Por Amália Safatle
Para o sociólogo italiano Massimo di Felice, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, as redes digitais são o telescópio da contemporaneidade. “Mas nos faltam os Galileus”, ressalva ele. Veja a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por e-mail para a reportagem Encontros e Desencontros – como a sustentabilidade contribuiu para reaproximar ciência e espiritualidade após séculos de separação, publicada na edição 97 de Página22.
Qual a proposta da Ecosofia e como se relaciona com a Deep Ecology? É um pensamento que tem ganhado mais projeção em um contexto de crise global (em que o crescimento econômico material não foi acompanhado de ganhos qualitativos em bem-estar e felicidade)? Se sim ou se não, por quê?
O conceito de Ecosofia é mais que um conceito, mais que um campo amplo de autores e ideias. Eu diria que é uma “ecologia” de teorias e pensamentos. Não é, portanto, um conceito ou uma concepção definível. Isso me parece coerente com a sua proposta conceitual que se abre a uma complexidade maior do que aquela proposta pelas ciências modernas que, escravas do princípio de causalidade, delimitavam a relação com o meio ambiente e a natureza entre os moldes da oposição, sujeito e objeto.
Tal oposição enxergava o mundo a partir do ponto de vista do sujeito observador, o humano, medida de todas as coisas, segundo o princípio renascentista. A Ecosofia, ao contrário, parte do presuposto da não centralidade do humano. Pensa o conhecimento desde uma perspectiva plural, não apenas epistêmica, mas aberta também aos saberes não humanos, dos vegetais, dos animais, os geológicos etc. Nessa perspectiva, o conhecimento nunca se dá por meio da dicotomia sujeito-objeto, mas sempre a partir de uma perspectiva complexa e plural.
Existem visões diferentes no âmbito da Ecosofia e uma pluralidade de autores: Arne Naess, R. Pannikkar e F. Guattari, só para citar os mais novos. Mas são muitos mais e cada um com uma ideia própria. Nos últimos anos, Michel Maffesoli, no seu texto Matrimonium, reavivou o assunto fornecendo uma interessante interpretação. Na ideia do importante sociólogo francês, a Ecosofia não seria hoje a volta de um ecologismo romântico, mas o sinal claro de uma saturação dos valores e das prioridades que orientaram a modernidade e a época industrial. A evidência desta inversão de valores é descrita por Maffesoli na passagem da ideia do progresso chegando ao seu colapso mundial, para a ideia do ¨progressivo¨. Na difusão de um novo tipo de sensibilidade que, mais que pensar o meio ambiente como externo, sinta o chamado de um novo tipo de ¨enraizamento¨ e de contato com a terra, que ele chama ¨invaginação¨. A Ecosofia, na concepção dele, exprime o advento de uma nova sensibilidade difusa que não enxerga mais o meio ambiente como o entorno, o externo, o outro do sujeito. Junto com o Michel Maffesoli começamos há alguns anos a trabalhar sobre a perspectiva ecosofica, realizamos alguns simpósios internacionais no Brasil, em Portugal e na França.
E como o senhor insere as tecnologias digitais nesse debate?
A minha contribuição está na perspectiva de pensar a Ecosofia além da disseminaçao de uma nova sensibilidade. É como a expressão de uma nova dimensão ecológica a partir da difusão de uma outra cultura tecnológica, não mais baseada na oposição homem-técnica própria das tecnologias digitais. A difusão das últimas gerações de TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação] nos levou a uma outra relação com o meio ambiente. Não mais externa, mas em rede e, portanto, conectiva. O Polo Ártico, os ursos polares, a onça da Mata Atlântica, as florestas pluviais do mundo inteiro estão hoje a nós conectadas por meio da digitalização e de formas diferentes de tecnologias de geolocalização. Essas tecnologias, além de nos permitirem o monitoramento em tempo real, nos acostumam a estar conectados continuamente a uma dimensão ecológica planetária distinta daquela urbana antropomórfica e daquela nacional-política.
A partir do desenvolvimento dessa linha de pesquisa, produzimos o livro “Redes Digitais e Sustentabilidade, a relação entre o homem e o meio ambiente na época das redes digitais” [Annablume Editora], diversos artigos e criamos uma pós-graduação lato senso na USP para formar profissionais capacitados em conectar ideias, pessoas, recursos, bio diversidades, banco de dados, tecnologias digitais de um territorio para a sustentabilidade. O curso encontra-se em sua segunda edição. Como se vê, a Ecosofia é complexa e seria errado pensá-la como um campo disciplinar pois é bem mais que isso.
