Por que damos um certo nome as coisas e não outro? Ao procurar a etimologia de alguns termos muito usados no campo da sustentabilidade, encontramos um mundo de significados muito além dos dicionários
“Não basta lamber palavras. É preciso romper a casca delas e ir (…) além, até os ossos, até a estrutura lá no fundo dessa massa.” A citação do filósofo João Borba, professor na Universidade Nove de Julho, foi inspirada no prólogo do livro Gargantua, em que François Rabelais descreve a prudência, a afeição e a diligência com que o cachorro rói um osso de medula em busca do tutano. A interpretação da metáfora de Rabelais coincide com o propósito desta reportagem, que é refletir sobre o uso das palavras na oralidade e na escrita, procurar a origem daquelas que são mais usadas (e às vezes abusadas) no mundo da sustentabilidade e saborear o “tutano” que há nelas.
A oralidade deu vida às palavras que, ao longo da história da humanidade, ganharam diferentes pronúncias e significados. A etimologia da palavra “escola”, por exemplo, mostra um sentido que em nada se parece com as instituições de ensino a que demos este nome. “Escola”, do grego skholê, para os helenos representava descanso, repouso, ócio, tempo livre. O pensamento, a filosofia, a reflexão exigiam contemplação e a ausência absoluta de trabalhos servis. E, se pensarmos que a palavra “negócio” significa “negação do ócio”, uma escola de negócio, do ponto de vista da Grécia Antiga, seria uma esquizofrenia. No entanto, não há etimologia nem nada que impeça uma língua viva de, por meio de seus falantes, seguir se transformando. Nem mesmo a escrita é capaz de estagná-la.
Há um entendimento de que a invenção da escrita contribuiu para tornar a palavra mais resistente a mudanças. O sociólogo italiano Massimo Di Felice, professor da Escola de Comunicações e Artes, da USP, salienta que, com a difusão da escritura, a partir de Platão e Aristóteles surge a filosofia que arquiteta conceitos e funda a ideia de “verdade”. Até então, a filosofia centrada na oralidade era baseada em uma retórica que dava ao significado um sentido polissêmico e plural. “Era a filosofia da dúvida”, observa ele. “A escrita funda um conceito definitivo e inventa a verdade.”
Embora nos pareça antiga, a escrita é praticamente uma “criança” se comparada à oralidade. Se o desenvolvimento da espécie humana tem início há cerca de 200 mil anos a escrita foi criada há menos de 10 mil, a humanidade passou pelo menos 190 mil anos apenas falando (leia mais na reportagem “De onde veio”). “Desde que foi criada, a escrita corre atrás da oralidade com o propósito de reproduzir a sua evolução tão fielmente quanto possível”, resume o diretor do Museu da Língua Portuguesa [1], Antônio Carlos Sartini, cuja entrevista é uma das que abrem esta edição de Página22.
[1] Instalado no prédio da Estação da Luz, na região central de São Paulo, atualmente em restauração por causa de um incêndio em 2015
Adriano Bechara, professor de Filosofia em escolas de Ensino Médio e Fundamental, e etimólogo diletante nas horas vagas, lembra que Platão era inimigo da escrita. Tanto que buscou uma fórmula literária que tentava resgatar a oralidade. Bechara refere-se aos diálogos platônicos. Em Fedro, o filósofo grego chega a tematizar a sua preocupação com a escrita, dizendo que esta produziria esquecimento na mente daqueles que a aprendem. “…eles não vão exercitar a memória por causa da sua confiança na escrita, que é algo exterior (éksothen), provinda de caracteres alheios, e não vão eles mesmos praticar a lembrança interior (éndothen), por si mesmos.”
Culturas que não têm escrita, ou a têm por pouco tempo, de fato possuem uma relação diferente com a memória e com a história. Alguns povos africanos fazem, ainda hoje, o que todos os povos já fizeram na Antiguidade: contam suas histórias uns aos outros. Assim como os gregos tiveram um dia a figura do aedo – poeta e cantor, responsável por transmitir conhecimento por meio de versos –, o mundo africano ainda tem a figura do griô. “É costume dizer que, quando morre um griô, é uma biblioteca que desaparece”, comenta o professor de Filosofia.
