Obras de desenvolvimento acendem o debate sobre a restauração da paisagem com viés social na Caatinga
Esta é a quinta de uma série de reportagens sobre restauração florestal, em parceria de Página22 com o projeto MapBiomas. Leia aqui a primeira, a segunda, a terceira e a quarta.
Na estrada de acesso ao Baixão das Andorinhas, um dos vales mais espetaculares da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, sertão do Piauí, um pequeno viveiro com mudas de espécies como angico, aroeira e pau d’árco simboliza o desafio de frear a destruição e recuperar pelo menos em parte os estragos causados à Caatinga [1] – bioma de características únicas no mundo, intensamente exposto à pressão do desmatamento.
[1] Ocupa 844 mil quilômetros quadrados, 11% do território nacional, abrigando rica biodiversidade e 27 milhões de pessoas, a maioria dependente dos recursos do bioma para sobreviver
Rota para paredões com pinturas rupestres que retratam a vida dos primeiros homens americanos na exuberante floresta que lá existia há milhares de anos, o local é estratégico: abriga atividades de educação ambiental, na expectativa de que as novas gerações olhem para a vegetação típica do semiárido como oportunidade e não empecilho a conquistas econômicas. “É urgente semear a ideia de que é possível reverter a cultura da degradação, causada muitas vezes pela necessidade de sobrevivência”, adverte Melissa Gogliath, diretora-científica do Instituto Ecológico Caatinga (IEC), responsável pelo viveiro Mata Branca.
“Estigmatizado pela pobreza, o bioma é explorado à exaustão e sempre teve sua importância ambiental relegada a um segundo plano, o que coloca em risco a existência dos recursos no futuro”, completa a bióloga. Com cerca de 40 espécies nativas, a estufa, apesar de modesta diante da escala da degradação da Caatinga, integra o esforço vindo de várias partes para o recobrimento da paisagem. Não à toa, o local foi procurado recentemente por técnicos em busca de auxílio para o plantio de árvores como compensação pelos impactos da ferrovia Transnordestina [2], conforme estabelecido no licenciamento da obra.
[2] Inacabada após dez anos de obra, a ferrovia terá 1,7 mi quilômetros ligando o interior do Piauí a portos no Ceará e Pernambuco
O plano é restaurar 220 hectares em local degradado por fogo no Parque Nacional Serra da Capivara. Mas não tem sido uma tarefa fácil. Devido à falta de conhecimento científico e ao plantio na época e em local inadequados, os primeiros resultados foram insatisfatórios. Na área piloto de 10 hectares, mais de 90% das plantas morreram e a empresa que presta o serviço se viu obrigada a investir em caixas d’água abastecidas por carros-pipa e em longas mangueiras para a irrigação das mudas em meio à aridez.
“Além disso, cada planta precisou ser protegida por cerca de galhos, para evitar o ataque de roedores, como os mocós”, afirma Tiago de Andrade, analista ambiental do projeto. É difícil obter as sementes, plantadas no viveiro instalado na antiga casa de farinha no Assentamento Nova Jerusalém, com mão de obra local. José Crisóstomo Pereira, mateiro habituado ao sertão, é o encarregado da produção: “vamos acelerar o trabalho”. A meta é cultivar nesta etapa 8,3 mil mudas, entre canelas-de-velho, juazeiros e outras tantas, mas o êxito é incerto; dependerá dos métodos aplicados e de como a natureza reagirá à intervenção.
A exemplo da ferrovia, novas demandas para o retorno da vegetação perdida surgem no rastro de projetos de desenvolvimento. É o caso da Transposição do Rio São Francisco [3], que precisará repor 2 mil hectares com árvores ao longo dos dois eixos de canais projetados para levar água até regiões secas do Nordeste. A recuperação deverá começar neste ano com recursos de R$ 4,6 milhões do Ministério da Integração Nacional, a partir do mapeamento de 668 áreas prioritárias para as duas fases iniciais (1,3 mil hectares).
[3] Prevista para terminar em 2017, a obra precisará compensar a derrubada da vegetação ao longo dos canais em uma faixa de 280 Km²
É o maior esforço de recuperação já planejado na Caatinga. Para evitar erros e a perda de plantas, os pesquisadores fizeram testes para identificar as espécies mais propícias, existentes em toda a região cortada pelos canais da transposição, o que facilitaria a coleta de sementes na escala necessária à restauração. De uma lista contendo 70 espécies, três plantas rasteiras foram selecionadas para o início do trabalho: o mata-pasto, a erva-de-touro e a Raphiodon, capazes de cobrir o solo e posteriormente favorecer o crescimento das árvores. “Foi preciso criar um sistema de alta escala, barato e eficiente, com base em diferentes modelos de plantio, conforme as condições das áreas”, explica Renato Garcia, diretor do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema), que funciona no campus da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina (PE).
