Em Rondônia, onde a expectativa de desenvolvimento está na geração de energia hidrelétrica e no agronegócio, o destino da lendária Madeira-Mamoré é sair da memória
Existe um pedaço do Brasil, na isolada fronteira de Rondônia com a Bolívia, onde a densa floresta está engolindo, com risco de apagar da História, um patrimônio que simboliza tempos de riqueza e opulência na Amazônia. No Distrito do Iata, município de Guajará-mirim (RO), velhos trilhos resistem nos quintais das casas próximas à estação ferroviária em ruínas. No local havia intenso vaivém de locomotivas e vagões lotados de mercadorias e trabalhadores dos seringais, na primeira metade do século XX. De lá, a farta produção extrativista e agrícola era escoada até Porto Velho, de onde seguia pelos rios Madeira e Amazonas para Belém e exterior. “Foi um crime sucatear tudo isso”, lamenta o aposentado Jacinto Santos, filho de “Soldado da Borracha” – codinome de quem chegava de outras regiões brasileiras para a aventura na extração do látex, o “ouro branco”, na selva desconhecida e perigosa.
O vilarejo guarda parte do que restou da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, símbolo do gigantismo dos dois ciclos econômicos da borracha (1879-1912 e 1942-1945) e marco histórico da ocupação do território e do uso da biodiversidade amazônica. No estado onde a expectativa de desenvolvimento está hoje na geração de energia hidrelétrica e no agronegócio sustentado por estradas, o destino natural da lendária ferrovia é cair no esquecimento. A situação atual é de abandono, dez anos após a última – e curta – viagem lá realizada. Na ocasião, o trem transportou convidados para uma missa no Cemitério da Candelária, em Porto Velho, em memória aos 1,8 mil operários mortos durante a construção da linha férrea – tombada como patrimônio nacional, dias depois da celebração, em 2005.
A saga da Madeira-Mamoré com seus 366 quilômetros floresta adentro começou em 1867, quando o governo imperial iniciou os estudos de viabilidade do empreendimento. No entanto, o ambiente inóspito abortou qualquer projeto. O assunto voltou à tona com o Tratado de Petrópolis, em 1903, no qual a Bolívia cedeu ao Brasil a área que hoje corresponde ao Acre em troca de uma ferrovia que permitisse exportar sua produção pelo Rio Amazonas. O último dormente foi instalado em 1912, mas logo a “Ferrovia do Diabo” tornou-se economicamente inviável devido à decadência da borracha, consequência da saturação do mercado pela produção asiática. Na década de 1980, toda a estrutura começou a ser vendida como sucata.
Recentemente, um movimento de empresários e organizações da sociedade civil propôs a reativação de 27 quilômetros de trilhos em Guajará-Mirim, para fins turísticos, devolvendo à região parte do prestígio do passado. Belezas naturais estão hoje inacessíveis, como as existentes na famosa “Reta do Abunã”, um trecho de 44 quilômetros de trilhos abandonados, que cruza local ermo e alagadiço, repleto de buritizais, onde índios atacavam operários da ferrovia. O município busca alternativas, porque tem 93% do território dentro de parques, reservas e outras áreas protegidas que, por isso, impõem restrições a atividades econômicas.
Recursos de compensação, previstos pelo licenciamento das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, poderiam abrir perspectivas. Mas, naquela região fronteiriça que almeja o desenvolvimento, a revitalização da Madeira-Mamoré não foi contemplada. As poucas ações mitigadoras voltadas para o patrimônio da antiga ferrovia se concentraram na capital, Porto Velho. Mesmo assim, as estruturas que receberam melhorias para transformação em polo cultural estão hoje em situação crítica, em decorrência das últimas enchentes.
Em nota, a Santo Antônio Energia informa que investiu na restauração de galpões e oficinas, bem como na construção de um deck e área de lazer de 5,7 mil metros quadrados, na capital. Entre os condicionantes da obra, resta a recuperação do trecho de 7,8 quilômetros da estrada de ferro, que vai da praça até a Capela de Santo Antônio, cujo projeto está em análise no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As famílias de baixa renda que viviam em área de risco, ao longo dos trilhos, precisaram ser realojadas. Na estação onde a borracha e demais produtos da Amazônia desembarcavam para seguir o caminho da exportação por via fluvial até o Atlântico, o toque de uma sirene ainda hoje avisa o início e o fim do expediente de trabalho, como acontecia no auge da borracha naquele entreposto. É o modo de manter a tradição viva, enquanto a ferrovia não encontra uma nova vocação.