CAMISA DE FORÇA
“Quem conta um conto aumenta um ponto.” Adriano Bechara remete o dito popular à ideia de que a renovação linguística é inerente à linguagem oral. Esse “ponto”, acrescentado a uma história contada de memória, é o alimento da evolução de uma língua. Por exemplo, os fundamentos que hoje regem as grandes religiões – os 10 Mandamentos, o Velho e o Novo Testamento ou o Alcorão –, uma vez escritos, não puderam mais ser alterados. E, à medida que o tempo passa, tornam-se mais anacrônicos. “A palavra escrita fixa o tempo e põe as tradições em uma espécie de camisa de força”, explica Bechara.
Cabe aqui outro dado etimológico para mostrar como a força da oralidade está imbricada na palavra “tradição”. Se a levássemos ao pé da letra, seria correto afirmar, segundo Bechara, que “a escrita mata a tradição”. Afinal, o termo “tradição” está ligado à ideia de transmissão oral e, consequentemente, de traição. Vem do latim traditio, que significa a ação de entregar ou transmitir algo a alguém. No italiano, tradizione vem de tradere, que significa entregar ou trair. Ou melhor, ao retransmitir uma mensagem de memória, comete-se um ato de traição, seja por omissão de trechos, por adaptação da história a uma outra realidade, ou apenas por uma questão de criatividade. “Pergunte-se a um helenista quantas versões de Édipo ou de Medeia existem por aí”, sugere Adriano Bechara.
NOVAS LINGUAGENS
Ao observar e medir o movimento dos astros e do nosso planeta, Galileu Galilei, o pai da ciência moderna, descobriu um mundo totalmente diferente daquele que a humanidade experimentara até o século XVI e, para explicá-lo, precisou criar uma linguagem própria feita de fórmulas matemáticas. Massimo Di Felice crê que estamos passando por um momento muito parecido com aquele. A cultura cibernética também está mudando o mundo, mas ainda falta inventar uma fórmula semântica que nos ajude a decodificar a linguagem artificial das programações de computador. “O mapeamento do DNA, por exemplo, usou linguagem de programação feita por inteligências artificiais que nenhuma mente humana consegue alcançar”, afirma o sociólogo.
O filósofo francês Pierre Lévy, professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, tem se dedicado justamente a pesquisar essa esfera semântica capaz de tornar o Big Data [2] acessível à mente humana. Lévy está desenvolvendo um sistema semântico, que denominou Information Economy Meta-Language (IEML), por meio da qual espera criar uma interação entre a linguagem artificial de programação e a linguagem humana.
[2] Expressão inglesa que se refere à quantidade infinda de dados produzidos a todo instante no mundo
PALAVRAS ANDANTES
Também fazem parte desse Big Data as palavras tecladas que circulam na internet, principalmente em redes sociais, como Facebook e Twitter, cujas características são muito próximas às da oralidade. Di Felice as batizou de “palavras andantes”, porque, embora escritas, adquirem na internet uma velocidade quase igual à da palavra falada. Em poucos minutos um discurso escrito na web pode reverberar no mundo.
Assim como na oralidade, a “palavra andante” também não apresenta o conceito de verdade definitiva – qualquer tipo de afirmação nas redes costuma ser desdobrada em interpretações infinitas e ressignificadas. “A sensação é a de que não temos mais uma única versão sobre qualquer assunto”, reflete o sociólogo. É como se não houvesse mais o fato em si, mas apenas interações comunicativas sobre acontecimentos.”
PALAVRAS TÉCNICAS
A palavra “sustentabilidade” (criada recentemente para tratar de temas relacionados à vida com qualidade nas esferas social, ambiental, cultural e econômica para as gerações atuais e futuras), em si mesma, não é sonora nem bonita, tampouco acessível. Apesar de vir carregada de ideias altruístas, a tecnicidade dos conteúdos que compõem o tema de que ela trata pode ser um impeditivo à sua popularidade, na opinião de Bechara (leia mais no Artigo “Cuidado com a palavra!”).
A linguagem tecnocientífica que permeia o mundo da sustentabilidade é um bom artifício para facilitar o entendimento entre pessoas de diferentes culturas e línguas nos encontros globais como as convenções que buscam acordos para frear o aquecimento global. Mas, por outro, para Adriano Bechara, reforça o conceito de desindividualização do saber. Isto é, “promove um tipo de saber que permanece fora dos indivíduos, que não se experimenta”, explica. “Para ter acesso a esse saber técnico é preciso consultar os escritos.” Ao contrário destes, há saberes – como o sentido de paz, bem-estar, equilíbrio, igualdade − que também dizem respeito à sustentabilidade e já estão internalizados por todos.
