Na floresta ou na metrópole, a preocupação com a falta de saneamento vem depois de saúde, segurança, drogas, educação e transporte coletivo. O pano de fundo dos contrastes e desafios é o modo complexo como o ser humano se relaciona com os seus restos
Na comunidade Jardim Canaã, em Itaquaquecetuba, Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), os moradores têm wi-fi, TV por assinatura e geladeira duplex na cozinha, mas não rede de esgoto. “Uma judiação, porque temos água boa no poço ao lado de casa”, lamenta Maria Araújo, ao mostrar o cano que lança dejetos diretamente no riacho, na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. No alto do morro, a maioria cavou fossa, mas o que sai das pias e chuveiros escorre pelas ladeiras de barro.
“A pavimentação das ruas é mais importante”, diz Francisco das Chagas Souza, piauiense que migrou com a família em busca de dias melhores, deixando para trás a dureza da roça em Esperantina (PI), onde “o banheiro era o pé de umbuzeiro”. Até hoje, na nova morada, o mestre de obras espera o saneamento e aceita pagar pelo serviço: “Deve ser mais barato do que o feijão, que está R$ 15 o saco de cinco quilos”.
O hábito é enterrar ou afastar a sujeira. Para a água, deu-se um jeito: fazer “gato” [1] na rede de distribuição. Mas na casa de Eliana Rocha a fonte é a chuva que cai do telhado e escoa para encher garrafas plásticas, usadas para tomar banho, lavar louça e irrigar o pomar de banana, abacaxi, amora, limão e até café, mantido no apertado quintal. “Os políticos não se mexem, porque a maioria dos moradores veio de longe e não vota no município”, explica Rocha, liderança local dedicada a conseguir melhorias para a área, de ocupação irregular, onde vivem cerca de 3 mil pessoas. “Muita gente está fugindo do aluguel e construindo puxadinhos por aqui.”
[1] As áreas irregulares representam perda de R$ 308 milhões por ano em faturamento devido a ligações clandestinas de água na Região Metropolitana de São Paulo
Muito longe dali, a mais de 3 mil quilômetros, a agente de saúde Meire Ramos mobiliza os ribeirinhos do povoado de Cambará, em Iranduba (AM), para a mudança de costumes após descobrir que surtos de diarreia estavam relacionados à falta de higiene. Na zona rural da Amazônia, os banheiros [2], quando existem, funcionam em casinhas de madeira no fundo dos quintais, onde fica a fossa. “Mas aqui era tudo a céu aberto”, conta Ramos, integrante do programa Primeira Infância Ribeirinha, da Fundação Amazonas Sustentável (FAS). Após orientar as famílias nas visitas para atenção à saúde e promover mutirões de limpeza na comunidade, às margens do Rio Negro, “criou-se uma nova cultura”.
[2] Apenas 11% das 9,3 mil famílias ribeirinhas beneficiadas por programas da FAS têm banheiro
“A defesa da qualidade de água deve estar no cotidiano dos jovens”, recomenda Gina Leite, integrante da Associação Ecologia Digital. Com apoio das comunidades, a ONG instalou sensores para medir contaminantes nos sistemas de abastecimento na região de Santarém (PA), no Rio Tapajós. Ela afirma: “Nesses locais, o esgoto está no dia a dia; não é invisível como nos grandes centros, e por isso as pessoas crescem achando normal”. Além do mais, a cultura da abundância, na maior bacia hidrográfica do planeta, faz imaginar: que mal faria o esgoto de poucos diante de tamanha fartura de água?
Floresta Amazônica e Região Metropolitana de São Paulo. Dois cenários econômicos, duas realidades de vida e um desafio comum: mudar o jeito de lidar com o esgoto. Na porção mais populosa do País, Itaquaquecetuba – “lugar abundante de taquaras (bambus) cortantes como facas”, em tupi-guarani – ilustra o tamanho do problema. O município concentra parte das áreas irregulares [3] ocupadas por 11% da população da metrópole. São, ao todo, 2,1 milhões de habitantes que vivem na RMSP e despejam esgoto no ambiente, porque não possuem rede coletora.
[3] Segundo dados do IBGE de 2010, no Brasil há 6,2 mil aglomerados urbanos irregulares, com 11,4 milhões de habitantes, grande parte sem acesso a serviços básicos
Mas o problema é maior: mesmo considerando o volume coletado em todos os bairros da capital e nos municípios do entorno, inclusive os de classe média-alta, quase metade (44%) é descartada sem passar por estações de tratamento. “O cidadão paga taxa de esgoto apenas para afastá-lo, ou seja, para poluir e não para tratar”, ressalta Edna Cardoso, líder de projetos sociais do Instituto Trata Brasil, completando: “falta informação e conscientização sobre direitos”.
