Essa inteligente combinação de agricultura com manejo florestal faz da riqueza biológica e cultural um contraponto a visões e modelos hegemônicos de desenvolvimento
Quem acompanha as discussões sobre sustentabilidade sabe que não faltam soluções que respondam concretamente aos desafios globais evidenciados desde a Eco 92 até a COP 21. E que a nossa maior dificuldade está em desfazer os laços que provocam nossa própria destruição – formados por sistemas de poder que controlam não apenas dinâmicas políticas e econômicas, mas nossos hábitos e crenças.
Um exemplo desses laços está na monocultura intensiva e em escala com uso abusivo de pesticidas, modelo que aniquila a diversidade natural e humana, e intensifica a mudança do clima e a concentração de riquezas. No entanto, a monocultura ainda é percebida como único caminho para atender aos desafios econômicos e de segurança alimentar.
Em contraposição, proliferam pelo País movimentos que desfazem esses laços. O crescimento do consumo consciente, da alimentação orgânica e do comércio justo, por exemplo, impulsiona práticas que vão desde o agroextrativismo até a agricultura urbana. Surgem oásis de sociobiodiversidade que resistem ao modelo hegemônico e oferecem a possibilidade de sermos sustentáveis “da boca para dentro”.
Existe ainda um movimento com especial capacidade de reverter essa narrativa hegemônica: são as agroflorestas, que transformam terras arrasadas em florestas altamente diversificadas, com reconhecida eficiência produtiva, e provedoras de incontáveis benefícios sociais e ambientais.
Uma referência nesse movimento é a Fazenda Olhos d’Água, em Piraí do Norte, na Bahia, que transformou um pasto improdutivo em uma exuberante floresta com alta produtividade. O pesquisador Ernst Götsch ali desenvolveu um modo de observação direta dos ciclos da natureza, utilizando a ciência e a sabedoria prática da agricultura familiar para criar recursos, em vez de explorá-los.
Há cerca de 20 anos, estudantes de Agronomia entraram em contato com essa experiência, que rompia com alguns dos paradigmas ensinados na universidade. Perceberam que por trás daquela experiência havia uma inteligente combinação de práticas florestais e agrícolas, com princípios e técnicas que poderiam ser apropriados e difundidos.
A partir daí, cursos e mutirões agroflorestais espalharam-se pelo País e diversos produtores familiares e fazendas passaram a aderir ao sistema. Os resultados têm sido impressionantes: florestas construídas em campos devastados, com nascentes d’água rebrotando, fauna e flora convivendo harmonicamente com alta produtividade de alimentos e outros derivados. Basta “dar um google” e serão encontrados muitos vídeos e artigos sobre o tema.
A diversidade nessas agroflorestas é de altíssima intensidade: não apenas as diferentes plantas, mas os insetos, animais e fungos são incluídos como parte do sistema produtivo. Ao permitir a coexistência entre diferentes seres, chega-se em poucos anos a uma produção abundante e independente de insumos químicos e agrotóxicos.
O “grande segredo” está no manejo por meio de uma prática intensiva de podas, que são transformadas em adubo para garantir a biodiversidade no nível do solo e sua fertilidade. A simples poda intensiva transformada em adubo é a base de uma complexa teia de relações geradoras de vida. Cada agrofloresta torna-se uma expressão única da composição dos recursos naturais, humanos e de conhecimento disponíveis por seus agricultores. Nesse ambiente radicalmente diverso, até mesmo aqueles componentes que a agricultura convencional vê como vilões se tornam aliados: a braquiária é percebida como um excelente adubo; formigas sinalizam onde há solos que precisam ser mais bem tratados; e assim por diante.
Mas… e a escala? E as demandas econômicas de nosso país? Como demonstra a experiência da Fazenda da Toca, em Itirapina (SP), a produção em escala já se torna uma realidade. E novos investimentos em tecnologias apontam para um futuro promissor.
As agroflorestas oferecem vários simbolismos para compreender o que é um modo de vida mais sustentável. Demonstram como é possível encontrar maneiras de beneficiamento mútuo entre os diferentes e ensinam a depender menos de insumos externos para o nosso bem-estar. A prática das podas inspira-nos a identificar tudo que é excedente e como circular esses recursos para nutrir uma vida renovada e abundante.
Nosso modo de vida social é um reflexo direto da nossa relação com a natureza. Somente quem vê formigas e gafanhotos como vilões que precisam ser exterminados consegue colocar índios e defensores do meio ambiente na mesma categoria. Rompendo com o paradigma da escassez, o movimento das agroflorestas evidencia que todos temos a ganhar se superarmos os preconceitos entre os diferentes e soubermos tratar adequadamente aquilo que existe em excesso em nós e entre nós.
Para saber mais: agendagotsch.com
*Mestre em Prática Social Reflexiva pela London Metropolitan University