Bechara diz que “o objetivo da linguagem científica é exorcizar o ‘querer dizer’, tornar a informação impermeável a interpretações. O que se lê, ou se escuta, é exatamente o que se quer dizer”. Essas tentativas de construção de linguagens universais – com muitas expressões técnicas −, para ele, empobrecem as trocas nas relações. “Ela [a linguagem técnica] pode ser mais exata, mas, por deixar muito menos espaço para a expressividade, torna-se despersonalizada. E dificilmente atrairá um grande público”, atesta.
PALAVRAS DESGASTADAS
Os brasileiros ainda não conseguiram “digerir” direito a palavra “sustentabilidade”, tampouco o adjetivo sustentável, e o termo já está esvaziando-se de sentido. José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, chegou a identificar um pleonasmo na expressão “desenvolvimento sustentável”, que dá nome ao principal documento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) – os “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”. Para ele, a expressão assume que há outro tipo de desenvolvimento possível, quando não há.
Na língua inglesa, também há sinais de que o termo sustainability atingiu um certo esgotamento. O colunista do grupo de mídia GreenBiz e ex-vice-presidente de sustentabilidade do McDonald’s, Bob Langert, questiona em artigo se não é o caso de se abandonar de vez o termo. “É uma palavra difícil, chata e técnica.” Langert procurou a opinião de profissionais renomados e acadêmicos da área de marketing e comunicação sobre a hipótese haver uma palavra mais acessível e inspiradora para substituir o termo. Há quem ache “sustentabilidade” uma ótima palavra e há quem concorde com Langert. Um dos entrevistados sugere a palavra “transparência” por considerá-la mais relacional, emocional e, portanto, capaz de chegar mais perto do consumidor final.
A sustentabilidade traz no seu rastro outras palavras que também já não fazem mais tanto sucesso quanto 10, 15 anos atrás: ecologia, progresso, responsabilidade social, verde, meio ambiente e paisagem são algumas delas. Tal desgaste pode ser resultado de um uso estereotipado dos termos: por exemplo, para rotular produtos, empresas, políticas etc., dando-lhes a aparência de ecologicamente corretos. “O rótulo legitima, agrada e vende”, diz Adriano Bechara. “Mas a superexposição esvazia de valor as palavras.”
Para o professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas (Unicamp), Sirio Possenti, esse chamado “desgaste” das palavras está associado a mudanças sociais ou de narrativas. Podem cansar os ouvidos mais ou menos, conforme haja mais ou menos razões para que sejamos sustentáveis. “A aventura das palavras depende um pouco de eventos. Se há uma cúpula tratando da questão do clima ou um grande desastre ambiental, como o de Mariana, é evidente que palavras associadas à questão ganham musculatura e seu emprego cresce bastante.”
BUZZWORDS
No campo das palavras, uma novidade tem um atrativo impressionante.
As palavras desgastadas de amanhã estão, hoje, inseridas em uma categoria mais conhecida pelo termo em inglês buzzwords [3]. São expressões da moda, frequentemente derivadas de termos técnicos, que se tornam muito popular por um período de tempo.
[3] Literalmente o termo significa “palavras barulhentas”, e traz o sentido de poluição sonora embutido
As buzzwords da vez são as que trazem o prefixo “co” seguido de um hífen: “coparticipação”, “cocriação”, “cosseleção”, “colab”, “co-house”, “coworking” e até “codeputado”. Além dessas, também não tem havido parcimônia no uso de “narrativa”, “empoderamento”, “compartilhar”, “construção conjunta”, “horizontal”, “rede”, “resiliência”, “economia circular”, “processo participativo”, “transparência” etc.
“Algumas dessas buzzwords podem durar mais do que outras por estarem ligadas a movimentos sociais mais duradouros”, afirma Possenti. É o caso de “narrativa”, palavra “de estirpe nobre, que tem a ver com um movimento dito pós-moderno, que nega as grandes narrativas históricas como as do racionalismo e do socialismo”.
Ainda para o linguista, nada indica também que o termo “empoderamento”, empregado em relação a novas demandas ou conquistas das mulheres, será abandonado tão cedo. “É um movimento social forte”, analisa ele. “Rede” também deve durar, pois se trata de uma poderosa metáfora associada à internet, que se aplica a muitos outros domínios. A palavra “transparência” também tem sólidos movimentos sociais que a sustentam, mesmo que seja apenas uma jogada publicitária, como é, frequentemente, “sustentabilidade”. Todas essas são palavras que, a despeito de seu ar de moda, tendem a durar mais ou, pelo menos, a circular por espaços mais amplos do que coworking, cohouse,– “estas são modismos!”, avalia Possenti.
