Ou melhor, existirá carro no futuro? Depois de mais de um século produzindo veículos em série, e fazendo uma publicidade que “vende” a valorização do transporte individual, o que a indústria automobilística está conseguindo é uma inversão de propósito: travar a mobilidade na maioria das grandes cidades brasileiras. Dependendo do horário e do local, um deslocamento a pé pode ser mais eficaz do que a bordo do mais tecnológico dos veículos automotivos. Em entrevista à Página22, João Ciaco, diretor de Publicidade e Marketing de Relacionamento da FCA, holding que controla a Fiat Chrysler e a Jeep, admite que, por esse e outros motivos, a indústria automobilística precisa se reinventar já e explicou sobre como faz para amalgamar publicidade de automóvel com sustentabilidade sem resvalar no marketing verde.
Na primeira semana de maio, a Jeep, apoiadora do Projeto Tamar, convidou jornalistas e profissionais de mídia para participar do evento de soltura simbólica da tartaruga marinha de número 35 milhões, no arquipélago de Fernando de Noronha (PE). A consistência do Tamar (iniciado há 35 anos, o programa está conseguindo reverter o risco de extinção das tartarugas marinhas no Brasil), segundo o empresário, não tem como ser confundida com greenwashing. Até porque a empresa não inclui esse tipo de iniciativa em sua comunicação de massa. Sem tentar relativizar a responsabilidade da indústria de automóveis com mudança do clima e outros temas de sustentabilidade, João Ciaco, também aborda nesta conversa o programa O Futuro das Cidades, os exercícios de futurismo, a inovação e as ações socioambientais realizadas pela empresa.
João Batista Ciaco, 55 anos, nasceu em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Graduou-se em Engenharia, pelo Instituto Mauá de Tecnologia, e em Administração de Empresas, pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Fez mestrado na FGV e doutorado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Antes de assumir a Comunicação e o Marketing na FCA, passou pela Unilever e pela Kodak.
O senhor cresceu no interior, certo? Isso influenciou de alguma maneira a sua carreira?Sim, sou de São João da Boa Vista [SP]. O fato de no interior ter uma só escola, o fato de a rua ser um espaço muito mais democrático do que nas grandes cidades, cria-se uma proximidade, uma convivência entre as pessoas. Nas grandes cidades, os condomínios separam as pessoas. Você tem separações sociais muito mais claras na cidade grande do que no interior.
A minha carreira se desenvolveu muito em empresas que tinham sido compradas ou que estavam comprando. O fato de eu ter tido uma experiência no interior me facilitou muito transitar nesses ambientes empresariais de fusão, de mistura de culturas, entre modo de pensar. Acho que o interior tem a ver com isso.
Seu sobrenome revela ascendência italiana, o senhor deve se sentir “em casa” em uma empresa italiana.
Sim, meu avós eram italianos. O avô do sul e a avó do norte da Itália, mas se conheceram no Brasil. Depois que fui para a escola, nunca mais havia sido chamado de “Tchiaco” [pronúncia italiana para Ciaco]. Agora, na Fiat, onde a cultura italiana é muito presente, voltei a ser “Tchiaco”.
Antes de ir para a Fiat, o senhor passou pela Kodak, ou seja, deve ter testemunhado bem de perto a ruína de uma mega corporação global. Faltou uma visão de futuro ali?
Eu fui para Kodak abrir uma área que não existia, a de supermercados, de venda de massa. Esse trabalho pressupunha outro tipo de atuação. Enquanto as lojas de fotografia tinham uma pessoa encarregada de explicar, por exemplo, qual era o filme mais indicado, no supermercado, não. Fui para montar essa área de distribuição de massa, acabei assumindo o Marketing e trabalhei nos primeiros projetos digitais da Kodak também. Foi curioso porque era final dos anos 1990, a internet já estava estabelecida, mas comercialmente ainda era muito incipiente. E a Kodak já falava em digitalização. Só que uma empresa com a maior parte do seu lucro, ou grande parte do seu lucro baseado em papel e químicos, não iria migrar facilmente para uma tecnologia que não tinha nem papel e nem químico. Era uma decisão muito difícil de ser tomada.
Qual era o projeto digital da Kodak?
Não era de captura de imagem digital. Era um projeto muito legal para digitalizar uma imagem pronta. Era o tal do sharing pictures. Em vez de compartilhar álbuns, digitalizar essas imagens e compartilhá-las digitalmente. Isso, no final dos anos 1990, é basicamente o embrião do que é hoje o Instagram. Dez anos antes de o Instagram existir. Esse projeto acabou não evoluindo e eu também saí antes, mas foi muito bom passar por essa experiência.
Saiu da Kodak direto para a Fiat?