Gostaria que o senhor explorasse o aspecto mais espiritual da Ecosofia.
A minha pesquisa me orienta a pensar que, além da integração dos quatro campos comunemente atribuídos à Ecosofia – o científico, o emocional, o prático e o espiritual –, existe um quinto que é o tecnológico, ao qual se atribui não o significado da técnica instrumental da tradição ocidental (de Aristóteles até Adorno), mas aquele da tecnologia das inteligências, que se refere à tecnologia digital conectiva. Desse ponto de vista, a minha ideia de Ecosofia, embora compartilhando a ideia da crise do antropocentrismo e da necessidade de um olhar transdisciplinar, que inclua os outros atores não humanos e que habitam a bioesfera, se diferencia daquela da Deep Ecology. A minha ideia é que as sensibilidades, as práticas e os conhecimentos ecosóficos contemporâneos são distintos daqueles dos anos 1970. São produtos de um tipo particular de conexão entre os membros da bioesfera que se produz pela digitalização de tudo e pela articulação de redes ecológicas digitais. Estou há alguns anos trabalhando essa ideia das redes ecológicas digitais e uma parte do resultado deste estudo sairá no meu próximo livro cujo tema é o Ato Conectivo. A origem de tal conexão entre nós e o clima, as florestas e os animais é digital e informativa. Mas, sobretudo, as práticas para subverter a destruição e promover inovações sustentáveis são resultados de conexões e da análise de uma grande quantidade de dados, os chamados de Big Data. Gaia é hoje digital, tudo que sabemos sobre o nosso planeta, as florestas e o clima é através da circulação das informações nas redes digitais. Tudo que fazemos, criamos e praticamos numa direção mais sustentável o fazemos através do acesso e da manipulação de dados digitais. E realizamos contruindo redes que conectam pessoas, ideias, recursos, territórios etc.
Em relação à espiritualidade me parece que temos também sinais claros de mudanças importantes, embora estas aconteçam em um clima de restauração e de dogmatismo que se difundem, sejam nos países de tradição Islâmica do Oriente Médio, seja no próprio Brasil. Mas a contradição, o paradoxo e a complexidade são os pressupostos da nossa contemporaneidade, além de uma ¨forma mentis¨ ecosófica. Simplificando, me parece que todas as religiões monoteístas, isto é, o Hebraismo, o Cristianismo e o Islamismo, foram historicamente portadoras de uma cultura antropocêntrica. Jeová, Cristo, e Alá falam aos humanos, prometendo a vida eterna, o paraíso. Basta ler o mito da Genesis no qual se reproduz uma clara hierarquia entre o homem e a natureza que reproduz aquela existente entre Deus e o homem. Ao contrário, a maioria das divindades politeístas são expressões das forças da natureza e difundem uma espiritualidade ecológica, expressão de uma conexão forte e dinâmica com os elementos naturais. No Brasil temos algumas das místicas mais ecológicas do mundo. Penso nos cultos afro-brasileiros, no Candomblé, por exemplo, cujos Orixás habitam os elementos da naturezas: a água, a mata, o fogo etc. Penso na mística indígena da Ayahuasca e em todos os tipos de Xamanismo que permitem ao xamã transitar entre diversas naturezas. Também na mística devemos reconhecer os sinais de uma cultura não ecológica que tanto contribuiu para fazer com que a humanidade chegasse ao iminente perigo da sua extinção. Não é um acaso que as religiões politeístas nasceram no Ocidente e desde lá espalharam-se para o mundo. O Ocidente monoteísta é o Ocidente destruidor. A parte do mundo responsável pelo maior impacto na biodiversidade. Neste sentido, o Brasil é um País de fronteira, onde o Ocidente e o não Ocidente enfrentam-se de uma forma dramaticamente violenta. A cultura da produção, da política nacional destruidora de um lado e as culturas locais, os povos indígenas, os posseiros do outro. Estes dois projetos são expressões de culturas religiosas distintas. De um lado o Brasil cristão, católico e evangélico, do outro o Brasil xamânico, politeísta, candomblecista.
Mesmo as pessoas mais céticas e de visão mais materialista podem partilhar dessa visão da Ecosofia? No cerne está uma revisão de valores, um exercício pessoal de interiorização, de busca de essência e de propósito, para que a mudança do indivíduo sirva como um motor da mudança social?
