A intolerância nasce em nós quando deixamos de ver na diversidade social o potencial de gerar conflitos produtivos e de construir novos mundos
Brasileiras e brasileiros perderam a cordialidade. Talvez a reencontrem, talvez não a queiram mais, talvez esse atributo que lhes conferiram não anule o lado agressivo e reativo de quem age “pelo coração”. Seja qual for a interpretação, o fato é que “intolerância” é a palavra do momento no País. Coincidentemente ou não, a sociedade vive um momento raro de luta pelo direito de expressar seus anseios e insatisfações em praças públicas ou nas redes sociais.
Nunca tantos grupos minoritários – de raça, gênero, homoafetividade, classe, cultura, região – se organizaram ao mesmo tempo para buscar direitos e reconhecimento. Nunca tantos falaram tanto e a um só tempo. Claro, há as forças contrárias, o que é natural. E, em alguns casos, assustador.
Entre as pessoas que estão pensando o momento atual há um certo consenso de que o mais provável é que todo esse mal-estar seja fruto da emergência de movimentos que, juntos, parecem ser o florescer de uma diversidade social, racial, estética, ética, sexual que estava contida (veja reportagem à pág 42).
Na visão do professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, que acaba de lançar o livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma, pela editora Boitempo, há de fato um desafio ao estado de normalidade, ou à “normalopatia”, termo que usa para definir o excesso de adaptação ao mundo tal como ele se apresenta (acesse aqui a íntegra da entrevista).
“Parece que chegamos a uma espécie de ponto de esgotamento. De um lado, os menos privilegiados desistem da ideia de jogar o jogo e, para serem reconhecidos, partem para a insubmissão, como vimos nas passeatas e na ocupação de escolas. Do outro lado, os donos do poder não conseguem gerir acordos mínimos para distribuição e partilha do poder”, analisa Dunker.
Para explicar como nos deixamos levar para esse estado de “normalopatia”, Dunker recorre aos condomínios residenciais, o empreendimento imobiliário símbolo máximo do baixo teor de diversidade e do empobrecimento das relações sociais.
A razão de ser dos condomínios, sonho de consumo das classes ascendentes dos anos 1970 e 1980, é justamente a segregação e a exclusão. Foi lá dentro que, ao longo dos últimos 40 anos, se consolidou uma nova maneira de relação com empregados. Eles, que até então eram uma espécie de “membros da família”, passaram a vestir uniformes e tornaram-se impessoalizados e invisibilizados.
“A vida corre pacificamente dentro desses pequenos cosmos artificiais até o momento que seus habitantes têm de lidar com a problemática do retorno ao espaço público, agora em transformação”, afirma o psicanalista. É um retorno a uma diversidade a que os “condôminos” não estão mais habituados e cuja reação aparece em manifestações de agressividade no trânsito, no descontentamento com a linha de metrô que vai passar na porta de sua casa, com a ciclovia que atrapalha o fluxo dos carros, com a paisagem que vai se estragar etc.
Do ponto de vista da psicanálise, quando não se tem o equipamento simbólico, isto é, quando não se tem o entendimento de que conflitos são produtivos, a diversidade aparece como ameaça. “Faz muito tempo que estamos suprimindo a diversidade produtiva. São muitas gerações que não receberam uma educação para olhar o conflito como uma situação interessante, como um motor do processo transformativo e da invenção de outros mundos”, analisa Dunker.
O custo desse estilo de vida condominial e controlado, como mostraram os filmes Alphaville, Admirável Mundo Novo e Blade Runner [1]nas décadas de 1960 a 1980, é o extermínio daquele que seria diferente. “Cria-se numa espécie de curva de redução de diversidade, que se parece com a suspensão de um acordo provisório, e isso é um convite à violência. O condomínio, no fundo, é uma máquina de produção de intolerância a longo prazo”, conclui.
[1] Alphaville – filme francês de 1965, dirigido por Jean-Luc Godard; Admirável Mundo Novo – filme de 1980 produzido pela BBC e baseado no livro homônimo de Aldous Huxley; Blade Runner – filme de ficção científica de 1982 dirigido por Ridley Scott
A origem
O diagnóstico de Christian Dunker explica o cenário atual, principalmente das metrópoles brasileiras e das redes sociais. No entanto, sentimentos maus, como racismo, preconceito, misoginia e outras manifestações de ódio que hoje parecem mais frequentes, sempre rondaram a humanidade. Então, em um âmbito subjetivo, o que levaria um indivíduo a se sentir superior a outro? Para o professor de Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador sobre direito de minorias, Adilson José Moreira, o sentimento de superioridade tem origem nas relações de poder. Como não é possível estabelecer relações duradouras de dominação simplesmente a partir da força militar ou econômica, é preciso persuadir a sociedade de que todas as posições hierárquicas são justificáveis, corretas e adequadas.
