TERRITÓRIO
Antes separados pela cultura e pela geografia, e o rural e o urbano passam a revelar proximidade e interdependência
Cena um: Melissa Gogliath, 36 anos, posta nas redes sociais a foto de uma apetitosa cesta com tomatinhos-cereja, jilós e berinjela, junto ao texto: “cultivados na minha horta e sem nenhuma gota de veneno”. A bióloga transita entre o agito urbano de Petrolina (PE), onde trabalha, e a tranquilidade do rancho, no sertão nordestino. “Diversifiquei a alimentação natural porque estou grávida e estudos têm demonstrado que o autismo em crianças pode ser acarretado por um agrotóxico, o glifosato”.
Cena dois: Jabes Rodrigues, 22 anos, abre mão do sonhado emprego como cabeleireiro na capital e volta para a roça da família, no Assentamento Nova Canaã, em Porto Grande (AP), para ajudar no cultivo de pupunha, abacaxi e orquídeas amazônicas. “No mato, tenho tempo para concluir os estudos, o que era difícil no ritmo de trabalho da cidade grande, para onde pretendo retornar no futuro”.
Tanto Melissa quanto Jabes são personagens de um enredo que se desenvolve no País na esteira do que Arilson Favareto, professor da Universidade Federal do ABC, chama de “nova ruralidade”: “Vivemos uma mudança de paradigma sobre o que é o meio rural e suas funções para a sociedade”. Para o sociólogo, autor de tese de doutorado sobre o tema, a propriedade de terra deixou de ser vista apenas como local de produção de bens e matéria-prima. É também fonte de serviços ecossistêmicos [1], que geram benefícios à qualidade de vida para além das cercas da fazendas. Além disso, há transformações no tecido social. “A antiga figura do jeca-tatu, iletrado e com vestes esfarrapadas, praticamente não existe mais”, ilustra Favareto (mais em Reportagem).
[1] Benefícios oferecidos gratuitamente pela natureza, como fornecimento de água, fibras e alimento, equilíbrio do clima e polinização
A geração de renda não agrícola entre as famílias rurais hoje é maior. E é comum haver famílias de agricultores que moram na zona urbana – onde estão os hospitais e os supermercados – e se deslocam diariamente para o sítio. “O hábito é favorecido pela disseminação de motocicletas e a melhoria dos acessos”, diz o professor, com uma pergunta intrigante: “Essas famílias seriam consideradas rurais ou urbanas”?
Nas contagens oficiais da população, o IBGE as considera urbanas. No entanto, a questão territorial é mais complexa do que se imagina, porque campo e cidade estão cada vez mais próximos e interdependentes. Entre um e outro já não há o antigo abismo no que tange à organização da vida, cultura e uso do conhecimento. “Por isso, é preciso pensar o rural e urbano no conjunto”, enfatiza Favareto, ao lembrar outro ponto a ser considerado no novo perfil: a diversidade [2].
[2] A valorização da vida saudável, do pequeno e do diverso é uma marca da vida rural. Além da diversidade sociocultural, destaca-se a biológica, explícita com a recuperação de ambientes naturais
A situação atual é diferente de quando a modernização agrícola, impulsionada por políticas de fomento a partir das décadas de 1960 e 1970, deslocou a força de trabalho da zona rural como mão de obra barata para os núcleos industrializados do Sudeste. Hoje, analisa Favareto, “as áreas que mais se esvaziam devido ao êxodo são representadas pelos pequenos municípios de base agrícola distantes mais de duas horas das médias e grandes cidades”.
Hoje, segundo Favareto, 84% da população brasileira vive em cidades. Há 50 anos, a relação era inversa. Manter a população no campo é estratégia para conservar paisagens e modos de vida, reforçando o elo das pessoas com os ciclos naturais.
A partir da década de 1990, o número de assentamentos e de pequenos produtores se multiplicou e hoje existem cerca de 4 milhões de estabelecimentos rurais familiares no Brasil
Nesses centros maiores, por sua vez, é crescente a prática de agricultura urbana como forma de produzir o próprio alimento e ocupar espaços públicos de maneira qualificada. “As pessoas estão mais preocupadas com a alimentação e resistem às imposições da indústria”, avalia André Biazoti, coordenador da plataforma digital Cidades Comestíveis [3]. “O que vivenciamos na cidade é reflexo do que acontece no campo, como a ampliação do apoio ao pequeno produtor”, diz Biazoti, também responsável pela horta mantida nos jardins do Centro Cultural São Paulo, na movimentada Avenida 23 de Maio.
[3] O portal mapeia áreas e orienta a criação de hortas em São Paulo. Há cultivos em espaços comunitários para autoabastecimento; em quintais para comercialização em feiras; e em escolas e prédios públicos
Vista como protecionista, a política da União Europeia alicerçada em altos subsídios para povoar o tecido rural é alvo de debate na Organização Mundial do Comércio e deverá ser revista. Os EUA têm 2% da população no campo e é o maior produtor agrícola mundial
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