É claro que estamos na encruzilhada de uma mudança de paradigma. O modelo econômico, político, cultural, que foi a bandeira da modernidade e que vem na história do Brasil sendo perpetuado, seja pela esquerda, seja pela direita, chegou ao fim. Não conseguiremos mais expandir e prosperar com esse modelo de produção e consumo, pois seu custo em termos ambientais é insustentável. Não é exagerado hoje dizer que o desenvolvimento significa a extinção do gênero humano. A humanidade, se ainda há tempo, deve encontrar novos modelos de prosperidade e de desenvolvimento. Mas se essa busca depender da humanidade, esse processo vai demorar muito. Devemos esperar o nascimento de uma nova humanidade, de uma nova espécie, mais ecológica e inteligente. É preciso algumas gerações e pelo que nos dizem os cientistas nós não temos esse tempo. A esperança está na tecnologia, a única possibilidade de resolução rápida e de inversão de fenômenos. Novas técnicas de produção de energia, novas tecnologias de distribuição dos produtos, novas técnicas de reciclagem e novas técnicas de disseminação de informações e de educação planetária.
A chave está na substituição da visão antropocêntrica e hierarquizada na relação do homem com a natureza. Por uma cultura em rede, na qual o ser humano é apenas um ponto em complexa rede interconectada? Otto Sharmer fala de ego-system versus eco-system. A mensagem central da Ecosofia seria a mesma?
Acho que sim. Por séculos, como diz Michel Serres [filósofo francês], o Ocidente acreditou que o homem estivesse no centro do universo. É necessário fazer uma outra revolução copernicana que, desta vez, em lugar de tirar o nosso planeta do centro do universo, retire o ser humano do centro. Essa mudança curiosamente no próprio Ocidente se deu definitivamente pelo advento de uma nova tecnologia, o telescópio. Foi através do telescópio que Galileu conseguiu enxergar um outro universo, medir a movimentação do astros e comprovar a mobilidade dos planetas. Se podemos aprender da história, devemos reconhecer que para acontecer essa virada que retire o humano do centro temos hoje uma tecnologia apropriada. O telescópio da nossa contemporaneidade são as redes digitais, que nos permitem enxergar o universo de outra forma. Nos faltam apenas os Galileus.[:en]Para o sociólogo italiano Massimo di Felice, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, as redes digitais são o telescópio da contemporaneidade. “Mas nos faltam os Galileus”, ressalva ele. Veja a seguir, os principais trechos da entrevista concedida por e-mail para a reportagem Encontros e Desencontros – como a sustentabilidade contribuiu para reaproximar ciência e espiritualidade após séculos de separação, publicada na edição 97 de Página22.
Qual a proposta da Ecosofia e como se relaciona com a Deep Ecology? É um pensamento que tem ganhado mais projeção em um contexto de crise global (em que o crescimento econômico material não foi acompanhado de ganhos qualitativos em bem-estar e felicidade)? Se sim ou se não, por quê?
O conceito de Ecosofia é mais que um conceito, mais que um campo amplo de autores e ideias. Eu diria que é uma “ecologia” de teorias e pensamentos. Não é, portanto, um conceito ou uma concepção definível. Isso me parece coerente com a sua proposta conceitual que se abre a uma complexidade maior do que aquela proposta pelas ciências modernas que, escravas do princípio de causalidade, delimitavam a relação com o meio ambiente e a natureza entre os moldes da oposição, sujeito e objeto.
Tal oposição enxergava o mundo a partir do ponto de vista do sujeito observador, o humano, medida de todas as coisas, segundo o princípio renascentista. A Ecosofia, ao contrário, parte do presuposto da não centralidade do humano. Pensa o conhecimento desde uma perspectiva plural, não apenas epistêmica, mas aberta também aos saberes não humanos, dos vegetais, dos animais, os geológicos etc. Nessa perspectiva, o conhecimento nunca se dá por meio da dicotomia sujeito-objeto, mas sempre a partir de uma perspectiva complexa e plural.