Naquela paisagem árida, o prédio foi projetado no formato dos “boqueirões” [4] da Caatinga para aproveitar a brisa e evitar o uso de ar condicionado. Abriga laboratórios e coleção botânica com plantas coletadas antes do desmatamento necessário à abertura dos canais da transposição. Além de melhorar o conhecimento sobre o bioma, pretende-se desenvolver redes de sementes com viveiros que futuramente poderão suprir a demanda legal por restauração após o registro das propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
[4] Vales e grotões de clima ameno que concentram samambaias, palmeiras e outras espécies de florestas úmidas
Na obra dos canais, conforme o plano aprovado pelo Ibama como condição para o licenciamento, não há ambição de tornar o ambiente igual como antes, mas sim de recuperar minimamente a vegetação de modo que os solos não fiquem expostos e prejudiquem rios e riachos. Diante dos impactos já sofridos, diz Garcia, “retomar o estado original é algo ilusório”.
Mas há quem pretenda ir mais longe, buscando viabilizar o retorno das condições ecológicas. Também no campus da Univasf, “jardins” criados na área entre as rotatórias de acesso aos prédios constituem experimentos científicos que corrigem mitos e lançam novas luzes sobre como restaurar – e devolver a vida – ao bioma. “Estamos ainda engatinhando no objetivo, porque há uma lacuna histórica de conhecimento sobre a Caatinga e devido às suas peculiaridades biológicas não é possível importar modelos de outras regiões”, aponta José Alves de Siqueira Filho, diretor do Centro de Referência para a Recuperação de Áreas Degradadas (CRAD).
Para o pesquisador, a “anemia intelectual” gera crenças e preconceitos: “é errada a visão de que a Caatinga é forte como o sertanejo porque basta chover para rebrotar”. Na verdade, diz o botânico, o semiárido abriga os ecossistemas mais frágeis do País e a questão não está propriamente na resistência, mas sim na resiliência; na capacidade de adaptação às condições naturais adversas, principalmente as relacionadas ao solo, clima e à disponibilidade de água. E a artimanha da natureza em se recuperar não significa uma permissão para desmatar.
Dessa forma, um dos segredos da restauração está em entender as nuances do bioma e criar mecanismos facilitadores e de coexistência entre as diferentes espécies da flora. “Em vez de separar plantas, como nos métodos de restauração da Mata Atlântica, aqui a lógica é juntá-las e irrigá-las”, explica Alves, ao lembrar que a “cova”, o buraco na terra onde as mudas são plantadas, na verdade é um “berço”, como numa maternidade.
O conceito inspira o que o pesquisador chama de “bomba de biodiversidade”, em que mudas de três a cinco espécies de diferentes famílias, e mais algumas sementes, formam um mix em cada ponto de plantio, irrigado a cada três dias por “mamadeiras” de água, na forma de garrafas PET. As espécies pioneiras [5], ou seja, aquelas que primeiro crescem na mata em regeneração, atuam como “plantas enfermeiras”: cuidam e facilitam o processo para que as árvores maiores de lento crescimento e mais lenhosas tenham condições de se desenvolver. Quanto mais diversas forem as facilitadoras, maior será depois o número de “espécies clímax” de maior porte, importantes para o retorno da fauna, atração de polinizadores e recuperação da funcionalidade da Caatinga.
[5] Entre elas, a faveleira e a catingueira, que formam o extrato vegetal do solo e funcionam como um forro, amenizando a ensolação e favorecendo o acúmulo da umidade
No terreno à frente, áreas experimentais estudadas há seis anos se destinam a saber se é possível ou não recuperar um deserto. “O desafio da restauração caminha lado a lado com o do desenvolvimento sustentável”, afirma Alves, para quem o esforço significa a “última cartada para evitar a desertificação e manter a biodiversidade da Caatinga – por isso não poderemos errar”. Apesar disso, o CRAD, que desde 2005 conserva um herbário com 23 mil amostras de plantas, sofre com a descontinuidade de políticas públicas e com os cortes de verba do Ministério do Meio Ambiente, seu atual mantenedor. O número de funcionários caiu de 50 para seis.
Sem o devido conhecimento científico, o risco aumenta à medida que o bioma vem sendo explorado para abastecer com lenha casas e indústrias de vários setores, alimentar animais de criação e abrir espaço à fronteira agrícola. Levantamento inédito recém-concluído pelo projeto MapBiomas [6] chegou a uma preocupante constatação: em 2015, a cobertura florestal da Caatinga – sem contar a vegetação campestre – estava reduzida a 23,3% da original. Em 2008, restavam 31,1%. “Pelo que se vê, o desmatamento tem sido muito maior do que o imaginado a partir de mapeamentos anteriores do governo”, analisa o professor Washington Franca-Rocha, da Universidade Estadual de Feira de Santana, integrante do projeto. O ritmo da remoção de cobertura florestal, calculado antes em 0,5% na média anual, cresce na verdade a uma taxa anual de 1%, conforme o último monitoramento. “Estamos refinando os dados e ampliando a lente para chegar a novas descobertas”.
