Se pudesse falar, o que um par de chinelos que percorreu meio mundo diria sobre a sociedade humana? Eis que a sandália ganha voz, ouvidos e olhos pela mãos da escritora Caroline Knowles, professora de Sociologia da Universidade de Londres no Centre for Urban and Community Research do Goldsmith College.
Ao lado do fotógrafo Michael Tan, ela percorre a trilha de um chinelo nascido do petróleo extraído nos campos do Kuwait até ser depositado um em aterro nos arrabaldes de Addis, Etiópia, passando por China e Coreia do Sul, em uma pesquisa etnográfica que dura seis anos. Do berço ao túmulo, para usar aqui uma expressão do Pensamento de Ciclo de Vida, Knowles aborda temas como exclusão social, migração, questões ambientais, relações de gênero e geopolítica ao escrever Nas Trilhas de um Chinelo – Uma jornada pelas vias secundárias da globalização, recentemente publicado no Brasil pela Editora Annablume.
Nessa jornada, a professora expõe as mazelas de quem vive e sobrevive à margem do sistema produtivo e de consumo de um capitalismo feroz . “O problema não é a globalização, mas as formas pelas quais se permitiu operar para o enriquecimento de poucos e a crescente pauperização de muitos”, diz nesta entrevista concedida por email à Página22. Ela tampouco poupa críticas a movimentos na contramão da globalização, como os nacionalistas e protecionistas que vemos pipocar mundo afora, reforçando governos totalitários.
Mas, já no primeiro capítulo, a autora dá uma pista da mensagem que deseja passar para a sociedade, no sentido de uma evolução. Outra vez, o chinelo ganha voz: em alguns lugares tem o nome go-ahead (siga em frente), pois é impossível caminhar para trás com eles.
O que levou a senhora a escolher um par de chinelos para abordar o tema da globalização? Como essa ideia surgiu?
Vários caminhos – em parte inspirados pela imaginação, em parte pelo intelecto – me levaram a essa escolha. O chinelo surgiu pela primeira vez através de Michael Tan, o fotógrafo com quem trabalhei neste projeto. Na época, ele era aluno de um curso de mestrado que lecionei na Goldsmiths, chamado Fotografia e Culturas Urbanas. Um dia depois da aula, ele pediu para me mostrar suas fotos. Eram imagens de chinelos se desintegrando em praias tailandesas. Tratava-se de uma forma de poluição que parecia bastante bonita, pensei. Eu gostei muito das fotos, que devem ter ficado na minha memória.
Algum tempo depois, estava eu em uma viagem por Moçambique. Dirigindo quilômetros de estradas recém-surgidas ao longo da costa, notei que havia pouco tráfego de veículos. Percebi que a maioria das pessoas usava a estrada para andar e que usavam chinelos para fazê-lo. Comecei a pensar em pneus e pés, em plástico e borracha, e a tração do pé contra a superfície da estrada. E imaginei como é difícil andar de chinelos. Então comecei a notá-los onde quer que eu fosse. Vi trabalhadores de pedreiras usando chinelos de dedo em condições perigosas de trabalho. Em toda a África, por onde viajei extensivamente, eles são o sapato do povo. São o sapato mais barato do mundo, enquanto mais de cem milhões de pessoas em todo o globo ainda andam descalças. Chinelos são o primeiro passo para o mundo dos sapatos. Esse é o lado imaginativo e prático das coisas.
Ao mesmo tempo, eu estava lendo sobre Antropologia da cultura material. Foi quando me deparei com o trabalho do antropólogo Igor Kopytoff. Ele escreveu um ensaio sobre o carro na África e como poderia ser usado para investigar o modo de vida lá. De onde vem o carro? Quem é o dono? De onde veio o dinheiro para comprá-lo? Quem usa automóvel na África e com qual finalidade? Um projeto de pesquisa estava se formando na minha cabeça. Escrevi um pequeno pedido de subsídio para a Academia Britânica e consegui o financiamento para Michael e eu começarmos a trabalhar no rastreamento da biografia do chinelo, desde os materiais até a fabricação e o descarte. O financiamento que obtivemos da Academia Britânica nos levou a duas partes da jornada, para a China (manufatura) e para a Etiópia (a maior consumidora de chinelos). Mais tarde, candidatei-me para mais fundos junto ao Leverhulme Trust, com objetivo de bancar outras partes da trilha do chinelo. Isso me levou ao Kuwait (petróleo), à Coreia do Sul (petroquímicos) e de volta à Etiópia, ao aterro de Koshe, na periferia de Addis, para as cenas finais.
