Certificações, bolsas e relatórios surgem no vácuo da governança formal, de maneira independente e voluntária
Simplificando – e muito – o argumento de Eduardo Felipe Matias (leia Entrevista “Tudo ao mesmo tempo agora“), o dilema que enfrentamos é o de como criar os incentivos certos para colocar em movimento um círculo virtuoso que nos leve rumo a um desenvolvimento mais sustentável. É justamente sobre esse ponto que uma série atores vem atuando com diferentes estratégias e resultados. Entre eles, estão grandes sistemas de certificação, bolsas de valores e de relatoria para a sustentabilidade que, embora não estejam diretamente na linha de frente do processo, tentam colocar uma dose extra de pressão sobre grandes empresas e cadeias produtivas globais. Em suma, querem ser o Grilo Falante [1] sentado no ombro da economia global.
[1] Personagem do clássico infantil Pinóquio que incorpora sua consciência
“A ideia é incentivar e motivar as empresas [a aderir aos princípios da sustentabilidade]”, observa a cientista florestal Áurea Nardelli, diretora regional de desenvolvimento de negócios da certificadora Roundtable on Sustainable Biomaterials (RSB) [2] no Brasil. Para ela, os esquemas de certificação voluntária surgem como uma alternativa para contornar situações em que as leis ou estratégias de controle governamentais não sejam suficientes para assegurar – com a clareza necessária – as demandas do mercado e de outras partes interessadas. “Elas surgem no vácuo da governança [oficial], de forma independente e voluntária”, prossegue.
[2] Estabeleceu-se em 2007 com foco inicial na certificação de biocombustíveis e, em 2013, expandiu sua atuação para o segmento de biomateriais
O que está em jogo é a construção de uma camada adicional de governança em uma esfera distinta da tradicional, o que não é bem uma novidade, tampouco uma ideia corriqueira. A diretora-executiva da Forest Stewardship Council (FSC) [3], Fabíola Zerbini, conta que, em 2007, participou de uma reunião da Iseal Alliance [4]. “Foi uma reunião com pesquisadores e pensadores de ponta e, entre outros assuntos, falou-se sobre essa necessidade de criar instâncias paralelas de governança que viessem a suprir lacunas nos sistemas oficiais. Foi a coisa mais ‘nova’ que ouvi naquele encontro”, relembra.
[3] Sistema de certificação voltado para produtos de origem florestal
[4] Organização que congrega sistemas de certificação para a sustentabilidade em nível global
A ideia não é tornar os governos obsoletos, mas complementar sua ação de alguma forma. “Os sistemas [de certificação para a sustentabilidade] não substituem os governos nacionais, só ocupam espaços que estavam vazios”, complementa Zerbini. Áurea Nardelli segue nessa mesma direção ao avaliar que essa nova camada até ajuda a reforçar a governança tradicional. “Todos os sistemas, incluindo a RSB, têm o atendimento às leis locais como um princípio básico”, diz, acrescentando que isso causa grande impacto especialmente em países com instituições mais fracas onde a adesão à legalidade não é tão certa.
Além disso, as empresas que optam por um desses certificados precisam se dispor a passar por auditorias periódicas para comprovar que estão trabalhando dentro dos parâmetros exigidos e adotando uma postura mais aberta em relação às partes interessadas que sejam impactadas pelos projetos certificados.
No mundo todo, mais de 183 milhões de hectares de florestas são certificados pelo FSC. Área maior que o território da Líbia
OUTRAS EXPERIÊNCIAS
A certificações não são as únicas organizações que tentam ocupar parte desse espaço.
Criada em 1997, a Global Reporting Initiative (GRI) se tornou “padrão-ouro” no que diz respeito às diretrizes que as empresas precisam seguir ao elaborarem seus relatórios de sustentabilidade. “Nossa convicção é que a transparência é um passo inicial absolutamente crucial na direção de um mundo mais sustentável”, explica Teresa Fogelberg, executiva-chefe da organização.
Segundo ela, além de ajudar a dar mais clareza ao quadro geral de como estamos administrando os recursos finitos de nosso planeta – o que já não é pouca coisa –, o importante é o processo. “Para fazer um relatório de sustentabilidade corretamente, as empresas precisam se conectar com as partes interessadas”, explica.
Já a Bolsa Verde do Rio de Janeiro (BVRio) adota uma abordagem mais prática. Procura colocar a força dos mercados a serviço do cumprimento da legislação ambiental, convertendo obrigações legais em oportunidades de negócios. “A partir do momento que se crie um incentivo financeiro, os diversos atores vão se mobilizar para cumprir as legislações, ou mesmo ir além delas”, avalia Pedro Moura Costa, presidente da BVRio.
Ele recorda que, na época de seu lançamento, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) [5] do Protocolo de Kyoto “levou à criação de mais de 7 mil projetos pelo mundo afora”. No entanto, destaca que a falta de demanda por créditos foi fatal para a maioria desses projetos. “É importante que tais incentivos sejam significativos e aplicados de forma consistente”, ressalta Moura Costa.
[5] O MDL permite que projetos para a redução nas emissões de CO2 em países que não tenham metas obrigatórias gerem créditos que podem ser vendidos para países com metas
a cumprir
CADEIA DE TRANSMISSÃO
O que todas essas iniciativas parecem ter em comum é que, de alguma forma, operam como uma cadeia de transmissão de pressões para diferentes pontos do sistema. Nesse sentido, Fabíola Zerbini lembra que, desde fevereiro, a fabricante de embalagens Tetra Pak só utiliza matérias-primas de fontes certificadas. Só isso já representa uma cadeia de 11 bilhões de euros. “Tem dois caminhos [que levam as empresas a se enquadrar]. Ou é por opção, porque a empresa acredita no processo, ou por pressão do mercado. Eu tenho meu lado esperançoso e acho que esse é um caminho sem volta”, completa.