[6] Projeto que mapeia as mudanças da cobertura do solo com a finalidade de entender a relação entre uso da terra e emissões de carbono
Como menos de 2% do bioma está protegido em Unidades de Conservação, estima-se que parte expressiva do patrimônio natural pode ser perdida antes mesmo de conhecida pela ciência. O Ministério do Meio Ambiente reconhece a carência de marcos regulatórios, ações e investimentos na sua proteção e uso sustentável. Grande parte dos remanescentes está susceptível à exploração, muitas vezes ilegal ou autorizada pelos órgãos ambientais sem fiscalização e regras para a redução de impactos.
Para reduzir a pressão econômica sobre a mata nativa, o pesquisador Marcos Drumond, da Embrapa Semiárido, propõe a plantação de florestas energéticas de eucalipto, que segundo ele cresce cinco vezes mais rápido em relação à media das espécies do bioma e seria viável em locais mais úmidos da Caatinga, como a borda da Chapada do Araripe, divisa de Pernambuco com o Ceará. Lá um dos maiores polos gesseiros do País consome intensamente madeira nativa para queima nos fornos, ao custo da derrubada do equivalente a 25 campos de futebol de vegetação por dia. Para o pesquisador, “seria necessário esperar pelo menos mais dez anos para entender como a mata nativa se recuperará, com base nos experimentos atuais, mas certamente jamais voltará como a original”.
O tema é polêmico no meio acadêmico e ambientalista – e serve para se refletir sobre o sucesso da restauração florestal e seus objetivos, naquela peculiar região brasileira. “Aqui a dinâmica de uso tradicional do solo é diferente e as áreas exploradas por atividades de manejo para lenha têm recuperação rápida, em torno de dez anos”, defende Frans Pareyn, diretor executivo da Associação Plantas do Nordeste [7]. Com uma ressalva: “o objetivo, neste caso, é recuperar o estoque de biomassa florestal e não a biodiversidade ou a função ecológica, porque estamos falando de áreas de produção e não de conservação”
[7] A ONG compõe a Rede de Manejo Florestal da Caatinga e acompanha os resultados do manejo da mata em 12 áreas comunitárias no Nordeste, no total de 85 hectares de pesquisa
Hoje existem na Caatinga 500 mil hectares sob manejo comercial, autorizado pelos órgãos ambientais na última década. Para o atendimento de toda a demanda de lenha, seriam necessários entre 2,5 milhões e 3,5 milhões de hectares (4% do bioma). Para Pareyn, antes de se propor a restauração deve-se evitar o desmatamento e a degradação – condição extrema em que a mata já não consegue se recuperar sozinha, necessitando intervenção humana. E isso, segundo Pareyn, só acontece se houver sistemas sustentáveis de produção, tanto de lenha quanto de pecuária e caprinocultura.
De fato, o bode é um voraz vilão da recuperação vegetal da Caatinga, embora também vacas, bois, carneiros e ovelhas – sem falar dos jumentos – criados extensivamente comam as plantas e não levem a culpa. “O sobrepastoreio é resultado da pressão social sobre o tamanho da terra, insuficiente para produzir”, adverte Diego de Oliveira, agrônomo do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada, em Juazeiro (BA), dedicado ao trabalho de assistência às chamadas comunidades de fundo de pasto [8]. Na Bahia, existem pelo menos 500 que vivem em áreas devolutas e reivindicam a regularização fundiária porque estão pressionadas pela mineração, parques eólicos e grilagem de terras. Além de orientação para uso do potencial forrageiro e respeito à capacidade de suporte da Caatinga para o dimensionamento do tamanho dos rebanhos, as comunidades fazem o que chamam de “recatingamento” – o plantio de mudas cultivadas em viveiros locais.
[8] Reconhecidas na Bahia como comunidades tradicionais pela Lei Estadual 12.910/2013, preservam manifestações culturais e o modo de viver típico do povo catingueiro, com uso coletivo da terra
Soma-se ao cenário um outro desafio: o risco climático. “O semiárido brasileiro, o mais populoso do mundo, está listado entre as regiões mais afetadas pelos impactos do aquecimento global”, diz Marina Souza Dias Guyot, pesquisadora do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA/USP), em Piracicaba. Ela mapeia o modo como o sertanejo já lida com as condições adversas de clima, reunindo experiências e aprendizados para construir indicadores e replicar práticas. Além do fator humano, as plantas da Caatinga, resilientes como elas só, têm muito a ensinar.