Ao escolher contar essa história por meio de um chinelo, o intuito foi de humanizar o tema, colocando o fator humano no centro do debate sobre a globalização?
Sim, as pessoas estão sempre no centro da minha pesquisa. Os objetos e os materiais de que são feitos certamente ganham vida por meio do cotidiano das pessoas. As pessoas vivem uma relação íntima com seus objetos. Comecei a me dar conta que, em todos os debates sobre mobilidade, o ato de andar é fundamental, não importa para quão distante as pessoas se locomovam. E para as mais pobres, andar é o modo como elas conduzem suas vidas. No plástico do chinelo estão muitas vidas humanas, a vida das pessoas que perfuraram o petróleo, a vida dos trabalhadores petroquímicos, a vida daqueles que trabalharam em transporte e logística, a vida dos comerciantes de mercado que vendem chinelos e a vida de pessoas que não têm outros calçados e devem usá-los todos os dias enquanto cuidam de seus negócios. Então, é claro, existe a vida daqueles que trabalham no aterro recuperando materiais que podem ser reciclados. Estes são frequentemente novos migrantes que não têm outras oportunidades. Conversando com algumas das mulheres, descobri que elas estão economizando para obter visto, de modo que possam trabalhar como empregadas domésticas no Oriente Médio. Para aqueles que não têm outras oportunidades, o lixo é entendido como uma plataforma para a cidade e arredores.
Em cada estágio fiquei impressionada com a tenacidade e a inventividade das pessoas envolvidas, a maioria pobres que vivem em circunstâncias adversas, mas que a cada dia levantam e colocam um pé na frente do outro, a fim de tomar o curso de suas vidas.
O seu livro é rico em descrições que expõem as mazelas de pessoas vivendo à margem da globalização. A intenção foi alertar para uma maior inclusão social neste mundo extremamente desigual? Ou em sua opinião não há esperança de inclusão no sistema do capitalismo globalizado?
Eu penso que o capitalismo global tem muitas possibilidades. Nós temos isso em diferentes formas, há muito tempo. O problema não é a globalização, mas as formas pelas quais se permitiu operar para o enriquecimento de poucos e a crescente pauperização de muitos. As pessoas que trabalham na trilha do chinelo são um bom exemplo das maneiras pelas quais essas formas bastante humildes de globalização funcionam. Elas são frágeis e instáveis. Uma oportunidade de trabalhar em fábricas de plástico passa por uma aldeia na China, por exemplo, e então passa para outro lugar, e oferece oportunidades limitadas em alguma outra aldeia no Vietnã ou no Sudão. A globalização é um conjunto de coisas que operam de maneiras diferentes, e não um conjunto estável de relações sociais e econômicas, como mostra minha pesquisa. Diante disso, cabe aos governos dos Estados nacionais, que têm poderes regulatórios, impor limites à maneira como os diversos segmentos funcionam em seu país. A globalização poderia trabalhar para melhorar a vida dos pobres. Só que isso não acontece. O capital faz o que faz. Os governos precisam fazer o que fazem e proteger os cidadãos dos piores excessos da globalização.
Atualmente, em diversas partes do mundo, vemos movimentos agindo contra os mercados globalizados, reforçando o nacionalismo e o protecionismo. A senhora vê perigo nessa onda nacionalista e riscos de que isso fortaleça governos totalitários?
