O mundo corporativo e do capital, que antes evitava relacionar a busca pelo lucro a causas sociais e ambientais, começa a transformar sua visão
A democratização das fontes de recursos, com viés coletivo e opções mais acessíveis que combinam diferentes perfis de capital, é vista como um dos principais desafios do atual momento de expansão dos negócios de impacto. Em 2014, os financiadores do setor resumiam-se, basicamente, a três fundos de investimento, que em geral aplicam valores acima de R$ 1 milhão, em poucas operações. Nos últimos anos, têm surgido novos perfis de atores que aportam capital em soluções de impacto: institutos e fundações, investidores anjos, family offices, corporações, aceleradoras, organismos multilaterais. “Essa proliferação é importante para garantir maior diversidade entre investimentos, empréstimos ou doações”, explica Diogo Quitério, coordenador de programas do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE).
Em sua análise, “isso é essencial para cobrir empreendimentos que estão em estágios diferentes do ciclo de vida, além da possibilidade de agregar apoios adicionais, como gestão, contatos e mentoria (smart money)”. Uma discussão global tem sido a expansão da possibilidade de indivíduos de renda média ou menos conectados à agenda de impacto também aportarem capital no segmento. Nesse sentido, plataformas digitais de investimento coletivo ganham crescente espaço, somadas aos demais instrumentos financeiros mais utilizados neste mercado.
“O crowdfunding rompeu estigmas e já não é mais uma mera vaquinha virtual”, analisa Frederico Rizzo, fundador da Kria, plataforma na qual pequenos investidores tornam-se sócios de empresas inovadoras, em especial as que geram escala de ganhos sociais e ambientais, a partir de R$ 500 de aporte. No total, a iniciativa acumula R$ 28,7 milhões investidos on-line.
Investir em melhores condições de vida é um propósito que pega carona no movimento de caçar unicórnios, ou seja, aplicar recursos de alto risco em startups nascentes na perspectiva de que atinjam valor de mercado de mais de US$ 1 bilhão. Com uma diferença: o que antes estava restrito a uma pequena fatia de investidores mais ricos hoje se dissemina como alternativa para quem almeja apostar – inclusive com valores menores – em negócios bons para o planeta. “Pode-se conectar mais pessoas a diferentes causas, sendo assim também ferramenta de engajamento”, ressalta Rizzo.
Segundo mapeamento divulgado em 2019 pela Pipe Social, 64% dos negócios de impacto estão captando até R$ 500 mil. A diversificação de modalidades financeiras pode diminuir o gargalo financeiro da fase inicial das soluções – de maior risco, porque as ideias ainda engatinham. Por isso também são carentes de capital, principalmente de menor porte, na medida certa para decolar. O abismo reflete-se no mercado como um todo: se a atividade no estágio de “semente” diminuir, dizem os analistas, o pipeline (portfólio) dos investimentos nas fases mais adiantadas de crescimento também declina com o tempo.
“São necessários mecanismos capazes de alinhar expectativas e promover o encontro entre investidores e empreendedores”, afirma Leonardo Letelier, CEO da Sitawi, que em 2017 começou a operar empréstimos coletivos, com ênfase na área socioambiental. Um dos investimentos, de R$ 200 mil, contemplou a Manioca, startup que leva ingredientes da Amazônia ao mercado de alimentos, gerando desenvolvimento sustentável na região.
No mundo do investimento de impacto, nem sempre retorno financeiro e efeitos sociais positivos ocorrem na mesma proporção. O tema da distribuição dos ganhos e dos riscos é recorrente. “Ao se privilegiar o lucro, as oportunidades de impacto podem não aparecer”, adverte Letelier, para quem as alternativas devem abranger doações, investimentos de capital e empréstimos para ONGs e empresas. De acordo com o Global Impact Investing Network (GIIN), o conceito desses negócios abrange tanto retorno financeiro como intenção de impacto social e ambiental, positivo e mensurável, podendo ocorrer em mercados emergentes ou desenvolvidos.
Amit Bouri, presidente do GIIN, tem pedido senso de urgência aos investidores no sentido de alinhar capital novo à agenda dos ODS, em função dos riscos da inação à economia e à vida das pessoas.
Engajamento do topo da pirâmide
Agricultura sustentável, energia renovável, conservação, microfinanças e serviços básicos como habitação, saúde e educação estão no alvo de famílias de alta renda que procuram conexão com investimentos que façam diferença na sociedade. “É um trabalho passo a passo para o entendimento de que estamos falando de negócios e não de Terceiro Setor”, revela Luiza Camargo Nascimento, dedicada a disseminar a ideia de que o sentido dos negócios não se limita ao lucro.
O objetivo foi ir além da filantropia. Após leituras e contato com o novo pensamento que emergia, a investidora integrou uma iniciativa que beneficiou o Banco Pérola, voltado a microcrédito para atividades produtivas, em Sorocaba (SP). “Precisamos cultivar lideranças dispostas a assumir o processo de mudança de visão em cada família”, recomenda Nascimento, cuja experiência tomou impulso ao se tornar associada do ICE, em 2011, no projeto de fortalecer os atores do ecossistema no qual já trafegava. Posteriormente, desenvolveu portfólio hoje direcionado à educação e moradia, gerido pelo escritório da família, a Acadia Investimentos.
“Criar responsabilidade sobre nosso patrimônio, sabendo a quais atividades está associado, é importante: daqui a um tempo, quem não contribuir socialmente não terá êxito no mercado”, justifica o empresário Rodrigo Pipponzi. Novos conceitos vieram à tona ao mostrar à família a possibilidade de investir melhor – tarefa de certa maneira facilitada porque ele próprio opera um negócio com pegada social, a Editora Mol, que produz publicações para redes varejistas e repassa parte do valor como doação a organizações.
