POR MAGALI CABRAL
O Homo sapiens tecnológico logo vai a Marte, mas ainda não aprendeu a como driblar a crise ecológica que põe em risco a sua própria existência
“O homem não tem a técnica na mão. Ele é o joguete”
Martin Heidegger
A cena em que um hominídeo descobre, diante de um monolito, que podia usar um pedaço de osso como arma para se defender de predadores, do clássico de Stanley Kubrick 2001 Uma Odisseia no Espaço, ilustra o que pode ter sido o primeiro encontro entre o ser humano, ainda que primitivo, e a técnica. O “homem das cavernas” não tinha como saber, mas naquele momento estava viabilizando a espécie humana na Terra. A pedra lascada, o domínio do fogo, a invenção da roda, a pintura rupestre, a oralidade, entre tantas outras coisas, são acervos da arqueologia do “Homo sapiens tecnológico” – expressão que intitula livro de 2008 do filósofo francês Michel Puech, no qual diz que a cultura técnica é indissociável da natureza humana. Portanto, a aventura tecnológica, que começa com um pedaço de osso pré-histórico e chega aos carros autodirigidos do Google, é a própria história da civilização.
E o que isso tem a ver com sustentabilidade? Tem a ver que o ser humano, principalmente depois de transitar do analógico para o digital, alcançou um avanço tecnológico tão surpreendente que já está em seus planos levar sementes de plantas para Marte, construir robôs biológicos com habilidades muito superiores às dos humanos e até se comunicar por telepatia. Enquanto isso, no contrafluxo desse progresso, a Terra, ou Gaia, o único planeta que reúne as condições necessárias à sobrevivência da espécie, segue em um ritmo tão alucinante de exaustão que parece anular as medidas que vão sendo tomadas para reverter os efeitos da aventura humana. Será que existe alguma chance de surgir uma tecnologia milagrosa em um futuro breve capaz de consertar o estrago, como muitos querem crer?
Em 6 de agosto fez 70 anos que os Estados Unidos lançaram uma bomba atômica sobre Hiroshima, matando cerca de 70 mil pessoas e ferindo outras 70 mil. Logo depois da Segunda Guerra, Martin Heidegger escreveu que toda vez que o homem tentava dominar a técnica acabava dominado por ela.
“O problema estava no fato de que o Ocidente não desenvolvera até então um pensamento idôneo para entender a técnica”, afirma o sociólogo italiano Massimo Di Felice, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, explicando o filósofo alemão.
A História sempre pensou a técnica como algo distinto e separado do humano e, sobretudo, como algo apenas instrumental (para uso com uma finalidade) – no caso da bomba atômica, um artefato de alta tecnologia a serviço da destruição de inimigos.
A cidade de Uruk, na Suméria (hoje o Iraque), foi fundada em 3400 a.C., praticamente ao mesmo tempo em que se desenvolvia a escrita, e era rodeada por uma muralha com 9 quilômetros de extensão
DA ORAL PARA A ESCRITA
Passados milênios da Pré-História, o Homo sapiens, já bem mais criativo que seus ancestrais, encontrou na região que vai do Egito à Mesopotâmia, incluindo Palestina, Síria e Líbano, condições para o seu primeiro grande salto tecnológico.
É o que relata o sociólogo italiano Domenico De Masi em seu último livro O Futuro Chegou (2014). Por ali surgiu o barco (7500 a.C.), a cerâmica (7000 a.C.), os implementos agrícolas, os tijolos e a cerveja (6000 a.C.), a escrita (4000 a.C.), o papiro e a tinta (entre 3500 e 3200 a.C.) e tantas outras coisas sem as quais não nos imaginamos hoje.
Di Felice vê o momento da passagem da linguagem oral para a linguagem escrita como um dos grandes marcos do atual modelo da relação do ser humano com a natureza. “Quando se produz a técnica da escrita, as pessoas começam a construir cidades que se fecham em si mesmas, do mesmo modo como o parágrafo ou o capítulo de um texto fecham um argumento”, reflete Di Felice, inspirado no filósofo canadense Marshall McLuhan.
O grande teórico da comunicação escreveu que os povos na cultura oral habitavam embaixo das estrelas, olhando para o Cosmos. “Depois da escrita e da construção das cidades, a relação com a natureza começa a ser de domínio e exploração.”
Ainda de acordo com as pesquisas históricas feitas por Domenico De Masi, depois das surpreendentes e incontáveis proezas mesopotâmicas, a criatividade tecnológica entrou em um período letárgico do qual só sairia milhares de anos depois, na Renascença de Galileu Galilei (1564-1642) e das grandes navegações (séc. XV).