Sim, vemos isso muito hoje na Europa e em outros lugares. O nacionalismo e o protecionismo estão em ascensão. É um dos tópicos nas discussões do Brexit e é evidente nas recentes eleições na Hungria. Acho que esta é uma questão difícil. Os governos nacionais precisam conter os piores excessos da globalização, mas isso não significa necessariamente a exclusão de outros. Os migrantes sofrem uma pressão muito ruim a esse respeito. Eles não são a causa do declínio dos gastos sociais e dos salários apertados, os governos neoliberais empenhados na austeridade causam isso. É importante proteger as pessoas da exploração e do risco em uma base global e, assim, os governo nacionais, em suas tentativas de regulamentação, precisam estar atentos ao impacto de suas ações sobre as pessoas em outras jurisdições. A globalização pode ser receber respostas de forma gentil e aberta, isso não precisa ser feito de maneira estreita e nacionalista.
Entre a globalização e o nacionalismo/protecionismo, o que pode ser mais prejudicial à inclusão social e ao bem-estar das pessoas, em sua opinião?
Não estou convencida de que esses termos sejam opostos. Ambos podem ser prejudiciais à inclusão social e ao bem-estar das pessoas. Tudo depende de como estão concebidos, implementados e praticados, e quais mecanismos regulatórios reprimem seus piores excessos. Ambos são característicos do século XXI e temos que conviver com eles de maneiras que não sejam prejudiciais para a maioria das pessoas, especialmente para os pobres. O presidente Lula [ex-presidente condenado na operação Lava Jato por corrupção passiva e lavagem de dinheiro] seria um bom exemplo aqui. Ele trabalhou dentro das estruturas dominantes do capital global, mas com uma filosofia e uma política de redistribuição e inclusão. Isto é certamente o que é necessário em escala global. Os governos devem cuidar de seu povo, é para isso que eles são eleitos. Mas eles não precisam fazer isso afetando outras pessoas de outros lugares. Um humanitarismo global que proteja os mais vulneráveis é impossível? Espero que não. Mas isso me parece muito longe de ocorrer!
Que público em especial a senhora gostaria de atingir com o seu livro? Quem especificamente, ou qual organização, ou governo, a senhora gostaria que fosse impactado pela mensagem do livro?
Espero que o livro esteja escrito de maneira acessível. Tentei evitar o jargão e a postura intelectual. Sempre escrevo tendo meus alunos em mente, mas acho que este livro seria inteligível para o leitor curioso em geral, para funcionários do governo e para aqueles que, como tecidos humanos do capital global, poderiam estar preparados para repensar o que estão fazendo. Eu particularmente acho que é relevante para as autoridades que trabalham no nível municipal, já que as implicações da globalização são particularmente visíveis nesse nível.
Durante a apuração e pesquisa, o quanto a sua condição feminina tornou o trabalho mais difícil? A senhora sofreu alguma discriminação nos lugares onde passou pelo fato de ser mulher?
Não posso dizer que sofri algum preconceito que eu não esperasse que podia acontecer. É claro que a pesquisa no Oriente Médio foi particularmente difícil por ser uma mulher. Eu queria pesquisar petróleo na Arábia Saudita, mas a política de gênero lá tornou impossível para mim entrevistar trabalhadores do petróleo sem transgredir noções locais de propriedade. Em vez disso, fui ao Kuwait, que é muito mais liberal e onde eu poderia trabalhar livremente. A Coreia também possui uma cultura bastante dominada pelos homens, mas o fato de ser mais velha ajudou. As mulheres idosas não ameaçam ninguém e, portanto, possivelmente entrei em lugares onde, se fosse mais nova, talvez não poderia entrar. O acesso em todo o trajeto foi difícil, mas era isso o que estava pesquisando. Estou agora fazendo algumas pesquisas no extremo oposto do espectro da globalização, sobre os super-ricos de Londres. Suas casas são mais difíceis de entrar do que um campo petrolífero do Kuwait, e quase tão protegidas por forças de segurança.
Ficha técnica:
Nas Trilhas de um Chinelo – Uma jornada pelas vias secundárias da globalização
Caroline Knowles
Editora Annablume, novembro de 2017
267 páginas