Sem chuvas, a rota dos açudes nordestinos traz à tona as lembranças dos “currais da seca”
POR SÉRGIO ADEODATO
Há exatos 100 anos, o sertão do Ceará foi palco de um episódio da História do Brasil que muitos preferem esquecer. Lá foram construídos “campos de concentração”, com o intuito de confinar flagelados e, assim, evitar a migração da pobreza e doenças para as capitais. No município de Senador Pompeu, no Ceará, onde funcionou um dos maiores “currais da seca”, vestígios da antiga casa de pólvora, da cadeia, do hospital e da farmácia resistem ao tempo ao lado dos trilhos e da velha estação ferroviária onde chegavam as doações para os sertanejos.
A paisagem árida expõe o que sobrou dos casarões onde impiedosos vigilantes pegavam a melhor parte da carne e davam os ossos aos retirantes, tratados como prisioneiros. Com cabeça raspada e vestes de saco e estopa, homens, mulheres e crianças dormiam ao relento, estavam proibidos de sair às ruas para pedir esmola e muitos que não resistiam e morriam eram jogados em valas comuns, porque não havia espaço no cemitério.
Na seca de 1932, tão severa quanto a de 1915, o local chegou a receber 3 mil flagelados. A última sobrevivente, Luiza Lo, falecida há cinco anos, contava: “Na madrugada, ouvíamos um barulho grande de choro e cantorias de lamento pela morte de velhos e crianças”.
Atualmente, todos os anos, no Dia de Finados, a população da cidade faz romaria em memória das pessoas que morreram por falta de comida e água naquele cárcere. A estrutura foi erguida originalmente para abrigar os engenheiros ingleses e os operários que iriam construir o Açude Patu – uma obra que parou por falta de verba e acabou concluída décadas depois.
Hoje o açude fornece água para a maior parte da cidade, mas em agosto registrava apenas 11,6% da capacidade. De litro em litro, reacende-se na memória o velho estigma que marcou a história nordestina, apesar de agora, com os avanços sociais ao longo das últimas décadas, pouca gente morrer de fome e sede. Na zona rural, o sertanejo convive com a aridez por meio das cisternas que guardam água da chuva para beber e cozinhar, mas não são suficientes para a manutenção da roça e dos animais de criação. Assim, os grandes reservatórios continuam sendo a salvação, também para o abastecimento das cidades que inflam devido ao êxodo do campo.
Mas a seca expõe a fragilidade da gestão hídrica. Em agosto, 26 açudes do Ceará já estavam completamente secos, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA).
Ao longo de um século, foram construídos quase 400 reservatórios de grande porte no Nordeste. Tamanha estrutura, somada aos açudes menores, pode acumular 30 bilhões de metros cúbicos, o equivalente ao consumo hídrico do município de São Paulo durante 50 anos. Na prática, o benefício é menor, porque nem sempre a água chega a quem precisa por defeito do bombeamento ou falta de adutoras para distribuição.
O Brasil tem o maior programa de açudagem do mundo – no passado, objeto de uso político pela chamada “indústria da seca”. O reservatório mais antigo, o Açude do Cedro, em Quixadá (CE), foi construído por ordem de dom Pedro II após a calamidade da seca entre 1877 e 1879. Em agosto, seu volume estava reduzido a 1,5% da capacidade, o que mudou a paisagem ao pé da Pedra da Galinha, cartão-postal da cidade. Do alto da cordilheira, famosa pelas histórias de assombração, praticantes de asa-delta saltam em sobrevoo pelo sertão até a divisa do Ceará com o Piauí.
O Rio Jaguaribe, com 633 quilômetros, compõe a principal rota dos açudes cearenses. Em Orós (CE), chácaras e mansões na beira da água indicam status e poder. Longe dali, moradores pobres têm na parede um pôster do Padre Cícero e outro do cantor Fagner, filho da terra e dono de uma ilha no açude. Mais adiante no Jaguaribe localiza-se o gigante Castanhão, o maior açude do Brasil, duas vezes e meia o tamanho da Baía de Guanabara.
Ao custo de R$ 600 milhões, o reservatório foi projetado para abastecer prioritariamente indústrias e população da Região Metropolitana de Fortaleza, por meio dos 55 quilômetros do Canal da Integração. O local tornou-se um vigoroso polo de piscicultura que atrai sertanejos antes dependentes da roça. Mas a água, na atual seca reduzida a 17,8% do volume total, é vigiada por seguranças armados e não chega a comunidades rurais até hoje condenadas à pobreza.