Posteriormente, Pipponzi começou a financiar startups voltadas a soluções de impacto social e ambiental. “Não estou dando apenas dinheiro, mas mentoria e acesso a redes”, explica. Além de apoiar o negócio social da VerBem, de São Paulo, que visa mudar a realidade de milhões de pessoas sem dinheiro para comprar óculos, o investidor aposta nos objetivos da Sumá, cujo trabalho conecta pequenos agricultores diretamente ao mercado em Santa Catarina. A Sumá permite que os compradores de alimento elaborem seus cardápios de acordo com os planos de produção locais e em sintonia com a sazonalidade dos produtos.
Dessa forma, o papel dos family offices desponta no campo dos negócios de impacto, com engajamento, novas reflexões e aprendizados, a exemplo do que vem sendo percebido no âmbito da iniciativa FORImpact, conduzida pelo ICE (leia mais à pág.18).
No entanto, a expansão depende de questões conjunturais: “a falta de clareza tributária, que aumenta riscos, tem sido um impeditivo”, aponta Flavia Regina de Souza Oliveira, sócia do escritório de advocacia Mattos Filho. “É preciso olhar para as oportunidades de um jeito que atenda a legislação e, ao mesmo tempo, a expectativa de resultados socioambientais”, recomenda.
Limites do lucro
“Novas alternativas são testadas considerando o social não apenas por meio da doação e do alto retorno financeiro”, afirma Fernando Simões Filho, sócio da Bemtevi, cujas operações se baseiam na troca de juros por impacto. Na modalidade, o valor pago de volta pelo empreendedor diminui conforme a entrega dos efeitos sociais contratados, diferente do modelo tradicional de venture capital. Entre as iniciativas beneficiadas, está a Asid, de Curitiba, que em um ano dobrou o faturamento prestando serviços a empresas e instituições no campo da inclusão social de pessoas com deficiência. A meta da Asid é impactar 10 milhões de pessoas até 2025, com empoderamento das famílias e inclusão no mercado de trabalho.
“No meio rural, o abismo entre oferta e demanda por investimento é gigantesco”, avalia Valmir Ortega, diretor-executivo da Conexsus, rede criada para interligar negócios de base comunitária a investidores que buscam oportunidades de impacto. Dos 3 mil mapeados no Brasil, 300 receberão capacitação e os 70 mais maduros serão preparados para o mercado. Parte expressiva deles na Amazônia, onde a Peabiru Produtos da Floresta recebeu investimento para expandir a produção de mel de abelhas nativas sem ferrão. A Peabiru beneficia 120 famílias rurais em 20 comunidades, além do serviço de polinização da agrofloresta e redução do desmatamento.
Para quem está maduro
No caso de investimentos entre R$ 1 milhão e R$ 3 milhões em negócios já na rua, com caixa em crescimento, “a atenção está no alcance de escala do impacto, na rapidez das decisões e capacidade executiva do empreendedor, na menor vulnerabilidade em relação à concorrência e no retorno financeiro maior do que os investimentos”, explica Andrea Oliveira, cofundadora da Positive Ventures, gestora de fundos de capital que investiu R$ 1,2 milhão na Eureciclo, que leva inovação à gestão de resíduos.
Após um ano e meio, o negócio, hoje com 835 clientes, já proporcionou retorno cinco vezes superior ao valor inicialmente investido. A Eureciclo certifica a logística reversa de embalagens junto a empresas que investem em cooperativas de reciclagem para a coleta dos materiais como comprovação do cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Diante do êxito, formou-se um comitê de investidores reunindo know-how para abrir novas portas. O resultado será o lançamento de um novo fundo de impacto, com registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que alocará maior volume de recursos à Eureciclo.
A convicção é de que negócios com ambição de resolver desafios globais, como a questão do lixo urbano, “ganharão escala ao demonstrar capacidade de atrair capital privado”, conclui Oliveira.
O DESAFIO DA MENSURAÇÃO
Uma premissa dos investimentos é medir os seus efeitos para a sociedade. De um lado, o investidor quer saber se o dinheiro está entregando o que se propõe. De outro, o empreendedor esbarra em dificuldade técnica e financeira para dar respostas. Nem sempre existem variáveis de qualidade de vida de fácil medição, situação que muitas vezes impede comparar o antes com o depois como manda a regra, por meio de grupo de controle. “No fim do dia, trata-se de algo complexo, caro e demorado, fora da realidade das startups”, analisa Haroldo Torres, um dos fundadores da Din4mo.
A solução, segundo ele, passa pelo uso de plataformas digitais de menor custo e auxílio para se criar indicadores e construir uma cultura de avaliação. “Além de procedimentos para captar dados regularmente, é legítimo trazer vivências, histórias de vida e outras informações qualitativas que retratam o impacto”, diz o empresário, ao lembrar que “não bastam apresentações cheias de criancinhas sorridentes”.
A discussão em torno da mensuração pode, enfim, fortalecer empreendedores e investidores, mas há o dilema de como financiá-la em maior escala. A Fundação Bill e Melinda Gates, por exemplo, decidiu separar 10% do investimento para a avaliação com metodologia científica. “Há relatos de que organizações evoluídas no tema são mais capacitadas a captar recursos e, se isso for comprovado, teremos mais empresas interessadas na prática”, conclui Torres.
Daniel Brandão, da Move Social, concorda: “A pressão por resultados aumenta, mas a forma de medi-los não é um consenso”. Ele explica que o conceito da avaliação é antigo; provém da escola americana no campo da filantropia, mas hoje precisa de um novo olhar. “O intercâmbio de expertises é chave para chegarmos a fórmulas mais flexíveis, conforme os diferentes estágios de desenvolvimento do negócio.”