Como a participação articulada de diversos atores locais pode ajudar a resolver ou minimizar problemas complexos
Frequentar as urnas a cada dois anos para escolher candidatos para as instâncias federal, estadual ou municipal é suficiente para vermos nossas necessidades ou aspirações concretizadas? Em um ambiente globalizado, parece contraditório exercer formas complementares de construção coletiva, em contraponto às soluções padronizadas para universos repletos de diversidade e de perspectivas próprias. Os governos, mesmo que bem-intencionados, nem sempre são efetivos na realização desses anseios, tamanho o déficit de oferta de serviços à população. Assim, a sociedade reorganiza-se em novos arranjos institucionais, no que é chamado de governança territorial.
“A ideia de governança territorial hoje é a de um espaço mais amplo de articulação de diferentes atores da sociedade para definir coisas públicas”, define o pesquisador do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo (CEAPG) e professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fernando Burgos.
Segundo ele, o conceito de governança surgiu no Brasil nos anos 1990, quando o Banco Mundial começou a sugerir que os governos não funcionavam bem e a solução seria a iniciativa privada participar mais das administrações. Veio a onda de privatizações. Mais tarde, percebeu-se que a ideia de governança poderia responder ao desafio, e não simplesmente alocar agentes privados para assumir tarefas de governo.
Se o Estado sozinho não dava conta de resolver todos os problemas, uma esfera mais ampla de participação, muito além do empresariado, fazia-se necessária. Neste ponto, representada pelo Terceiro Setor, a sociedade civil também entra em cena para participar das decisões públicas. Assim, governança passa a significar, conforme Burgos, o Estado aberto à participação de diversos atores, na maior parte das vezes no processo decisório, mas em muitos casos também na implementação das políticas públicas.
“Quando o adjetivo ‘territorial’ foi incorporado ao conceito de governança, criou-se uma referência a espaços mais circunscritos do País”, explica ele. A ideia de território baseia-se em identidade e não necessariamente em fronteiras municipais. Por exemplo, se o propósito de uma ação for promover o desenvolvimento local, a abrangência territorial pode estar circunscrita a um determinado município ou a uma região, ou mesmo extrapolar fronteiras estaduais. Ou seja, o conceito de território não é fechado. Ao contrário, pode ter as mais variadas conformações.
“Dirce Koga [professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP e pesquisadora do Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais] traz uma ideia que eu gosto, que é a do território de vivência, aquele espaço do nosso cotidiano, onde estabelecemos nossas conexões”, conta o professor da FGV.
Quer dizer, uma pessoa que mora na cidade de São Paulo terá um espaço de vivência que pode estar circunscrito, por exemplo, entre o bairro de Pinheiros (Zona Oeste da cidade) e o da Bela Vista (Centro). Quando a prefeitura instala um equipamento público no bairro do Campo Belo (Zona Sul), não estará atendendo às necessidades daquele morador de Pinheiros. E o mesmo vale para Altamira (PA), para Petrolina (PE) ou qualquer outra cidade.
Na perspectiva do pesquisador de Desenvolvimento Local do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (FGVces), Marcos Dal Fabbro, o tema tem um sentido semelhante. Para ele, a combinação entre um determinado espaço geográfico e a expressão da sociedade dentro daquele limite configura governança territorial. “Quando se fala de territórios, de gestão democrática, pressupõe-se um olhar diferenciado para essas localidades. Os limites podem se dar por recortes que façam sentido para aquela sociedade.” De acordo com Dal Fabbro, essa variabilidade espacial permite o exercício de uma melhor governança das políticas e ações sobre determinada localidade.
Segundo o pesquisador, o Brasil tem experimentado governança territorial em distintas situações, a exemplo dos comitês de bacias hidrográficas. “Em um dado momento, o País percebeu que esse recorte territorial era importante para a gestão de recursos hídricos e apostou nessa dinâmica.”
Outra forma de organização territorial que vem funcionando, segundo Dal Fabbro, são os consórcios públicos. Os municípios entenderam que, sozinhos, não tinham força suficiente para atuar nas áreas de saúde, educação ou resíduos sólidos, por exemplo. “Buscaram uma coordenação entre municipalidades para, juntos, enfrentarem esses desafios de forma sistêmica. E muitos estão conseguindo bons resultados”, observa.
Mas esse caminho para o sucesso não é simples e muito menos garantido, diz o diretor-executivo da Agenda Pública [1], Sérgio Andrade. Uma das tarefas da organização que ele comanda é justamente facilitar essa trajetória, construindo uma visão de liderança para que o grupo constituído em torno de um problema consiga vencer as resistências burocráticas do funcionalismo que seguramente encontrarão. “Se há uma visão de liderança, um caminho construído por vários atores e um ponto de chegada, será mais fácil implementar políticas ou mudanças”, afirma.