Segundo ele, durante a maior parte da história, as religiões têm sido o principal instrumento de legitimação da dominação de uns sobre os outros. “A escravidão africana, por exemplo, foi largamente justificada com base no Cristianismo. A dominação das mulheres pelos homens também perdurou em razão de valores religiosos, tanto do Cristianismo como do Islamismo”, relata.
Ou seja, para que a estratégia de dominação prevalecesse sem grandes conflitos, foi necessário que os negros, as mulheres e outros grupos minoritários acreditassem que as regras de superioridade de uns sobre outros correspondiam à vontade divina, ou estavam inscritas na natureza.
Nos estudos sobre a origem do racismo e do preconceito, os consensos apontam para esquemas mentais que se instalam em conformidade com estímulos recebidos na vida em sociedade. “É importante deixar claro que esses esquemas mentais são processos cognitivos e não fenômenos psicológicos”, alerta o pesquisador do Mackenzie.
“As pessoas desenvolvem percepções específicas a respeito de indivíduos que possuem uma determinada característica [raça, nacionalidade, gênero, classe social etc.], em consonância com valores que circulam dentro da sociedade.” Quanto maior o poder político e econômico, maior a capacidade para criar esses sentidos sociais que permitem a construção do outro como um ser diferente. E a partir daí se desenvolvem as relações assimétricas de poder (mais em Olha Isso!)
A maioria das pessoas não está ciente o tempo todo desses esquemas mentais, ou dessas assimetrias de poder. Especialmente quando são do sexo masculino e de classe média alta. Para exemplificar, Moreira relata o caso recente de um jornalista canadense branco e bem-vestido que, de posse de toda a documentação necessária, não encontrou nenhuma resistência para cruzar a fronteira dos Estados Unidos, como era de se esperar.
Ele poderia não ter se dado conta de que recebera um tratamento privilegiado das autoridades alfandegárias, se seus colegas de trabalho, um deles negro e o outro indiano, apesar de portarem documentação idêntica para entrar naquele país, não tivessem sido retidos para uma averiguação mais detalhada. O episódio ilustra que uma pessoa que não passa por humilhações cotidianas acaba não enxergando essas relações de poder e de dominação presentes no dia a dia.
A explicação de que a intolerância também costuma ser mais aguda em sociedades em crise econômica é aceita pela psicóloga social Maria Aparecida Bento [2], integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia para o tema das relações sociais. Mulheres disputam cargos e salários em um mercado cada vez menos dominado pelos homens. Pessoas negras ascendem profissionalmente a partir de um conjunto de ações afirmativas em vigência, como as cotas raciais em universidades. “Tem um caldo bem complicado aí”, avalia.
[2] Em outubro passado a revista britânica The Economist a incluiu entre as 50 personalidades do mundo que mais defendem a diversidade
“De um lado, há o surgimento de um debate social e uma maior visibilidade dos grupos considerados diferentes em relação ao padrão [Bento usa o termo ‘padrão’ para se referir ao homem branco], como os dos negros, das feministas, dos gays e lésbicas, o que já incomoda muito. De outro, a crise econômica acirrando a intolerância para com pessoas que não são parte do cenário eurocêntrico”, afirma.
Guardadas as proporções, os ingredientes desse “caldo” remetem ao período que antecedeu o nazismo na Alemanha. “Havia uma sociedade em crise de trabalho, com péssima autoestima e o judeu surgiu como aquele ser não tão humano e que deveria desaparecer, pois roubava empregos e mexia com o dinheiro da sociedade”, descreve. E aproveita para citar Freud, contemporâneo da ascensão do regime nazista, e que também contribuiu com o tema da intolerância em sua obra Narcisismo das Pequenas Diferenças.
Ali, o psicanalista austríaco afirma que o maior desafio do ser humano será atender ao clamor “amai-vos uns aos outros” de Jesus Cristo. “A dificuldade é que as pessoas amam muito a si mesmas e ao que se parece consigo. Elas demonstram muito mais presteza em rejeitar e odiar aquele que é diferente ou que pensa diferente”, diz a psicóloga.
Nesse campo dos grandes pensadores, vale também uma passagem pela filosofia. Thomas Hobbes, em Leviatã, diz que o ser humano é naturalmente violento, vive em uma guerra de todos contra todos e só não mata um ao outro porque há uma repressão que impede. Já Rousseau estabelece que somos inclinados à bondade e à vida pacífica, mas aprendemos a roubar e a matar em decorrência da vida em sociedade, que nos ensina a maldade. E, por fim, os empíricos como John Locke vão dizer que nascemos como uma folha de papel em branco e aquilo que será escrito dependerá exclusivamente da nossa experiência.
As ideias de Maria Aparecida Bento não são aderentes a nenhuma dessas correntes filosóficas. Sobre Rousseau, por exemplo, acha equivocado o conceito de pessoa boa corrompida pela sociedade, uma vez que a sociedade é composta por nós mesmos.