Tive o convite da Fiat para trabalhar na área digital em Betim [MG], para instituir a digitalização da marca Fiat pensando no novo consumidor. A Fiat tinha na época um índice muito alto de rejeição de marca que vinha, basicamente, do Fiat 147, do câmbio duro que quebrava. Na época, a Fiat já estava em uma transformação gigante, o Palio já era um sucesso, tinha um portfólio bem robusto, mas ainda um índice alto de rejeição. O que se percebeu é que grande parte dos consumidores que rejeitavam a Fiat nem sequer tinham entrado num Fiat. Era uma rejeição quase que de boca a boca. O trabalho digital era justamente para falar com esse consumidor, para apresentar a Fiat a quem não tinha tido nenhuma experiência e, portanto, tinha menos rejeição histórica do que os “rejeitadores” tradicionais. Dali, assumi várias outras posições até chegar no Marketing e na Comunicação.
De lá ao Projeto Tamar. Como você constrói uma narrativa de comunicação para a indústria automobilística sem parecer que a FCA está fazendo greenwashing, já que a indústria automobilística está, sabidamente, entre os grandes vilões da mudança do clima – além da questão da mobilidade, do transporte individual em oposição ao transporte coletivo?
Falar o que a gente faz ou o que não faz não é elemento de comunicação. Não fazemos propaganda, anúncios, campanhas [para vender Jeep usando o Projeto Tamar]. É claro que [o assunto] está presente em redes sociais e em conversas. Mas não se estabelece como elemento de comunicação principal. Eu acho importante construir esses projetos, essas iniciativas e esse conglomerado de ações que, de alguma maneira, tenham o automóvel inserido em uma contribuição positiva. O automóvel é o nosso universo. Não dá para pensar que no modelo atual de mobilidade, de locomoção, de interação entre as pessoas, que consigamos prescindir do automóvel. Muitos de nós não consegue viver sem um.
Mas é claro que dá para fazer um uso muito melhor e é isso que a gente se propõe a fazer. Uma utilização mais coerente. Procurar não dirigir sozinho, usar o combustível adequado, inserir o carro dentro de um complexo modal mais inteligente, que use o carro somente quando for necessário.
É possível inserir essas ideias em Comunicação e Marketing?
Temos um projeto interno, O Futuro das Cidades, de discussão com a sociedade sobre caminhos possíveis para se compreender a questão da mobilidade nas cidades, que é onde a maioria dos carros está.
Entendemos que qualquer questão de mobilidade passa pela compreensão multimodal. Não dá para pensar só no carro, só na bicicleta, só no trem, ou só em se transportar a pé.
Como organizar isso para permitir um transporte mais inteligente, uma utilização mais adequada de todos os meios? Trazemos pessoas de todas as áreas para fazer essa discussão. O mais legal do projeto é por as pessoas para discutir e utilizar os nossos recursos internos. Estamos ajudando em soluções como a de um bicicletário em fase de prototipagem para a Praça da Liberdade, um importante hub de Belo Horizonte. Para fazer isso, trouxemos ciclistas para conversar com os nossos designers – que são designers de automóveis, mas antes de tudo são designers.
O projeto também discutiu recentemente soluções inteligentes para alguém que precisa ir da localização A para a localização B. Como eu faço para ser o mais eficiente possível nesse trajeto em todos os aspectos? O que percebemos foi que, mais importante do que a locomoção de A para B, é como colocar A e B em contato. Muitas vezes há soluções que não passam necessariamente pelo deslocamento ou, quando passar, que a locomoção seja a menor possível. Pensamos em aplicativos para intercalar o transporte por carros com outros modais. Falamos em car sharing, em carro autônomo, em elétricos, em utilizar a chave do carro para destravar o sistema de segurança da bicicleta. Enfim, a discussão é sobre como construir coisas que se interliguem para se ter um melhor uso de todos os meios disponíveis.
Mas e na propaganda propriamente? É possível falar de sustentabilidade quando o objetivo é vender carro?
Uma das coisas importantes é fazer uma comunicação responsável da sustentabilidade. Falar de pequenos factoides é fácil. Também não trazemos esses trabalhos experimentais para a comunicação principal, mas já falamos da utilização mais racional do veículo. Há uns quatro anos, quando relançamos o Punto – um dos carros com design mais apreciados pelo consumidor e um dos mais tecnológicos na sua categoria –, falamos do design, da tecnologia e tudo mais que o carro tinha. Mas havia também uma coisa importante pra gente: o consumidor desse carro estava preocupado em com a utilização e trouxemos essa a questão para a comunicação. Lançamos o Punto com um comercial mostrando um cara andando de bicicleta até uma garagem onde o carro estava parado. Ele chegava, dava um tapinha na lataria e entrava. E a mensagem era: esse carro é muito legal, mas só use quando você precisar. Caso contrário, use a bicicleta que também é bem bacana.
O senhor mencionou o carro elétrico. Por que essa tecnologia está demorando tanto para chegar no Brasil?
A questão maior que temos que pensar é se o carro elétrico, o carro em si, é uma solução inteligente do ponto de vista ambiental. Temos que considerar como essa energia elétrica será produzida. Se, de repente, todos os carros passarem a ser elétricos no Brasil, a energia terá de ser adaptada para termelétricas. Acho que o sistema não será inteligente. Isso é um primeiro ponto. Outro, é o que fazer com a bateria altamente poluente. Trabalhar a descartabilidade das baterias é uma das coisas mais difíceis hoje do projeto elétrico. Há também uma questão econômica. É uma solução bastante cara (leia mais sobre a efetividade ambiental do carro elétrico aqui).