*Jornalista[:en]Em Rondônia, onde a expectativa de desenvolvimento está na geração de energia hidrelétrica e no agronegócio, o destino da lendária Madeira-Mamoré é sair da memória
Existe um pedaço do Brasil, na isolada fronteira de Rondônia com a Bolívia, onde a densa floresta está engolindo, com risco de apagar da História, um patrimônio que simboliza tempos de riqueza e opulência na Amazônia. No Distrito do Iata, município de Guajará-mirim (RO), velhos trilhos resistem nos quintais das casas próximas à estação ferroviária em ruínas. No local havia intenso vaivém de locomotivas e vagões lotados de mercadorias e trabalhadores dos seringais, na primeira metade do século XX. De lá, a farta produção extrativista e agrícola era escoada até Porto Velho, de onde seguia pelos rios Madeira e Amazonas para Belém e exterior. “Foi um crime sucatear tudo isso”, lamenta o aposentado Jacinto Santos, filho de “Soldado da Borracha” – codinome de quem chegava de outras regiões brasileiras para a aventura na extração do látex, o “ouro branco”, na selva desconhecida e perigosa.
O vilarejo guarda parte do que restou da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, símbolo do gigantismo dos dois ciclos econômicos da borracha (1879-1912 e 1942-1945) e marco histórico da ocupação do território e do uso da biodiversidade amazônica. No estado onde a expectativa de desenvolvimento está hoje na geração de energia hidrelétrica e no agronegócio sustentado por estradas, o destino natural da lendária ferrovia é cair no esquecimento. A situação atual é de abandono, dez anos após a última – e curta – viagem lá realizada. Na ocasião, o trem transportou convidados para uma missa no Cemitério da Candelária, em Porto Velho, em memória aos 1,8 mil operários mortos durante a construção da linha férrea – tombada como patrimônio nacional, dias depois da celebração, em 2005.
A saga da Madeira-Mamoré com seus 366 quilômetros floresta adentro começou em 1867, quando o governo imperial iniciou os estudos de viabilidade do empreendimento. No entanto, o ambiente inóspito abortou qualquer projeto. O assunto voltou à tona com o Tratado de Petrópolis, em 1903, no qual a Bolívia cedeu ao Brasil a área que hoje corresponde ao Acre em troca de uma ferrovia que permitisse exportar sua produção pelo Rio Amazonas. O último dormente foi instalado em 1912, mas logo a “Ferrovia do Diabo” tornou-se economicamente inviável devido à decadência da borracha, consequência da saturação do mercado pela produção asiática. Na década de 1980, toda a estrutura começou a ser vendida como sucata.
Recentemente, um movimento de empresários e organizações da sociedade civil propôs a reativação de 27 quilômetros de trilhos em Guajará-Mirim, para fins turísticos, devolvendo à região parte do prestígio do passado. Belezas naturais estão hoje inacessíveis, como as existentes na famosa “Reta do Abunã”, um trecho de 44 quilômetros de trilhos abandonados, que cruza local ermo e alagadiço, repleto de buritizais, onde índios atacavam operários da ferrovia. O município busca alternativas, porque tem 93% do território dentro de parques, reservas e outras áreas protegidas que, por isso, impõem restrições a atividades econômicas.
Recursos de compensação, previstos pelo licenciamento das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, poderiam abrir perspectivas. Mas, naquela região fronteiriça que almeja o desenvolvimento, a revitalização da Madeira-Mamoré não foi contemplada. As poucas ações mitigadoras voltadas para o patrimônio da antiga ferrovia se concentraram na capital, Porto Velho. Mesmo assim, as estruturas que receberam melhorias para transformação em polo cultural estão hoje em situação crítica, em decorrência das últimas enchentes.
Em nota, a Santo Antônio Energia informa que investiu na restauração de galpões e oficinas, bem como na construção de um deck e área de lazer de 5,7 mil metros quadrados, na capital. Entre os condicionantes da obra, resta a recuperação do trecho de 7,8 quilômetros da estrada de ferro, que vai da praça até a Capela de Santo Antônio, cujo projeto está em análise no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As famílias de baixa renda que viviam em área de risco, ao longo dos trilhos, precisaram ser realojadas. Na estação onde a borracha e demais produtos da Amazônia desembarcavam para seguir o caminho da exportação por via fluvial até o Atlântico, o toque de uma sirene ainda hoje avisa o início e o fim do expediente de trabalho, como acontecia no auge da borracha naquele entreposto. É o modo de manter a tradição viva, enquanto a ferrovia não encontra uma nova vocação.
*Jornalista