Em sua opinião, é a filosofia das sociedades africanas a que mais se aproxima da realidade, pois reconhece, mesmo no campo da espiritualidade, uma dimensão boa e outra má em todas as pessoas. “Eu diria que a gente traz o bem e o mal e o processo civilizatório é justamente o fortalecimento das negociações que você faz consigo mesma para que prevaleça a ética nas relações.”
O futuro
Sobre o futuro, a psicóloga não está entre as pessoas mais otimistas. Sugere que prestemos atenção aos sinais que aparecem agora e o entendamos como a um quebra-cabeça. O filme O Ovo da Serpente [3] é um marco do cinema porque mostra que os sinais do nazismo — a justiça com as próprias mãos, a injustiça contra os estrangeiros e grupos não arianos — já estavam todos lá antes que o regime se estabelecesse, mas ninguém quis enxergar
[3] Filme de 1977 dirigido pelo sueco Ingmar Bergman
“Acho que temos muitos sinais hoje que também ninguém quer enxergar, por exemplo na maneira truculenta como a polícia age contra os jovens negros, na maneira como os meios de comunicação legitimam essas ações, nas frequentes chacinas, nos esforços pelo rearmamento… São todos sinais característicos de uma sociedade autoritária”, aponta.
Embora também demonstre indignação com o tratamento desigual conferido aos negros, Adilson Moreira é mais otimista em relação ao futuro no que diz respeito às questões raciais. Ele comemora, por exemplo, o fato de as instâncias públicas federais e locais, no âmbito legislativo, executivo e judiciário, terem abandonado de vez o discurso da democracia racial [4], atendendo a um dos objetivos do Programa Nacional de Direitos Humanos, que estabelece o objetivo da igualdade racial. Esse objetivo foi criado nos anos 1990, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que reconheceu o racismo como um problema endêmico do Brasil e deu início a implementação de ações afirmativas no setor público e universidades.
[4] Denota a ideia de uma sociedade sem racismo
Os governos seguintes, de Lula e Dilma Rousseff, deram continuidade e incentivaram o Programa e as ações afirmativas. “Várias casas legislativas municipais e estaduais, além do próprio Congresso Nacional, alcançaram um nível mínimo de justiça racial”, diz.
Moreira crê que na luta pela igualdade racial e esse cenário coloca o Brasil à frente dos EUA, que, nos últimos 40 anos, desenvolveram uma ideologia social chamada color blindness com os mesmos pressupostos da democracia racial. Hoje prevalece o conceito, inclusive na Suprema Corte, de que os EUA são um país construído e composto de minorias, entre as quais a dos italianos, a dos negros, a dos japoneses, a dos chineses etc., e que, por isso, um grupo não deve receber tratamento diferenciado.
Para Moreira, eles compararam cerca de 400 anos de escravidão e mais uns 100 de segregação às intempéries pelas quais passaram os imigrantes do país. “Creio que essa política deverá pôr fim às ações afirmativas de raça naquele país”, prevê.
Já a preocupação de Christian Dunker é com a ausência de um “futuro desejante” que nos mostre onde colocar as nossas “fichas”. Haveria no País uma carência de novos discursos, de artistas e de políticos de vanguarda para promover, como no passado, o encontro da estética com a política, com a música e com as culturas regionais. “Essa falta é apavorante!”, exclama. “Abre espaço para o pensamento conservador entrar na pauta do comportamento.”
Entretanto, não parece haver uma organização premeditada para dar voz aos movimentos conservadores. O que há, segundo Dunker, é uma escassez de novas pautas transformadoras, como nos anos 1960 e 1970, e isso engessa e polariza as discussões, além de nos impedir de inventar novos sonhos, novos horizontes de transformação. “O nosso déficit é a nossa demissão com o futuro.”
É possível que essa “demissão” seja alimentada justamente pela falta de diversidade. Afinal, quantas pessoas deixam de entrar em cena por falta de oportunidade. É uma ideia totalmente aceita, a de que a diversidade é benéfica, enriquece os processos, traz resiliência e até mesmo proporciona maior produtividade para as empresas.
Segundo a jornalista Bárbara Soalheiro, criadora da Mesa&Cadeira [6], a melhor explicação sobre por que a diversidade importa foi feita por Matt Mullenweg, criador do WordPress, uma das mais populares plataformas de publicação para blogs e sites: “Quanto mais diferenças ao seu redor, mais rápido você vai enxergar o que de fato está construindo para o mundo.
[6] Empresa criada para ajudar profissionais do mercado a resolver dilemas estratégicos
As conversas e motivações de sua empresa serão mais sobre o que importa e menos sobre o que te importa”. Para a empresária, o futuro do trabalho é distribuído. “E cheio de mórmons. E de mulheres. E de negros. E de muçulmanos…”, disse ela em texto publicado na plataforma Projeto Draft.