Temos uma prototipagem de carro movido a energia solar – o Projeto Girassol. Por que não usar energia solar para ajudar a minimizar o consumo de combustível?
Estamos estudando uma forma de cobrir o carro com uma célula fotovoltaica que ajude a produzir energia. Uma das enormes dificuldades é o peso e a rigidez da placa. Estamos desenvolvendo no nosso centro de pesquisa [Centro de Pesquisa & Desenvolvimento Giovanni Agnelli, em Betim], uma fibra bastante fina e flexível. Mas tudo isso ainda está em fase bem experimental.
Qual a relação da Jeep com as tartarugas e o Projeto Tamar?
Primeiro, é a essência de marca. O Jeep fala da aventura, da liberdade, da autenticidade assim como o Projeto Tamar também fala. É uma aproximação entre marcas que faz sentido aos nossos olhos de comunicadores. Além disso, a maneira como o Jeep se posiciona aqui no Brasil e no mundo tem uma relação com a natureza. O Jeep te leva a lugares a te possibilita experiências na natureza que outros carros não fazem. Temos trabalhado essas questões da natureza também com a ideia de preservá-la para que essa experiência se perpetue e possa ser muito mais fonte de sentido do que uma experiência individual. Estamos entregando jeeps que vão levar o Tamar a mais capturas e desovas, a lugares mais difíceis porque é um veículo capacitado para isso. Portanto, vai ajudar o Tamar a construir experiências no seu fazer. Mas não pretendemos usar esse apoio na comunicação de massa.
Em suas fábricas, a FCA insere sustentabilidade na cadeia produtiva?
Tentamos construir o máximo de sustentabilidade na cadeia produtiva. No tratamento de rejeitos, no reaproveitamento da água, na utilização mínima de energia. Esse é um cuidado muito grande. Faz parte do projeto mundial World Class Manufacturing. Temos indicadores muito agressivos para essas coisas todas. Mantemos encontros frequentes com fornecedores e esses indicadores também são cobrados deles. Trabalhamos o entorno das nossas fábricas da melhor maneira possível. Temos um importante projeto na área de educação em Goiana [PE], chamado Rota do Saber. Estamos levando esse projeto para Betim [MG} e para Campo Largo [PR].
Quando você se refere aos fornecedores até que ponto da cadeia você chega? Até a mineradora?
Não. É claro que nós somos compradores de aço. Nós estabelecemos padrões de trabalho, mas ainda temos um espaço muito grande para avançar. Sem dúvida.
Vocês calculam pegada de carbono?
Sim. Acabamos de fazer uma fábrica em Goiana (PE) e zeramos a emissão de carbono, até por causa do nosso viveiro e do resgate da Mata Atlântica que estamos fazendo na Zona da Mata no norte de Pernambuco.
Como você vê o futuro da indústria automobilística? Vocês fazem exercícios de futurismo?
Essa é uma indústria que produz da mesma maneira desde seu nascimento no começo do século passado. Se essa indústria não se refizer muito rapidamente, não conseguirá sobreviver. Ela tem de se reinventar agora.
Outro aspecto é estarmos totalmente baseados na posse. Nós vendemos carro. Essa é uma questão que a indústria já está consciente que precisa discutir muito profundamente. Não sei se as pessoas vão querer comprar carro no futuro. As pessoas querem se locomover, e talvez o que tenhamos que promover sejam soluções de transporte. É um outro tipo de apresentação daquilo fazemos. Talvez não vendamos mais produto, vendamos serviço (mais sobre o assunto nesta reportagem de 2008).
Mas essa discussão já ocorre de fato?
Faz parte do nosso dia a dia. Quando eu completei 18 anos, a primeira coisa que quis fazer foi tirar carteira de motorista para dirigir. Hoje isso já não é verdade para boa parte dos jovens. Pelo menos esse desejo já não é mais tão forte. Mas não significa que eles não queiram se locomover. Tudo isso está permanentemente na nossa agenda, pois o futuro da indústria depende dessas questões.
Vocês nunca imaginaram um formato de carro para o futuro?
Em 2010 fizemos um protótipo do que talvez seja o primeiro carro colaborativo desenhado no mundo. A gente tinha de fazer um carro-conceito (não comercial) para o Salão do Automóvel e trouxemos pessoas de várias partes do mundo para discutir que carro seria esse. Foi um projeto totalmente colaborativo. Era um carro modular. Se estou sozinho, o carro fica bem pequeno, só para uma pessoa. Se vou sair com a família, eu consigo aumentá-lo acoplando módulos. Se preciso transportar uma carga, adapto uma caçamba. O carro era inteiramente reciclável e se atualizava. Por exemplo, se no ano seguinte surgissem novas tecnologias, não seria preciso comprar um carro novo, bastava atualizar software e hardware. Era um carro bem inteligente.