EUFEMISMOS
O emprego dos eufemismos é uma forma de não chamar as coisas por seu nome adequado ou verdadeiro. De acordo com o professor da Unicamp, a estratégia visa a diminuição do impacto de certas palavras. Por exemplo, parece natural que “morrer” seja uma palavra fortemente negativa, e que “falecer” ou “passar desta para a melhor” pareçam formas menos brutais. “Mas por que “morrer” é brutal?”, indaga o linguista. “Palavras acabam tendo conotações negativas ou positivas por causa de suas condições de emprego, não por seus sons ou sílabas”, explica. “Se algumas têm carga negativa e se a sociedade se dá conta de que é razoável mudar certas maneiras de ver as coisas, um dos alvos serão as palavras.”
Por exemplo, se a palavra “velho” for marcada negativamente, uma estratégia é deixar de empregar a palavra e substituí-la por uma expressão que pareça marcada positivamente. Por isso se diz “melhor idade” em vez de “velho”, “soropositivo” em vez de “aidético”, “colaborador” em vez de “empregado”. Pegue-se este último caso, a palavra “colaborador” indicaria que não há uma relação de exploração, mas de parceria, embora o salário continue o mesmo.
O fenômeno também afeta áreas sensíveis de uma sociedade – em vez de “favela” se diz “comunidade” – ou de uma empresa – nos anos 1980, as indústrias químicas investiram em uma estratégia de comunicação com o objetivo de que a imprensa substituísse a palavra “agrotóxico” pela expressão “defensivo agrícola”.
Outro espaço importante do funcionamento dos eufemismos, segundo Possenti, é o de discursos político-ideológicos que pregam necessidades de mudanças que afetarão parte da população. No atual momento político brasileiro, por exemplo, ninguém se atreve a dizer coisas como “diminuir direitos”. Usa-se “adequar” ou “reavaliar”. A palavra “flexibilizar” é outro exemplo de eufemismo citado pelo linguista. Muitas vezes ligada à legislação trabalhista, nunca significou “aumentar”, sempre significou “diminuir”.
O então presidente dos Estados Unidos George Bush, nos anos 2000, também apelou para um eufemismo que substituísse o termo “aquecimento global” por ter um tom alarmista. Consultores da Casa Branca apontavam uma vulnerabilidade do governo na área ambiental. Como mostra esta reportagem, o correspondente do jornal The Guardian, em Washington, Oliver Burkeman, teve acesso a um memorando que sugeria que Bush instasse seus apoiadores a enfatizar a falta de consenso científico sobre os perigos dos gases de efeito estufa, e que em lugar de “aquecimento global” usasse apenas “mudança climática”.
PRECONCEITO LINGUÍSTICO
A estudante de arquitetura e urbanismo e ativista feminista Stephanie Ribeiro, de 22 anos, escreveu um texto bastante compartilhado nas redes sociais da internet abordando a sua experiência com o preconceito linguístico nas escolas e nas redes sociais. “Assim como muitas pessoas eu estudei em escolas públicas a vida toda. Ingressei na universidade, nunca fui distante dos livros, como agora também não sou. Porém, me faltou uma base… E isso não me faz ignorante, muito menos inapta para compartilhar minhas opiniões, mesmo que as vírgulas estejam no lugar errado.”
No livro Preconceito Linguístico, o que é, como se faz, o autor Marcos Bagno alerta que não é apenas preconceituoso achar que pessoas que pronunciam Craudia, broco ou chicrete sejam ignorantes. É um erro. E uma sondagem etimológica sustenta seu argumento de que a troca do “l” pelo “r” é um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão: branco vem do germânico blank; o mesmo para prata, que vem do provençal plata; ou ainda praga, do latim plaga, entre várias outras referências.
POLÍTICAMENTE (IN)CORRETO
Uma questão que se tornou bem sensível, nos últimos anos, é a do politicamente correto. Diversos campos são afetados, mas, para Sirio Possenti, mais que qualquer outro, o das línguas, e em especial, as palavras. Como as palavras assumem determinadas conotações e portam uma certa memória, tornam-se elementos relevantes em lutas político-ideológicas. “Assiste-se, então, a tentativas de fazer com que certas palavras deixem de ser empregadas por um lado, e para que outras palavras ou expressões descritivas sejam empregadas em seu lugar. Bons exemplos dessa luta é para evitar ‘preto’ e ‘veado’ para, em seu lugar, dizer ‘negro’ ou ‘afrodescendente’ e ‘homossexual’.”