Existem visões diferentes no âmbito da Ecosofia e uma pluralidade de autores: Arne Naess, R. Pannikkar e F. Guattari, só para citar os mais novos. Mas são muitos mais e cada um com uma ideia própria. Nos últimos anos, Michel Maffesoli, no seu texto Matrimonium, reavivou o assunto fornecendo uma interessante interpretação. Na ideia do importante sociólogo francês, a Ecosofia não seria hoje a volta de um ecologismo romântico, mas o sinal claro de uma saturação dos valores e das prioridades que orientaram a modernidade e a época industrial. A evidência desta inversão de valores é descrita por Maffesoli na passagem da ideia do progresso chegando ao seu colapso mundial, para a ideia do ¨progressivo¨. Na difusão de um novo tipo de sensibilidade que, mais que pensar o meio ambiente como externo, sinta o chamado de um novo tipo de ¨enraizamento¨ e de contato com a terra, que ele chama ¨invaginação¨. A Ecosofia, na concepção dele, exprime o advento de uma nova sensibilidade difusa que não enxerga mais o meio ambiente como o entorno, o externo, o outro do sujeito. Junto com o Michel Maffesoli começamos há alguns anos a trabalhar sobre a perspectiva ecosofica, realizamos alguns simpósios internacionais no Brasil, em Portugal e na França.
E como o senhor insere as tecnologias digitais nesse debate?
A minha contribuição está na perspectiva de pensar a Ecosofia além da disseminaçao de uma nova sensibilidade. É como a expressão de uma nova dimensão ecológica a partir da difusão de uma outra cultura tecnológica, não mais baseada na oposição homem-técnica própria das tecnologias digitais. A difusão das últimas gerações de TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação] nos levou a uma outra relação com o meio ambiente. Não mais externa, mas em rede e, portanto, conectiva. O Polo Ártico, os ursos polares, a onça da Mata Atlântica, as florestas pluviais do mundo inteiro estão hoje a nós conectadas por meio da digitalização e de formas diferentes de tecnologias de geolocalização. Essas tecnologias, além de nos permitirem o monitoramento em tempo real, nos acostumam a estar conectados continuamente a uma dimensão ecológica planetária distinta daquela urbana antropomórfica e daquela nacional-política.
A partir do desenvolvimento dessa linha de pesquisa, produzimos o livro “Redes Digitais e Sustentabilidade, a relação entre o homem e o meio ambiente na época das redes digitais” [Annablume Editora], diversos artigos e criamos uma pós-graduação lato senso na USP para formar profissionais capacitados em conectar ideias, pessoas, recursos, bio diversidades, banco de dados, tecnologias digitais de um territorio para a sustentabilidade. O curso encontra-se em sua segunda edição. Como se vê, a Ecosofia é complexa e seria errado pensá-la como um campo disciplinar pois é bem mais que isso.
Gostaria que o senhor explorasse o aspecto mais espiritual da Ecosofia.
A minha pesquisa me orienta a pensar que, além da integração dos quatro campos comunemente atribuídos à Ecosofia – o científico, o emocional, o prático e o espiritual –, existe um quinto que é o tecnológico, ao qual se atribui não o significado da técnica instrumental da tradição ocidental (de Aristóteles até Adorno), mas aquele da tecnologia das inteligências, que se refere à tecnologia digital conectiva. Desse ponto de vista, a minha ideia de Ecosofia, embora compartilhando a ideia da crise do antropocentrismo e da necessidade de um olhar transdisciplinar, que inclua os outros atores não humanos e que habitam a bioesfera, se diferencia daquela da Deep Ecology. A minha ideia é que as sensibilidades, as práticas e os conhecimentos ecosóficos contemporâneos são distintos daqueles dos anos 1970. São produtos de um tipo particular de conexão entre os membros da bioesfera que se produz pela digitalização de tudo e pela articulaçao de redes ecológicas digitais. Estou há alguns anos trabalhando essa ideia das redes ecológicas digitais e uma parte do resultado deste estudo sairá no meu próximo livro cujo tema é o Ato Conectivo. A origem de tal conexão entre nós e o clima, as florestas e os animais é digital e informativa. Mas, sobretudo, as práticas para subverter a destruição e promover inovações sustentáveis são resultados de conexões e da análise de uma grande quantidade de dados, os chamados de Big Data. Gaia é hoje digital, tudo que sabemos sobre o nosso planeta, as florestas e o clima é através da circulaçao das informações nas redes digitais. Tudo que fazemos, criamos e praticamos numa direção mais sustentável o fazemos através do acesso e da manipulação de dados digitais. E realizamos contruindo redes que conectam pessoas, ideias, recursos, territorios etc.