O esgoto é o sexto motivo de preocupação dos brasileiros, atrás de saúde, segurança, drogas, educação e transporte coletivo, de acordo com pesquisa do Ibope realizada em 2012. Um terço diz que os dejetos de suas casas vão direto para o rio e 70% relacionam a questão com doenças. Além disso, lidar com a sujeira é um tabu: 72% dos entrevistados afirmam não conversar com vizinhos sobre problemas de saneamento.
Na Região Norte [4], a situação é pior. Em Manaus, os igarapés registram alto nível de contaminação, tanto em bairros ricos como em bolsões de pobreza, ocupados pelo êxodo da floresta. Também pequenas cidades e até comunidades indígenas convivem com o risco. “A falta de energia é um agravante, pois dificulta a captação da água do rio para tratamento nos reservatórios”, explica o pesquisador Roland Vetter, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que desenvolveu um sistema de purificação [5] mediante luz ultravioleta, movido à energia solar. A demanda partiu das próprias comunidades, depois que 11 índios da aldeia Morada Nova, no Rio Juruá, morreram devido à poluição das águas do igarapé.
[4] Apenas 7,9% da população tem coleta de esgoto e, desse volume, só 14,3% é tratado, segundo o Ministério das Cidades
[5] A tecnologia foi transferida para uma empresa de Manaus e hoje funciona em 30 comunidades do Amazonas, Rondônia, Acre e Pará
A chegada de grandes obras à Amazônia, com condicionantes para o licenciamento, tem mobilizado ambientalistas, pesquisadores, prefeituras e lideranças locais para o debate sobre o esgoto. Em Altamira (PA), onde foi construída a Hidrelétrica de Belo Monte, não foi diferente. “O principal desafio estava no engajamento da população para fazer a ligação das casas com a rede coletora construída pela empresa”, aponta Leticia Arthuzo, pesquisadora do programa de Desenvolvimento Local, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (FGVces). Com previsão de abranger inicialmente 16 mil residências cujos dejetos eram lançados no Rio Xingu, a obra desencadeou um processo de discussão sobre os benefícios e os custos da novidade para a população. “Não é necessário somente avisar os moradores sobre a obra, mas criar espaço participativo para que sejam ouvidos”, completa Arthuzo.
Raízes culturais
O pano de fundo por trás dos contrastes e desafios é o modo como a complexidade do inconsciente humano se relaciona com os restos, as sobras, aquilo a ser varrido para debaixo do tapete, escondido no subterrâneo ou despachado longe para a natureza resolver. “Temos grande dificuldade em mexer com dejetos, devido ao padrão mental que os associa ao mal, ao efêmero, à decomposição, à morte”, analisa Emílio Eigenheer, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tecnologias, aplicadas por países de mais recursos, destinam-se a “fazer com que a coisa desapareça dos olhos”.
Autor do livro Lixo, Vanitas e Morte e articulador da primeira iniciativa brasileira de coleta seletiva [7], o professor é enfático: “afastar-se do mau cheiro e da putrefação faz parte da natureza humana, embora a contaminação seja inerente à vida; no momento em que há vida, existe o espreitar da morte”.
[7] A primeira coleta seletiva correu em 1985, no bairro de São Francisco, em Niterói (RJ)
Por que as cidades não promovem a coleta e a compostagem dos resíduos orgânicos para virar adubo ou energia na mesma intensidade com que reciclam o “lixo seco”, menos “sujo”? Contradições higienistas marcam a sociedade de consumo: pessoas usam canudinho embalado por plástico para evitar contaminação e ao mesmo tempo não se importam com o esgoto – desde que vá para longe. O prejudicado é o outro. Por isso, a relação com os detritos é também uma questão ética. E evoca o debate sobre o espaço público e o privado.
“O estilo de vida utilitarista exacerba o problema, que tem raízes culturais”, avalia Jorge Valadares, pesquisador aposentado da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro. Quando uma criança usa pela primeira vez o pinico, “fica feliz e orgulhosa pelo que produziu”. Em síntese, conclui o engenheiro sanitarista, repetindo o criador da psicanálise, Sigmund Freud: “O nojo e a vergonha são sentimentos criados pelas leis que dão limites ao homem”.
Isso se reflete, por exemplo, na grande disparidade entre o modo de ver a água em relação ao esgoto, embora ambos sejam indissociáveis. Para Leandro Luiz Giatti, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, “a melhoria dos indicadores de saúde, como a redução da mortalidade infantil, e o desinteresse da academia pelo saneamento básico, porque o tema não rende produção científica e não atrai verbas para pesquisa, influenciam a questão”. Pessoas lutam mais por praça do que por rio limpo: “Uma pena, porque cidades mais saudáveis, com menos poluição hídrica, atraem mais investimentos” (leia mais nesta reportagem sobre a relação dos brasileiros com os rios).