[1] Organização com o propósito de aprimorar a gestão pública, a governança democrática e incentivar a participação social em todo o território brasileiro
Para Andrade, quanto mais próximo um determinado problema está da esfera municipal, melhor para trabalhar a governança territorial. Há mais proximidade nas relações, além de as questões serem mais concretas. Por exemplo, se há o projeto de uma estrada passar no meio de um município, ou de um bairro, não é tão difícil identificarem-se os impactos que serão gerados, os ganhadores e os perdedores. “E é muito mais fácil engajar as pessoas com algo que está mais perto do mundo delas. As pessoas vivem ali e sabem quais são seus problemas”, explica Andrade.
No entanto, não existe garantia para resultados certeiros. Como diz Fernando Burgos, da FGV, mesmo quando bem aplicado, esse modelo de exercício democrático, que é a governança territorial, será sempre uma aposta: “Pode ser que ajude a resolver problemas complexos.”
Uma grande aposta, feita em 2008 pelo governo federal, foi o Programa Territórios da Cidadania (PTC) – estratégia criada visando o desenvolvimento econômico de microrregiões rurais por todo o Brasil. O impedimento da presidente Dilma Rousseff, em 2016, encerrou definitivamente as chances do programa que apoiou mais de 200 territórios, mas deixou alguns legados. Um deles no estado da Bahia, que não só não desfez o recorte territorial criado pelo PTC como instituiu um marco legal [2] para essa conformação territorial no que concerne à implementação de políticas públicas. Outro, foi a experiência adquirida por muitos dos atores que participaram desse processo ao longo dos 14 anos desde a instituição da política de desenvolvimento territorial (mais sobre Territórios da Cidadania na Entrevista).
[2] A Lei nº 20.974/2014 instituiu a Política de Desenvolvimento Territorial da Bahia
Humberto Oliveira foi um dos protagonistas. Idealizador do PTC e hoje representante do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, da Colômbia, ele fala do desafio que é levar a ideia de participação popular ao meio rural, onde as demandas por programas sociais sempre foram, e continuam sendo, muitas. “Encontrávamos um sentimento imediatista de busca por soluções na maior parte dos territórios. O nosso desafio era conseguir transformar aquele sentimento de urgência das pessoas em visão estratégica para atender o interesse coletivo. Isso era algo muito difícil de fazer”, recorda.
Fator diversidade
Dirce Koga, da PUC-SP, traz alguns contrapontos sobre o tema da governança. Segundo ela, existe uma contradição na gestão de determinados programas institucionais, que esvaziam de sentido o ingrediente “territorial”, reduzindo-o muito mais a uma nomenclatura do que o tornando realidade. “Temos uma governança territorial no Brasil, na maior parte das vezes, bem mais administrativa e burocrática do que uma governança que de fato se aproxime do cotidiano dos territórios.”
Um exemplo que se aplicaria a essa crítica é o do programa Minha Casa Minha Vida [3]. Idealizado por várias camadas de agentes de governança e inserido em uma lógica de território, e não de município, o modelo foi um só para todo o Brasil. Ignorou particularidades sociais, culturais e geográficas. “A lógica das nossas políticas públicas, traz poucos dispositivos capazes de abarcar toda a diversidade existente no País”, argumenta.
[3] Programa de acesso à casa própria para famílias de renda baixa e média lançado em 2009 pelo Governo Federal em parceria com estados, municípios, empresas e entidades sem fins lucrativos
Outra questão ainda mais complexa, segundo Dirce Koga, é a “cegueira” que existe em relação ao mundo da informalidade e do ilícito. Apesar da grande proporção que essa realidade vem assumindo dentro da sociedade brasileira, essa dimensão ainda não foi introduzida nas ações de governança territorial. “Se é preciso negociar com os agentes do crime para entrar em determinados locais, significa que naquele território já existe uma ação de governança que não está nem sob o domínio institucional do governo, nem de fundações, tampouco de organizações não governamentais”.
Mas como incluir o ilícito no processo decisório das políticas públicas na prática? Para Koga, em primeiro lugar, reconhecendo que o problema existe e terá de ser enfrentado. Em segundo, parando de priorizar tanto a busca por definições e conceitos do que seja governança territorial, e buscando compreender como ela se organiza na realidade concreta das cidades brasileiras. “Por exemplo, do ponto de vista da dinâmica, enquanto a política pública permanece no território somente de segunda a sexta-feira e apenas durante o dia, os agentes do ilícito não arredam o pé nunca”, afirma a acadêmica.
