Embora o novo feminismo, a consciência ecológica, a cultura da diferença, a experiência de si próprio, ou a vida em pequenas comunidades não tenham se manifestado imediatamente, 68 abriu a brecha para que essas dimensões se ampliassem a partir da década de 70
“De todos os que escreveram no calor da hora sobre os acontecimentos de 68, só Morin estava certo”. Essa é a avaliação de Zuenir Ventura na introdução ao best seller 1968 O Ano Que Não Terminou, repetida nos prefácios às muitas edições.
O problema é que a maioria de seus leitores talvez nem tenha ideia de quem seja esse tal de Morin, o único que teria acertado na mosca. Pior: mesmo entre os que conhecem Edgar Morin, poucos devem ter tomado conhecimento de suas análises sobre tão complicado e complexo fato histórico, agora cinquentão.
Para quem se enquadra em algum desses dois contingentes, pode-se dizer que cai como luva um dos mais conhecidos bordões do Bussunda, nome artístico de Cláudio Besserman Viana (1962-2006), pois não há dúvida que “agora seus problemas acabaram”!
Antes tarde do que nunca, acaba de ser lançado no Brasil La Brèche, um clássico publicado ainda em 1968. Indica que Morin estava muito bem acompanhado, pois o livro também oferece as análises feitas no fragor e fúria da batalha por dois de seus melhores amigos, o filósofo Claude Lefort (1924-2010) e o psicanalista Cornelius Castoriadis (1922-1997): Maio de 1968 – A brecha. (SP: editora Autonomia Literária, 2018).
Tão bem-vindo lançamento é uma oportunidade para que se realce aqui o cordão umbilical, muitas vezes invisível, que liga a temática da sustentabilidade ao ano de 1968.
Em artigo anterior na Página22 já foram lembrados três aspectos cruciais: a assinatura do tratado contra a proliferação de armas atômicas, o debate sobre a bomba populacional e aquela foto que deu início às pesquisas sobre o que hoje se entende por “Sistema Terra”. Acrescente-se, então, a esses três, o fenômeno que Edgar Morin chama nessa obra de “californização”.
A segunda parte de A Brecha começa com um ensaio escrito em 1978, quando já se tinha razoável distanciamento dos acontecimentos. Nele Morin enfatiza que um dos grandes efeitos de maio de 68 foi favorecer um novo “espírito do tempo”, pela irrupção na França de temas e de atores oriundos da Califórnia. Por lá já havia brotado antes uma espécie de revolução cultural juvenil portadora da nova consciência ecológica. Algo que fica bem patente no recém-lançado longo documentário franco-alemão Os Anos 1968, do cineasta escocês Don Kent.
Apesar das aspirações libertárias e comunitárias que haviam marcado o abalo francês – principalmente entre os dias 14 e 18 de maio – nele não se haviam manifestado de imediato o novo feminismo, a consciência ecológica, a cultura da diferença, a experiência de si próprio, ou a vida em pequenas comunidades. Foi, porém, durante a greve de dois milhões de operários (jovens em imensa maioria) que se abriu a brecha pela qual essas dimensões logo depois se ampliaram e se aceleraram. Particularmente na primeira metade da década de 1970.
Muita coisa mudou no último meio século, mas a inevitável ênfase nos déficits comportamentais relativos à sustentabilidade costuma fazer com que sejam subestimados os avanços introduzidos pela consciência ambiental. Por isso, são muito oportunos dois relatórios recentemente publicados.
A Organização Mundial do Trabalho (OIT) revelou que as ações necessárias a impedir que o aquecimento global vá além de 2 graus centígrados deixariam um saldo líquido de 18 milhões de empregos, pois criariam 24 milhões novos postos de trabalho, com destruição simultânea de 6 milhões. Esse balanço só não seria francamente favorável no Oriente Médio e na África, devido à atual predominância em seus sistemas econômicos de atividades extrativas: petróleo e mineração.
Dados como esses fatalmente obrigam a pensar em tudo o que deveria estar sendo feito, mas que não ocorre por razões sociopolíticas de difícil compreensão. Mas notícias alvissareiras surgem em pesquisas mais amplas sobre comportamentos sociais. Ótimos exemplos estão no relatório Modos de vida e práticas ambientais dos franceses, do Comissariado Geral do Desenvolvimento Sustentável, órgão do Ministério da Transição Ecológica e Solidária.
Esse excelente trabalho compara duas dezenas de sinais encorajadores a outro tanto de sinais preocupantes. Em maio de 1968, quem poderia prever que em maio de 2018 a triagem de vidros, papéis e embalagens estaria sendo feita regularmente por 85% dos habitantes da França? Ou que 81% deles estaria sistematicamente apagando a luz ao deixar um cômodo?
Entre os sinais preocupantes destaca-se o fato de 57% utilizarem veículos motorizados exclusivos ao se deslocarem para trabalhar, ou 64% se recusarem a pagar mais pelo consumo de eletricidade gerada por fontes renováveis. Mas será que há cinquenta anos alguém apostaria que agora 40% já estariam evitando o uso do carro individual, e até dispostos a pagar mais por energia menos suja?
Em suma: mesmo que a reboque da californiana, a população francesa está mostrando que a brecha aberta em maio de 68 foi ainda mais significativa do que a prevista por Edgar Morin e seus saudosos Lefort e Castoriadis.
José Eli da Veiga tornou-se professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) após 30 anos de docência no Departamento de Economia da FEA/USP (1983-2012). Mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br.