Em relação à espiritualidade me parece que temos tambem sinais claros de mudanças importantes, embora estas aconteçam em um clima de restauração e de dogmatismo que se difundem, sejam nos países de tradição Islâmica do Oriente Médio, seja no próprio Brasil. Mas a contradição, o paradoxo e a complexidade são os pressupostos da nossa contemporaneidade, além de uma ¨forma mentis¨ ecosófica. Simplificando, me parece que todas as religiões monoteístas, isto é, o Hebraismo, o Cristianismo e o Islamismo, foram historicamente portadoras de uma cultura antropocêntrica. Jeová, Cristo, e Alá falam aos humanos, prometendo a vida eterna, o paraíso. Basta ler o mito da Genesis no qual se reproduz uma clara hierarquia entre o homem e a natureza que reproduz aquela existente entre Deus e o homem. Ao contrário, a maioria das divinidades politeístas são expressões das forças da natureza e difundem uma espirtualidade ecológica, expressão de uma conexão forte e dinâmica com os elementos naturais. No Brasil temos algumas das místicas mais ecológicas do mundo. Penso nos cultos afro-brasileiros, no Candomblé, por exemplo, cujos Orixás habitam os elementos da naturezas: a água, a mata, o fogo etc. Penso na mística indígena da Ayahuasca e em todos os tipos de Xamanismo que permitem ao xamã transitar entre diversas naturezas. Também na mística devemos reconhecer os sinais de uma cultura não ecológica que tanto contribuiu para fazer com que a humanidade chegasse ao iminente perigo da sua extinção. Não é um acaso que as religiões politeístas nasceram no Ocidente e desde lá espalharam-se para o mundo. O Ocidente monoteísta é o Ocidente destruidor. A parte do mundo responsável pelo maior impacto na biodiversidade. Neste sentido, o Brasil é um País de fronteira, onde o Ocidente e o não Ocidente enfrentam-se de uma forma dramaticamente violenta. A cultura da produção, da política nacional destruidora de um lado e as culturas locais, os povos indígenas, os posseiros do outro. Estes dois projetos são expressões de culturas religiosas distintas. De um lado o Brasil cristão, católico e evangélico, do outro o Brasil xamânico, politeísta, candomblecista.
Mesmo as pessoas mais céticas e de visão mais materialista podem partilhar dessa visão da Ecosofia? No cerne está uma revisão de valores, um exercício pessoal de interiorização, de busca de essência e de propósito, para que a mudança do indivíduo sirva como um motor da mudança social?
É claro que estamos na encruzilhada de uma mudança de paradigma. O modelo econômico, político, cultural, que foi a bandeira da modernidade e que vem na história do Brasil sendo perpetuado, seja pela esquerda, seja pela direita, chegou ao fim. Não conseguiremos mais expandir e prosperar com esse modelo de produção e consumo, pois seu custo em termos ambientais é insustentável. Não é exagerado hoje dizer que o desenvolvimento significa a extinção do gênero humano. A humanidade, se ainda há tempo, deve encontrar novos modelos de prosperidade e de desenvolvimento. Mas se essa busca depender da humanidade, esse processo vai demorar muito. Devemos esperar o nascimento de uma nova humanidade, de uma nova espécie, mais ecológica e inteligente. É preciso algumas gerações e pelo que nos dizem os cientistas nós não temos esse tempo. A esperança está na tecnologia, a única possibilidade de resolução rápida e de inversão de fenômenos. Novas técnicas de produção de energia, novas tecnologias de distribuição dos produtos, novas técnicas de reciclagem e novas técnicas de disseminação de informações e de educação planetária.
A chave está na substituição da visão antropocêntrica e hierarquizada na relação do homem com a natureza. Por uma cultura em rede, na qual o ser humano é apenas um ponto em complexa rede interconectada? Otto Sharmer fala de ego-system versus eco-system. A mensagem central da Ecosofia seria a mesma?
Acho que sim. Por séculos, como diz Michel Serres [filósofo francês], o Ocidente acreditou que o homem estivesse no centro do universo. É necessário fazer uma outra revolução copernicana que, desta vez, em lugar de tirar o nosso planeta do centro do universo, retire o ser humano do centro. Essa mudança curiosamente no próprio Ocidente se deu definitivamente pelo advento de uma nova tecnologia, o telescópio. Foi através do telescópio que Galileu conseguiu enxergar um outro universo, medir a movimentação do astros e comprovar a mobilidade dos planetas. Se podemos aprender da história, devemos reconhecer que para acontecer essa virada que retire o humano do centro temos hoje uma tecnologia apropriada. O telescópio da nossa contemporaneidade são as redes digitais, que nos permitem enxergar o universo de outra forma. Nos faltam apenas os Galileus.