Visão mais quente
Por si só, o poder público, de fato, não alcança essa visão micro dos territórios como as descritas por Dirce Koga. E, quando apresenta iniciativas de cima para baixo, sem a contribuição dos atores que vivem o território, o governo compromete o desenvolvimento de suas próprias ações. É como pensa a conselheira e ex-diretora do Instituto Lina Galvani, Cecília Galvani: “As lideranças locais conseguem ter uma visão muito mais ‘quente’ dos temas no território. Esses aportes, naturalmente, têm de conversar com a agenda do governo. Essa integração de todas as visões é fundamental para se conseguir soluções sustentáveis, que façam sentido para quem as está recebendo”, argumenta a conselheira.
Iniciativas fomentadas nos territórios em conformidade com um exercício de participação popular (de baixo para cima), segundo Galvani, algumas vezes podem até incomodar o poder público. Afinal, nesse exercício democrático, os atores do território desenvolvem capacidades de ler a sua realidade, de identificar suas fragilidades, de correr atrás dos seus direitos e atuar dentro dos seus deveres. “Alguns governantes podem identificar esse empoderamento como uma ameaça e reagir não apoiando alguns projetos”, diz. “Mas também nos deparamos com a participação ativa e saudável de governantes que entendem que essa participação facilita o trabalho deles.”
Das ações que contaram com a participação do instituto nas rodadas de governança, Cecília Galvani destaca o caso de uma comunidade, a de Angico dos Dias, localizada em Campo Alegre de Lourdes, no Semiárido Brasileiro, divisa da Bahia com o Piauí, cuja principal agenda é prover a cidade de água. Como o Instituto Galvani trabalha com a perspectiva de fortalecimento dos aparelhos municipais para acessar recursos federais, não foi difícil identificar que o programa Um Milhão de Cisternas [4] tinha verba disponível para implantação de cisternas para captação de água de chuva. De posse dessa informação, a comunidade se organizou, inicialmente criando a Associação dos Moradores do Peixe, Angico e Região (Ampare) e, mais tarde, protocolando a demanda ao Governo do Estado da Bahia. “O recurso chegou e 96 cisternas foram implementadas na região”, relata Galvani.
[4] Programa do Ministério do Desenvolvimento Social criado em 2003 com o objetivo de promover o acesso à água para consumo humano e para a produção de alimentos pela agricultura familiar
Outra ação com o envolvimento do Instituto Galvani ocorre em Luís Eduardo Magalhães, município de região agrícola (soja e algodão) localizada no Oeste baiano. Como a região vem recebendo um número alto de migrantes, o governo local está com dificuldades para desenvolver sozinho um planejamento urbano que dê conta do vertiginoso crescimento populacional – em 7 anos mais de 20 mil novos moradores desembarcaram no município em busca de oportunidades de trabalho, elevando para 83 mil o número de habitantes. O instituto participa da governança para a gestão dos mananciais locais e a articulação de recursos para a construção de um aterro sanitário na região.
Só escuta local não basta
Um desafio muito presente, segundo Cecília Galvani, é ampliar o repertório da governança para além do território. “A gente faz essa escuta local, mas não basta. É preciso dialogar com agendas globais para conseguir incentivos e também para expandir a rede.” É isso que vai permitir as conexões com organizações, com estados e com a União para compor arranjos ou para buscar tecnologias que já foram testadas, como no caso das cisternas. Um caminho que o instituto encontrou foi associar-se a organizações como a RedEAmérica e o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife).
O substantivo “desafio” parece ser uma daquelas palavras-chave quando o assunto é governança territorial. Muita diversidade – e, quanto mais, melhor – entre pessoas opinando sobre um mesmo tema, a princípio parece caótico, mas é só um desafio, pois é desse caos que surgem os bons resultados, os mais abrangentes e os de maior relevância para a coletividade. “A governança territorial será sempre uma saída possível, desde que todo mundo participe; não adianta convidar somente os amigos da festa”, reforça Fernando Burgos.
O outro grande desafio é em relação ao timing, ao momento de trazer todos à mesa, sobretudo quando se trata de uma grande obra com muito impactos locais (mais nesta Reportagem). Como diz Burgos, o papel da governança territorial é antecipar eventuais problemas e, para isso, precisa estar presente no processo decisório de uma ação – antes mesmo do planejamento. Mas, no Brasil, as decisões são sempre muito urgentes e as comunidades impactadas acabam em segundo plano. “Depois que uma grande obra já começou e a adolescente foi explorada sexualmente, não adianta mais pensar em uma ação articulada de educação para ela. A ação terá de ser emergencial. Será uma gambiarra”, diz.