Antes disso, segundo o autor, os gregos e os romanos desencorajaram as carreiras científicas, construindo uma mitologia na qual os “engenheiros” Ícaro, Ulisses, Prometeu e Vulcano eram rigorosamente punidos. Por outro lado, eles não impuseram limites à criatividade humanística: filosofia e poesia, estratégias de guerra, burocracia, jurisprudência etc. “Até o fim do século XI d.C., o patrimônio tecnológico é enriquecido com poucos instrumentos: a polia, a estrada pavimentada, a engrenagem, o parafuso de Arquimedes, a prensa, o guindaste, o compasso, a caneta de pena, o moinho de vento e pouco mais”, relata De Masi.
Justiça seja feita aos gregos e romanos. O professor titular de História da Ciência e da Tecnologia da USP, Shozo Motoyama, lembra que os gregos tiveram um papel importante no desenvolvimento da Matemática, em especial a Geometria. E, na Medicina, tinham uma percepção muito avançada do ponto de vista da necessidade de uma harmonia do corpo para se ter saúde. “Creio que, por mais que tenhamos avançado, nesse aspecto, a Medicina do século XX, com seus excessos de especialização e de uso exagerado de remédios, perdeu essa percepção holística dos gregos.”
Quantos aos romanos, bem menos teóricos que os gregos, Motoyama diz que de fato suas técnicas não foram tão revolucionárias quanto a dos egípcios e mesopotâmicos, mas eles desenvolveram um aperfeiçoamento daquilo que já estava posto. “Qualquer técnica que é criada – desde a roda, o barco, a alavanca etc. – vai precisar de um desenvolvimento incremental e os romanos tiveram grande destaque nessa atividade.”
“A Idade Média instituiu a universidade, adotou o calendário cristão, difundiu o zero e os algarismos arábicos. Também devemos a esse período os óculos, os relógios de precisão, os botões, a escala musical, os vidros, o garfo, as cartas de baralho, o carnaval, as formas rudimentares de anestesia.” Domenico De Masi
A TECHNE
O papel da Grécia, como não poderia deixar de ser, foi o de pensar a técnica. Aristóteles, segundo Di Felice, fez a distinção entre o técnico e o epistêmico. Havia para o filósofo grego duas grandes atividades: a techne, que servia para construir coisas; e o epistêmico, o saber pelo saber, aquele que não requer nenhum tipo de aplicação. Para o grego, é a epistemologia que distingue os humanos dos outros animais, já que a techne era um atributo de todas as espécies. Afinal, pássaros constroem ninhos, macacos utilizam pedras e outros objetos como ferramentas etc. Essa distinção marca a construção da História ocidental e molda a forma como ainda hoje nos relacionamos com a técnica.
No período medieval, a mensagem cristã tratou de perpetuar essa dicotomia – o que é humano não é tecnológico e o que é tecnológico não é humano. Como os gregos já haviam feito também uma distinção entre o mundo sensível e o metafísico – para Platão o conhecimento maior era o abstrato e tudo o que fosse material, incluída aí a própria natureza, era inferior –, os cristãos separam o corpo da alma. A vida na Terra passou a ser mera transição para a vida eterna. “Além disso, o mito da Gênese apresenta a ideia de que o único ser vivo à imagem de Deus é o humano. E a Adão e Eva é dito que poderiam utilizar toda a Terra em seu benefício, exceto a árvore da vida. A natureza consolidou-se fonte de matéria-prima.”
A China dominava as técnicas náuticas e militares já durante a Idade Média. Sabiam das propriedades do magnetismo e tinham vasto conhecimento do céu. Mas, por decisões políticas, o país fechou-se em si mesmo e, no século XI, sucumbiu ao domínio dos mongóis
O MEIO É O MAR
Segunfo o professor de estudos da Comunicação da Universidade de Iowa, John Durham Peters, a natureza nem sequer existe mais. E isso não é de hoje. No livro The Marvelous Clouds (As Maravilhosas Nuvens, em tradução livre) o mar, por exemplo, desde o tempo dos sumérios, dos assírios e dos babilônios é entendido como uma mídia, quer dizer, um grande veículo de trocas de informação entre civilizações, como é hoje a internet. Por via marítima, primeiro pelo Mediterrâneo e, depois, pelo Atlântico, navegaram os idiomas, a música, a cultura, a filosofia, os modos de vida. O ar também é um meio de comunicação tendo em vista que transmite ondas sonoras, eletromagnéticas e sinais wi-fi.
