Capital baiana descobre um novo valor para as dunas que escaparam do avanço urbano
Quando se imagina Salvador (BA), vêm à tona referências como o mais que centenário Elevador Lacerda, de 1873, as baianas do acarajé, o ritmo dos afoxés, a imponência das igrejas barrocas e a Baía de Todos os Santos. Para além dos famosos ícones da “baianidade”, retratados por muitos de seus artistas, a primeira capital do Brasil esconde uma paisagem desconhecida pela maioria dos brasileiros e até dos soteropolitanos: o complexo de dunas e lagoas que resiste à especulação imobiliária como um dos últimos mananciais de restinga em perímetro urbano do País.
Com 600 hectares espremidos entre condomínios, o ecossistema do Parque das Dunas é chave para a regulação do microclima da cidade, ao reter o calor do sol. E também controla o impacto da salinidade do mar e o escoamento da água da chuva, o que leva a um menor risco de inundações. “Não é simplesmente um monte de areia sem utilidade a ser eliminado como algo inóspito”, adverte Jorge Santana, guardião da área com suas 12 lagoas perenes e espécies da fauna e flora só existentes ali. O empresário apostou no valor econômico da conservação e na estruturação do lugar para educação ambiental e pesquisa científica com trilhas, laboratórios, auditório e horto, que produz mudas nativas para uso na restauração das bordas litorâneas da capital.
Visitado por 48 mil pessoas em 2015, o parque municipal foi criado em 2008 dentro da Área de Proteção Ambiental das Lagoas e Dunas do Abaeté. O processo exigiu o pagamento de R$ 200 milhões em indenizações para construtoras que já tinham loteado o lugar para projetos imobiliários, mas desanimaram da ideia após a aprovação da lei de zoneamento urbano com normas de ocupação mais restritivas.
“Chamavam-me de maluco porque investi no apelo ambiental e na demanda acadêmica”, conta Santana, gestor da área em regime de parceria público-privada com a prefeitura. Em meados da década de 1990, o empreendedor comprou no local 150 mil metros quadrados da falida construtora Encol, com o objetivo de conservá-los. Foi o ponto de partida do movimento que culminou na proteção integral daquele patrimônio, reconhecido em 2014 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como posto avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Apesar do título, ameaças rondam por lá, como é o caso de um antigo projeto de expansão do aeroporto de Salvador, vizinho às dunas. Até o momento, o refúgio mantém-se praticamente livre da interferência humana, mesmo situado na maior cidade do litoral onde o Brasil começou a ser ocupado e explorado pelos colonizadores. Na área, reduto dos antigos Tupinambá que frequentavam a Fazenda Paramaquara (“lugar difícil de andar”, na língua indígena), foram estudadas mais de 1,3 mil espécies de animais e vegetais.
Na flora, destaca-se a canela-de-ema, curiosa planta que no clima seco entra em autocombustão (devido a uma resina existente nas folhas) para quebrar a dormência dos frutos e liberar as sementes, dispersadas pelo vento. O cacto cabeça-de-frade, por sua vez, é utilizado pelas baianas de acarajé, ao lado de seus tabuleiros, para espantar mau-olhado. “Graças às dunas ainda temos plantas para mostrar o que aprendemos com nossos pais e avós”, afirma Ulisses dos Santos, presidente da Associação Afoxé Korin Nagô.
A entidade recebeu uma área do parque para instalar um viveiro de plantas medicinais destinadas a terreiros de candomblé: do tapete-de-oxalá à espada-de-ogum, “as espécies estão ficando escassas e é necessário replantar para reduzir a dependência dos atravessadores nas feiras”, justifica Santos. O grupo iniciou o trabalho de despoluição da Lagoa do Abaeté, local sagrado das religiões afro-brasileiras, situada no entorno do parque, no bairro de Itapuã. Imortalizado por canções como A Lenda do Abaeté, de Dorival Caymmi, o manancial foi beneficiado pela retirada de 60 toneladas de lodo e lixo e agora a expectativa é de que os minadores voltem a produzir água.
As dunas são também frequentadas por evangélicos (cerca de 3 mil pessoas de 150 igrejas, por semana) que sobem o Monte Santo para orar. “O projeto é ordenar o acesso e minimizar o impacto ambiental”, explica o pastor Antônio Roque Soares, presidente do grupo evangélico Restaura Verde. Conciliar interesses e crenças é uma estratégia para tornar a restinga mais valorizada e, consequentemente, protegida.