelo econômico de extração de recursos finitos com imensos custos ambientais e humanos
A expressão que dá título a este artigo é usada por Naomi Klein em seu recente e indispensável livro [1]. Tomada de empréstimo a pesquisadores latino-americanos [2], ela contém o maior paradoxo vivido pelo continente e, particularmente, por sua esquerda. Por um lado, a América Latina, nos últimos dez anos, passou por um processo impressionante não apenas de redução da pobreza, mas também de desconcentração da renda. A permanência no poder dos blocos governistas da Venezuela, da Argentina, da Bolívia, do Equador e do Brasil apoia-se, em grande parte, nessas conquistas, como ficou claro na reeleição de Dilma Rousseff.
[1] This Changes Everything. Capitalism vs. Climate. New York. Simon&Schuster.
[2] Ver, entre outros, Eduardo Gudynas
As bases desse processo redistributivo não poderiam, entretanto, ser mais frágeis. Cada um desses governos estimula um modelo econômico de extração de recursos finitos com imensos custos ambientais e humanos.
O equatoriano rasgou sua Constituição e desencadeou perseguição a jornalistas que denunciaram a transformação da reserva de biosfera de Yasuni em campo aberto para exploração de petróleo. A Bolívia aprofundou sua dependência com relação ao gás e, mais que isso, violentou a integridade dos territórios de populações indígenas, onde construtoras brasileiras se empenham em fazer rodovias e gigantescas hidrelétricas. A Argentina está na fronteira das formas não convencionais de exploração de fósseis (com suas imensas reservas de shale gas), da mesma forma que o Brasil com o pré-sal (mais sobre o pré-sal em “Mão e Contramão”, edição 90).
Cada um desses países vai-se tornando cada vez mais dependente da exploração de recursos materiais, energéticos e bióticos com baixo valor agregado e alto impacto sobre sistemas naturais valiosos e, muitas vezes, populações tradicionais.
Pela amplitude e profundidade de seu trabalho, Naomi Klein é hoje certamente o nome mais respeitado do pensamento global de esquerda. Seu livro mostra de maneira persuasiva que a destruição do sistema climático não é apenas produto de uma “externalidade”, uma falha de mercado ou uma anomalia.
É a consequência de uma organização econômica que privatizou a esfera pública da vida social, afrouxou a regulamentação das corporações, reduziu seus impostos e não lhes cobra os danos que provocam. Mais que isso, perdeu-se, globalmente, o horizonte estratégico do planejamento que deveria fazer das infraestruturas atuais a base para uma economia regenerativa dos ecossistemas de cujos serviços dependemos todos.
O importante, porém, é que Naomi Klein coloca em questão o preceito de que mais Estado é a quintessência política das aspirações de esquerda. Na verdade, na América Latina (mas ela cita também o exemplo do Syriza, partido grego de esquerda que apoia a exploração petróleo e gás como meio de sair da crise), formou-se uma lógica de extração-e-redistribuição cujos efeitos imediatos benéficos não têm como escamotear suas consequências nefastas na maneira como se organiza a própria relação entre economia e sociedade.
O extrativismo progressista que domina hoje os governos considerados de esquerda da América Latina representa uma tríplice ameaça ao processo de desenvolvimento.
Em primeiro lugar, está sendo fortalecida a infraestrutura típica do século XX, com predomínio de formas centralizadas e predatórias de exploração de energia. São infraestruturas que colocam o continente numa trajetória da qual será cada vez mais difícil sair, uma vez que elas precisam ser usadas, rentabilizadas e pagas. Como consequência, em segundo lugar, a inserção da América Latina nas cadeias globais de valor se faz por baixo, a partir do que elas têm de menos valioso.
O resultado disso é que estamos na retaguarda e operando puramente como consumidores dos frutos mais importantes da inovação contemporânea. Por isso, a discussão sobre a desindustrialização brasileira vai muito além do interesse dos industriais. O que está em jogo é o papel decrescente que a informação e a inteligência desempenham no sistema econômico, em benefício das formas imediatamente extrativas de riqueza.
Para Naomi Klein, a liberalização econômica generalizada não é e não pode ser resposta a esses problemas. Mas o culto tóxico aos bilhetes premiadosdos combustíveis fósseis não faz jus ao que de mais inteligente e generoso a esquerda, desde Marx, tem trazido para a cultura humana
*Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP – Blog: ricardoabramovay.com – Twitter: @abramovay