Assim como Peters, outros autores contemporâneos de várias áreas do conhecimento já discutem a tecnologia para além de uma concepção meramente instrumental e de antítese ao que é natural ou humano. Michel Puech, por exemplo, mostra em seu livro que a relação do ser humano com a técnica é ontológica, isto é, o humano sem a técnica nem sequer seria. Ao nos denominar Homo sapiens technologicus, Puech está dizendo que o mundo tecnológico é o mundo natural para o humano (leia Entrevista).
“Dirigir um carro é tão natural quanto andar a pé. Uma incursão a uma montanha elevada não se concebe hoje sem equipamentos de alta tecnologia”, afirma o coordenador de Comunicação do GVces, Ricardo Barretto, em uma abordagem sobre Michel Puech. “É tão difícil pensar no ser humano sem a relação com a tecnologia que ela se torna essencial para a compreensão da existência da espécie”, complementa Barretto.
Até a primeira metade do século XX, as ciências físicas foram a grande estrela da tecnologia. A partir da Segunda Guerra Mundial, a biologia molecular rouba a cena. “Como ao nível da molécula o que funciona são as leis da mecânica quântica, os físicos então migraram para a área de biologia molecular”, explica Shozo Motoyama
TECNOLOGIA HUMANA
O fato de sermos talvez a espécie mais despreparada para a própria sobrevivência ao nascer explica, até certo ponto, o porquê de termos nos tornado Homo sapiens tecnológicos. O psicólogo Vicente Lourenço de Góes, professor colaborador da disciplina eletiva da FGV-Eaesp Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS), afirma que esse despreparo para a sobrevivência, ao contrário de outras espécies que nascem com muito mais autonomia, aumentou a nossa disponibilidade energética para o aprendizado em geral. “Um bebê nasce com um cérebro quase em branco, como um barro fresco a ser moldado. Por isso, a sua capacidade de adaptação a um ambiente local específico é praticamente ilimitada.”
No entanto, como precisa de pelo menos de cinco a seis anos para andar e se comunicar com destreza, uma “alta tecnologia humana” providenciou uma espécie de trade-off: “A gente gasta mais energia do que as outras espécies, mas ganha uma coletividade mais bem preparada para a sobrevivência”, afirma Góes.
Durante o desenvolvimento do humano emergem processos cognitivos sofisticados, como empatia, generosidade, inventividade, tolerância, paciência. E outros, não tão altruístas, como indiferença, individualismo, intolerância e ansiedade. “Todos esses são legítimos produtos da tecnologia humana que apoia a nossa adaptação aos vários ambientes”, atesta o psicólogo.
É no mínimo contraditório colocar uma barreira entre as pessoas e a técnica quando os próprios nascimentos se dão através de partos altamente tecnologizados. O filósofo brasileiro André Stangl, que estuda relações entre humano e não humano, cita Bruno Latour, um antropólogo francês, para endossar a impossibilidade de separar uma coisa da outra: “Ele diz que a técnica já está incorporada ao nosso modo de agir e ao nosso corpo”.
Para explicar o pensamento de Latour, Stangl usa a metáfora de um drible no futebol: “Existe um elemento no drible de um Neymar situado entre o limite do que é técnico e do que é criativo. O jogador, com um gestual, faz a bola ‘atravessar’ o adversário”. Ou seja, a técnica surge no momento em que solucionar uma situação se torna inevitável, seja no drible que poderá fazer com que a bola atinja o fundo da rede, seja no osso-arma com o qual o hominídeo-personagem do filme 2001 conseguirá afastar aqueles que impedem o seu acesso ao poço d’água. “Assim vai ficando claro que a questão toda não está na técnica em si, mas na nossa relação com ela.”
Mas como e onde encontrar um entendimento que ponha as atividades humanas nos eixos em termos ecológicos? O fato de até hoje existirem aldeias indígenas no Brasil que não foram tocadas pela cultura ocidental tem atraído vários intelectuais ao País, entre os quais Di Felice, De Masi e Latour. Os indígenas brasileiros, assim como alguns povos africanos, mantêm um outro conceito sobre a técnica que não é o aristotélico.
“Como intelectuais que pensam a sustentabilidade, temos a obrigação de tentar nos beneficiar desses saberes”, enfatiza Di Felice. Para ele, se entendermos o xamanismo como técnica, podemos acreditar que os segredos para a construção de um modelo de civilização capaz de driblar a crise ecológica possam estar guardados, não entre os escritos de expoentes como o sociólogo Theodor Adorno, mas no jeito como os Homo sapiens tecnológicos que habitam as florestas brasileiras entendem o mundo.