No entanto, se essa luta pelas palavras certas for bem-sucedida, mas não houver nenhuma mudança de atitude, em pouco tempo as formas novas terão a carga negativa das velhas. “Pertencer ao grupo da terceira idade ou da melhor idade pode despertar atitudes negativas por diversas razões, até como efeito de certos privilégios nas filas”, observa.
É preciso atenção também quando a questão é a memória que certas palavras portam. “Denegrir” é uma palavra ainda associada à memória de atribuir uma avaliação negativa de negros; “judiar” está associada à memória de atribuir maldade aos judeus; além de “febre amarela”, ou de “sair à francesa”. Para o linguista seria interessante verificar quem são as pessoas que se queixam de que essas teses diminuem a liberdade de expressão. “Eu aposto que são, em esmagadora maioria, homens, brancos, jovens e heterossexuais. Ou seja, gente que não sente na pele o efeito da discriminação”.
PEGANDO PELA RAIZ
O glossário a seguir, feito com a colaboração do professor de Filosofia de Ensino Fundamental e Médio Adriano Bechara, traz algumas palavras usadas comumente no contexto da sustentabilidade. Ele deixou claro que a etimologia está aberta a diversas interpretações. “Não se trata de uma ciência, mas de um exercício de reflexão.”
Capital vem de capite (“cabeça” em latim). A cabeça é supostamente a parte mais importante do corpo. É a origem, é a fonte, a líder, a coroa. A cabeça é que comanda, mas não é quem sustenta. O que sustenta está embaixo, são os pés.
Clima vem de uma palavra grega tardia com o significado de inclinação, algo com um caráter tendencial. Não se sabe em que momento da História a palavra passou a ser usada para designar o conjunto de fenômenos que chamamos de “clima”.
Consumo tem um significado que é o sumere (apoderar-se ou gastar em latim) mais o con (junto com). Fica a ideia de que o “consumir” implica se unir a outras pessoas e partilhar algo com elas. Traz a ideia de excesso, o que exige a presença do outro para que se distribua melhor.
Desejo vem do latim desiderium – des-siderium. Sidera são os astros e estrelas. Desiderare é perder as estrelas. Significa, portanto, desorientar-se. Porque é pelos astros que o homem se guia quando viaja. Fica implícito que o desejo é desorientador.
Discurso vem do latim discursus e significa a interrupção de um curso. A ideia é de que ao falar se estabelece um curso. Quando se constrói um discurso, ele possui unidades que são as palavras. Cada palavra é uma unidade de sentido. Então, o pensamento que seria essa coisa fruída ao virar uma frase é transformado em unidades de palavras. Cada uma delas implica uma interrupção.
Impacto é uma palavra composta: pacto é o particípio do verbo pingere, que significa fixar alguma coisa, firmar. Impacto significa, portanto, firmar algo dentro de.
Mercado tem como raiz mercês, a mesma da palavra francesa mercy (obrigado). Significa que a transação foi gratuita (em espanhol, obrigado é gracias). Isso pode querer dizer que o comércio originalmente é uma troca de dons.
Mudança: uma possibilidade é que a origem desta palavra seja movere, ou mutare, do latim. Tem uma ideia de movimento que é importante no vocabulário filosófico. Como no mundo antigo há um apreço pelo imutável, parece que a metáfora inicial para a palavra era a de algo negativo, como se toda mudança fosse para pior.
Narrativa, originalmente, teria um “g” na frente: gnarrare. Tem a mesma etimologia de gnoses, conhecer. Associa o ato de conhecer com o de construir uma fala, um texto (texto vem do tecer e não é por acaso que texto e têxtil são semelhantes). Narrativa, em última instância, significa tecer com palavras.
Natureza vem do verbo natus, nascer em latim. Ao pé da letra, só é natural o que nasce, ou natureza é o conjunto das coisas nascidas. Em grego natureza é physis, nome que deu origem à física.
Poluição é composta do prefixo em latim pro e de luire, que significa lavar. O ato de lavar suja a água.
Sustentabilidade contém o sus, que no latim é sub e significa “pegar por baixo”. Sustenere é o que segura algo por baixo. Sustentabilidade tem a ver com a constituição dos alicerces. Os franceses usam durabilité e os alemães nachhaltigkeit, cujo sentido – alguém ser capaz de continuar segurando aquilo depois – traz a ideia de longo prazo.